Setembro de 2014: É com esta metáfora ida buscar ao atletismo que o grande poeta Corsino Fortes caracteriza a literatura cabo-verdiana. Para o autor de Pão & Fonema as várias escolas e gerações de escritores nunca se desencontram no já longo labor literário cabo-verdiano. Nesta entrevista exclusiva ao Expresso das Ilhas, Corsino Fortes debruça-se sobre o seu próprio percurso poético, sobre as diversas etapas da nossa literatura e anuncia para o próximo ano o lançamento de um livro de haikai, a forma poética japonesa a qual actualmente se dedica.
Expresso das Ilhas – É um dos expoentes máximos da literatura cabo-verdiana, mas a sua obra raras vezes foi premiada. A que se deve este paradoxo?
Corsino Fortes – O fundamental para mim é nós reconhecermos os valores que temos em Cabo Verde. Somos um pequeno país e se aparece uma pessoa ou instituição interessada na divulgação da nossa literatura é necessário colaborar. Nos fóruns internacionais temos feito todos os possíveis para que também escritores também sejam conhecidos. Fico satisfeito por ter sido convidado há uns anos como jurado do Prémio Camões e com a minha presença e com ajuda dos outros jurados consegui que o prémio viesse para Cabo Verde, tendo sido atribuído a Arménio Vieira [2009]. Rejubilo-me com isso. Rejubilo-me também de ter participado nos três últimos concursos do Prémio Sonangol como presidente do júri. É óbvio que como fui embaixador de Cabo Verde em vários países sou um pouco conhecido pelo menos dentro dos países da CPLP. Isso leva também a que me convidem.
Ser convidado para presidir o júri já é um reconhecimento implícito da sua obra.
Perfeitamente, é um reconhecimento. Eu fico contentíssimo. Por exemplo, o José Luís Tavares que é um poeta extraordinário e tem arrebatado por esse mundo fora grandes prémios literários. Mas não há uma divulgação da sua obra como nos desejaríamos. É certo que a poesia não vende tão bem como os outros géneros literários…
De facto o José Luís Tavares tem uma obra soberba, mas é relativamente mal conhecido em Cabo Verde. Será que temos hoje melhores poetas, mas maus leitores?
Não digo que temos maus leitores. Verifico que hoje as pessoas querem coisas de consumo imediato. Vou-lhe dar um exemplo pessoal: ultimamente tenho-me dedicado a uma expressão poética japonesa chamada haikai [pequenos poemas de três versos]. Acontece que tinha ido ao Brasil e numa sessão cultural pediram que dissesse mais poemas meus. Como já tinha recitado muitos poemas pensei então ‘para terminar vou dizer um poema muito curto. Recitei então um haikai da minha autoria’. Eles gostaram tanto que criaram uma página no Facebook onde publicaram-me já 17 desses pequenos poemas. Acredite que isto tem dado que falar: recentemente quando estive em Angola as pessoas foram-me falar dos haikais que eu tinha publicado. Chego a Portugal e as pessoas querem saber mais dos meus haikais. E porquê? É porque o poema curto agarra…
Já agora podia dar um cheirinho aos nossos leitores?
Vou-lhe dizer o meu haikai “Topo de Coroa”. Quando há alguns anos estive em Santo Antão, impressionou-me a vasta e generosa paisagem daquela localidade. Fiquei sempre com aquela ideia de verter o meu deslumbramento no meu poema, mas não sabia como. Então um dia a caminho do Brasil veio finalmente o poema em forma de um haikai. Escrevi: Sinos de silêncio/ ressoam no eco da abóboda/ memórias que sonham/.
Parece que foi um género criado à sua medida.
Então vou-lhe dar mais um. Monte Cara. Sou o primogénito/ fonte das rugas da vida/ e da luz do espírito. Gostaria de publicar um livro pelos quarenta anos da independência de Cabo Verde que seria Cinco Canções e Cinquenta Haikais. Já tenho as cinco canções e já tenho 31 haikais. Faltam-me 19. Pode crer que não é fácil fazer um haikai. Imagine o trabalho que me deu encontrar a metáfora Sinos de silêncio. Você debruça-se sobre a cratera e escuta os sinos de silêncio. Gostou?
Maravilhoso. Para mim seria mais fácil chegar ao sonoro sino da minha aldeia de Fernando Pessoa do que ao seu silencioso sino. Ao que parece Arnaldo França escreve também haikais.
Soube pelo José Vicente Lopes, mas ainda não falei com o Arnaldo França. O França é um dos meus consultores. Antigamente, em Angola, era com o Manecas [Manuel] Duarte. Aqui quando termino um poema vou ter com o França e perguntou-lhe: ‘Oh França, o que é que acha? É menor do que os outros poemas que já escrevi?’. ‘Não, não, é pelo menos igual aos outros’. Quer dizer, não é maior, nem menor. Então fico mais tranquilo. Já o José Vicente Lopes [risos] é mais crítico. Quando conclui Árvore e Tambor fui mostrar-lhe o livro e ele disparou: ‘Oh Corsino, tu escreveste outro Pão & Fonema’. Depois escrevi Pedras de Sol & Substância, fui ter com ele de novo e ele ‘Acabas de escrever outro Pão & Fonema’. Mas quando lhe levei os meus primeiros haikais ele disse-me ‘agora sim, agora mudaste’. Com isso ele queria dizer era que até agora tinha-me limitado em vários livros meus a reescrever o mesmo livro e que finalmente tinha saído do Pão & Fonema. Como é que chego ao haikai? Normalmente os meus poemas são longos. É que tive sempre o propósito consciente de escrever a poesia épica cabo-verdiana. Levei 40 anos a estudar, a ler e a reflectir até que cheguei à poética por que sou conhecido. Foram anos de muita projecção e enriquecimento interior para que depois a poesia pudesse flutuar.
Voltando a Arnaldo França. O seu percurso literário tem merecido ultimamente vários destaques na comunicação social.
Merecidamente. O Dr. Arnaldo França é um repositório vivo do património cultural cabo-verdiano. Ele é o elemento de ligação entre as várias escolas literárias cabo-verdianas, desde a Claridade, passando pela Certeza e por essa linha de actuação de um ideário independentista inspirado por Amílcar Cabral e mesmo pós-independência à volta da revista Raízes da qual foi director. O França é sempre sombras de dúvida o vaso comunicante. E muito mais, o Arnaldo França tem respostas adequadas sobre qualquer problema literário cabo-verdiano, mas com aquela modéstia que já não se encontra nos dias de hoje. Há uma solenidade na sua modéstia. Eu diria que é uma solenidade dourada, de beleza e de esplendor. Vejamos os seus sonetos, são, de facto, pequenas obras-primas.
A obra poética de Arnaldo França é parca. Qual é então o seu grande contributo para a literatura cabo-verdiana?
É a qualidade da sua obra. É a qualidade do seu pensamento. É a qualidade da sua expressão. E há um outro pormenor: ele foi durante décadas professor de várias gerações de estudantes. Isso tem uma força tremenda.
Hoje escreve-se mais, edita-se mais, mas fica-se com a impressão de que a geração actual não chega aos calcanhares dos nossos clássicos. Será assim?
Aqui temos de nos situar no espaço temporal, porque estou em crer que dentro de 40 ou 50 anos iremos ter grandes valores. Ainda não, é muito cedo. Além disso temos essa posição de Amílcar Cabral que dizia que temos de pensar com as nossas próprias cabeças, andar com os nossos próprios pés…
Pensar com as nossas próprias cabeças é uma metáfora que não lhe ocorreria?
Não, isso é só de um homem como o próprio Cabral. Parece tão fácil, mas não é. Não é brincadeira passar de uma cabeça colonizada para uma cabeça autónoma. Não há dúvida nenhuma. Fincar os pés na terra e saber que este chão é nosso.
Enquanto literato, Corsino Fortes é um elo de ligação entre a geração dos grandes poetas e escritores já desaparecidos e a moderna literatura cabo-verdiana que está também presente no seu percurso pessoal. Como analisa esse percurso?
No meu caso pessoal comecei a publicar poemas no Suplemento Cultural. Eram poemas escritos por um adolescente, de uma inspiração solta, ainda dentro de um quadro de aprendizagem. Quer dizer, é um percurso, mas não daquilo que eu queria escrever. Portanto, já naquela altura eu tinha em mente que eu não queria ser refém daquilo que se chama inspiração. Eu disse na altura ‘eu tenho que cultivar-me, eu tenho que aprender a ler os grandes poetas para poder escrever o poema que eu quero’. E o poema que eu quero em função daquilo que vou sendo ao tomar conhecimento da realidade da minha terra, no sentido de uma caminhada para independência do país. E esta poesia tem de ser optimizada na projecção dessa independência. Por isso que, embora sendo, já não somos ‘os flagelados do vento leste’. Quando tomei consciência disso levei quase 10 anos sem escrever: cultivando-me, lendo e reflectindo. Até que criei as condições para escrever o poema. Então nunca mais parei. Escrevi os livros ‘Pão & Fonema’, ‘Árvore & Tambor’ e ‘Pedras de Sol & Substância’. Em relação ao elo de ligação entre as várias escolas literárias, como eu digo, desde o achamento destas ilhas até à presente data, tem sido uma corrida de estafetas. Eu entrego o testemunho, você percorre e entrega ao outro. Não há cisão. Quer dizer, você tem que acrescentar algo àquilo que recebeu. Tenho um legado que eu recebi, tenho que acrescer algo que é a substância que vai alimentar a nossa literatura.
Então qual tem sido o fio condutor de todas as gerações literárias cabo-verdianas? Nunca se desencontraram?
Nunca se desencontraram. Tomemos os nativistas. Eles tinham uma consciência profunda da sua cabo-verdianidade. Havia a pátria que estava longe e lhes dava a nacionalidade portuguesa, mas eles tinham a mátria que era a mãe ligada à terra. Então eles tinham uma consciência profunda dessa especificidade; eram, como se dizia, português de lei, mas cabo-verdiano de alma. E essa ideia vai-se evoluindo; já em Eugénio Tavares nós vamos encontrar essa ideia da autonomia. Também em José Lopes: sempre que ele é ferido, a sua cabo-verdianidade vem ao de cima. Movimento Claridade. Os claridosos assumem uma outra posição. Eles não podem pronunciar-se como gostariam de fazê-lo, mas reivindicam a terra, formulado através do fincar os pés na terra. Por isso também andar com os próprios pés. Já o pensar com as nossas próprias cabeças enunciado por Amilcar Cabral dá luta e dá cadeia. Mas a caminhada foi iniciada pelos claridosos com o andar com os próprios pés. Finalmente com a independência chega o momento em que o escritor cabo-verdiano pode falar da universalidade numa outra perspectiva que é através da multiplicidade das questões que ele pode abordar. Ele já não tem necessidade de uma determinada reivindicação.
Aqui surge Germano Almeida que se diz apenas um contador de histórias, não tomando aparentemente a literatura muito a sério.
A seriedade profunda do Germano Almeida está ali, porque ele não poderia ter realizado a sua obra sem noção profunda da realidade da escrita. Simplesmente, ele enriquece a literatura cabo-verdiana numa outra perspectiva. Tomemos o seu livro ‘A ilha fantástica’, ele debruça-se sobre a ilha da Boa Vista - António Aurélio Gonçalves debruça-se sobre São Vicente; Manuel Lopes, sobre Santo Antão; Baltasar Lopes da Silva sobre São Nicolau, etc. Germano Almeida tem outra perspectiva. Ele traz uma ironia à literatura cabo-verdiana que não havia antes dele. Germano Almeida fala das gentes da ilha da Boa Vista mas numa perspectiva universalista. Há uma universalidade que se obtém através da qualidade do regionalismo, mas você encontra a universalidade pelo raio da extensão. O Germano Almeida é um grande escritor traduzido em várias línguas devido à beleza e qualidade estética de cada um dos seus livros.
Para os escritores antes da independência a literatura era um ofício quase sagrado. Vem o Germano Almeida e diz que ele é apenas um contador de histórias. Isso quase que banaliza a literatura.
Não banaliza. A humildade é sempre dignificante. A humildade é irmã gémea da dignidade…
Pode imaginar a resposta de Teixeira de Sousa se lhe dissesse que ele era um simples contador de histórias?
Não sei dizer o que Teixeira de Sousa responderia. Eu conheci Teixeira de Sousa, lembro-me de ele ter-me mostrado, quando eu era embaixador em Portugal, o manuscrito do seu primeiro romance ‘Ilhéu de Contenda’ e de lhe ter dito ‘oh homem isto é uma grande obra’. Teixeira de Sousa foi um grande escritor e ele debruça-se na sua obra sobre a ilha do Fogo e sobre figuras de São Vicente. Mas Germano Almeida entra num outro mundo, ele tem que inovar, porque estamos num processo permanente de inovação. O que é este mundo? É uma escola de superação permanente.
Saltando para o poeta João Vário. O ter-lhe chamado negro greco-latino num poema seu não prejudicou o seu percurso poético?
Eu no meu poema “Carta de Bia d’Ideal” quis dizer que João Vário [pseudónimo de João Varela] estava a escrever uma grande obra e que nos estava a trazer toda essa cultura clássica para Cabo Verde. As pessoas não entenderam isso e ficaram só no negro. Mas não é só negro, é negro greco-latino…
Como avalia a obra de João Vário?
A obra dele é excelente. Ele não conseguiu escrever toda a obra que tinha planeado, porque morreu com 70 anos. Além disso ele era um neurocientista de renome internacional. Foi um grande investigador que deixou o seu nome ligado à ciência, basta recordar o Síndrome de Varela. Ele escreveu contos maravilhosos, ele escreveu um romance maravilhoso, ele escreveu uma obra poética que não é do meu tipo, mas não deixa de ser uma obra grandiosa. Quem se debruçar com seriedade sobre a obra poética de João Vário há-de constar que ele foi um grande poeta. Está fora de toda e qualquer dúvida.
Aliás, a geração à volta de José Luís Tavares, José Luís Hopffer Almada coloca a obra de João Vário num patamar superior ao seu.
Perfeitamente, é normal. O interessante é que eu e o Varela entendíamos muito bem e achávamos até piada a este poema [Carta de Bia d’ Ideal]. Infelizmente as pessoas saltaram por cima do greco-latino e ficaram no negro…
A divisão da literatura cabo-verdiana em pré-claridosos, claridosos, pós-claridosos trouxe alguns dissabores sobretudo aos claridosos. Foi uma boa ideia do Manuel Ferreira?
Acho que são divisões feitas por razões académicas. Eu já encontrei três catalogações da na nossa literatura. Mas a importância da literatura cabo-verdiana é vista de vários ângulos e esta divisão é feita consoante o ângulo em que se situa a pessoa que a faz. Por exemplo, a professora Fátima Fernandes debruça-se na sua tese de doutoramento sobre três poetas: um mais antigo que sou eu; o João Vário e o José Luís Tavares. Ela fez esta divisão, outros fazem-no de forma diferente, conforme a sua perspectiva. Eu já fui catalogado como poeta claridoso porque publiquei poemas na revista Claridade. Não creio que com a sua divisão o Manuel Ferreira tenha prestado um mau serviço à literatura cabo-verdiana porque ele contribui para o seu maior conhecimento no estrangeiro. Inclusive ele é um dos imortais da Academia Cabo-verdiana de Letras (ACL) porque não obstante ele ser de nacionalidade portuguesa, o grosso da sua obra é dedicada a Cabo Verde, seja em termos de contos, romances, ensaio e também enquanto académico porque ele criou depois do 25 de Abril de 1974 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a cadeira de Literatura Africana em Língua Portuguesa. Dentro dos 40 imortais da ACL está o Manuel Ferreira. Agora o que não se pode pensar é que ser pré-claridoso ou pós-claridoso é uma forma de subalternização de determinado escritor ou poeta. Não acho. Temos é de analisar o escritor no seu tempo. Não posso nunca julgar o poeta José Lopes à luz das conquistas políticas e das ideias que eu tenho por posições que ele não assumiu no seu tempo, quando ele não podia. Eu tenho de ver o que José Lopes foi capaz de fazer dentro dos constrangimentos do seu tempo. Isso é que é fundamental, analisar o homem no seu tempo. Temos é de ver o que, por exemplo, Eugénio Tavares e os outros nativistas conseguiram fazer naquela altura. Estive recentemente na Brava. Você vê como Eugénio Tavares é recordado na Brava. E é um homem que morreu 45 anos antes da independência de Cabo Verde. É seguramente um dos maiores homens da cultura de Cabo Verde.
Outras entrevistas ao Expresso das ilhas:
“Sinto-me satisfeito por a nossa literatura ter já tido um Prémio Camões” (I)
“Sinto-me satisfeito por a nossa literatura ter já tido um Prémio Camões” (II)