Depois de alguns anos longe do estúdio e do disco, a cantora Lura regressa à ribalta com “Herança”. A cantora já tem agendado concertos de lançamento em Portugal no dia 13 de Outubro e dois em Cabo Verde: uma na cidade da Praia e outra em São Vicente. Em conversa com o Expresso das Ilhas, no âmbito da promoção do seu disco, Lura fala do seu trabalho discográfico e da sua carreira de quase 20 anos.
Expresso das ilhas – Poucos conhecem o seu nome de baptismo. Como se chama verdadeiramente.
Lura – É só Lura, claro que todos nós temos nome de BI, mas o meu não digo a ninguém. Lura é o nome pelo qual quero que as pessoas me conheçam.
E o nome Lura caiu bem?
Sim, quando gravei meu primeiro disco decidi arranjar um nome artístico e coloquei Lura e ficou.
Depois de “The Best of Lura”, em 2010, regressa agora com “Herança”, Como é que surgiu esse disco?
Normalmente título é sempre a última coisa que escolho, porque fiquei com várias sugestões e depois acabei por escolher “Herança”, porque estas histórias que canto neste disco são heranças dos meus antepassados. Esta é a herança que os meus deixaram para eu cantar e é essa sensação real que tenho neste momento. Porque para este disco acabei por escolher temas muito voltadas para a profundidade desta procura das raízes, o valorizar da nossa origem de Cabo Verde, desde a escravatura às lutas até à independência. Depois as lutas pela afirmação da mulher, todas as nossas lutas. Há aqui algumas homenagens às mulheres, homenagem a Santiago. Há um pouco de apelo à consciência social, mas tudo isto é fruto da herança que me foi deixada.
Esse disco traz composições de Kaká Barboza, Sema Lopi, Tcheka e Mário Lúcio. Qual foi o critério da escolha?
Escolhi Mário Lúcio que acaba por assinar a maior parte dos temas, Abraão Vicente que se estreia como compositor, Jorge Tavares que é compositor do tema “Maria di Lida”, Sema Lopi que é o clássico, que escreve o tema com seu próprio nome, que fala das peripécias do homem cabo-verdiano. Tcheka também assina um tema e há um dueto que fiz com a Élida Almeida. Tem também tema do Kaká Barboza que todos nós conhecemos e que é um compositor de renome e regravei o “Somada”. No Zezé di Nha Reinalda fui buscar esse “Ambienti Más Seletu” que é a história da evolução do funaná que antes era considerado um ritmo dos pobres, escravos que só podiam tocar e cantar no quintal, mas evoluiu até agora e acabou por ser um dos géneros mais emblemáticos da ilha de Santiago.
A escolha desses compositores foi aleatória?
Foi de acordo com aquilo que estava à procura. Ouvi vários artistas, compositores, mas estava à procura de histórias e não de compositores. É claro que estes grandes compositores são bem conhecidos e reconhecidos, como Kaká Barboza, Zezé di Nha Reinalda e Mário Lúcio mas também tenho compositores mais jovens como a Élida Almeida e o Abraão Vicente e Jorge Tavares nos quais encontrei coisas muito valiosas. Gostei muito das histórias: juntei-as e fizeram sentido juntas.
Como é que podemos caracterizar esse disco em termos de género musical?
É sempre virado aos géneros de Cabo Verde; a minha música em geral é inspirada na tradição cabo-verdiana com uma roupagem algo universal. Tenho aqui várias influências com temas produzidos por pessoas de origens diferentes como o Richard Bona que foi produzido por ele próprio que resultou numa roupagem completamente diferente e universal. O Naná Vasconcelos também produziu o tema que fiz com ele, o “Mantenha Cudado”. O tema de Mário Lúcio tem guitarra flamengo, tocado pelo Pedro Joia, então divirti-me misturando aqueles sons.
Como é que ficou a combinação?
Sou suspeita, porque adoro flamengo. Acho que várias músicas podem ter guitarra flamengo. Desde que falo crioulo e conto as histórias de Cabo Verde, porque não colocar aqui outras sonoridades que não choquem com a nossa. Não quero mudar os estilos de Cabo Verde, mas temos que reconhecer que a nossa música sempre foi assim. A nossa música foi-se desenvolvendo com influências dos outros países africanos, Europa, Cuba, Brasil, até do rock. A nossa música foi-se desenvolvendo até aqui e continuamos a ser crioulos e continuamos a ter os nossos ritmos.
Também trabalhou com grandes nomes da música do mundo contemporâneo: Toy Vieira, Hernâni Almeida, Naná Vasconcelos e Richard Bona. Como foi trabalhar com esses músicos?
Foi muito gratificante e enriquecedor. É claro que ao pé deles fiquei como uma menininha a aprender, e é muito bom, é uma bênção poder estar com Naná Vasconcelos, porque ele é muito espiritual e tem um coração gigante. É uma bênção poder estar com Richard Bona, no seu estúdio e na casa dele, que é um jardim e parece um paraíso. Ele é um músico super sensível e maravilhoso. Essas parcerias enriquecem muito. O encontro com a Élida Almeida também foi bom, pois aprendemos com os mais velhos e com os mais novos. O encontro com os artistas enriquecem-me sempre.
A produção do disco esteve a cargo de quem?
O productor de todo esse disco foi Toy Vieira, com excepção das participações especiais.
Já tinha trabalhado antes com ele?
Sim, já tinha trabalhado com ele na produção do “Eclipse”. Como estive tanto tempo meio afastada dos palcos e dos discos, quis voltar com os pés na terra, com a confiança e trabalhar com pessoas que transmitem confiança e o produtor só podia ser Toy Vieira.
Está a fazer a promoção do teu CD em Cabo Verde.Onde pretende promover esse trabalho além da Praia?
Já fiz em Lisboa, estou a fazer aqui na Praia, depois vou para Paris, volto para Lisboa para continuar a promoção e fazer concertos de lançamento do disco.
Já tinha cinco anos sem gravar, porquê?
Porque sim. Às vezes é importante parar, porque nós não somos máquinas. Há artistas que têm obrigação de gravar todos os anos, eu gravo dois em dois anos, mas precisava de dar uma pausa para descontrair, pensar numa série de coisas e começar.
Voltar no tempo
Começou cedo no mundo artístico com participações em projectos teatrais e corais, mas sua carreira como cantora começou em 1996, aos 21 anos, quando gravou seu primeiro álbum “Nha Vida” que foi um sucesso. Sente orgulho quando pensa nesse álbum?
(Risos). Claro, foi o começo e o começo é muito importante. Foi uma altura em que também eu fui apanhada de surpresa por este mundo musical, mas foi uma das melhores coisas que me aconteceu.
Foi a sua excelente aceitação que fê-la regressar às suas origens. Ou seja, a gravar só temas e com compositores cabo-verdianos?
Teve uma boa aceitação tanto nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa como também em Portugal e na comunidade cabo-verdiana no mundo. Foi super bem recebido. Isso de regressar às origens não foi muito bem assim, porque o disco era uma mistura: tinha zouk, e mesmo o tema “Nha Vida” não era uma morna. É aquilo que ainda faço, canto música em crioulo, mas com ritmos assim. No tema “Nha Vida” quis cantar em crioulo, porque logo que apareceu a oportunidade de gravar um disco, pensei ‘Lura o quê que tu és?’ porque gravar um disco é uma marca que vai ficar gravada para sempre.
Recorda-se do momento em que se deu esta viragem?
Sim, quando se me deu oportunidade de gravar um disco pensei logo em fazer algo que mais tarde fosse identificável comigo. Então olhei à minha volta e vi qual era a minha realidade. Vivia numa comunidade cabo-verdiana em Portugal, então a minha realidade era aquela: cantar em português e crioulo, porque os meus pais sempre falavam crioulo entre eles, mas comigo falava português, então quis fazer algo que fosse fiel a eles, mas ainda não sentia muito a morna e a coladeira. “Nha Vida” foi o disco, onde escrevi mais temas, tem oito temas meus e um do Paulinho Vieira.
De uma cantora luso-cabo-verdiana passou a ser uma cantora unicamente cabo-verdiana. O que perdeu e o que ganhou com esta viragem?
Não posso mudar a minha história. Nasci em Lisboa e isso não vai mudar. Não posso fazer nada, apesar de ter feito esse regresse às origens, posso dizer mais facilmente que sou cabo-verdiana do que dizer que sou portuguesa, mas não posso esconder e mudar o facto de ter nascido em Portugal. Nasci em Lisboa numa comunidade cabo-verdiana, os amigos que cresceram comigo são portugueses e cabo-verdianos, portanto é minha realidade. Vou ser sempre luso-cabo-verdiana, reivindico o facto de ser cabo-verdiana. De facto toda a minha família é daqui [Cabo Verde]. O facto de ter nascido em Portugal tem a ver com o dilema do cabo-verdiano de ter que viajar à procura de uma vida melhor. Acho que luso-cabo-verdiana é um nome justo. Se me perguntar se sou cabo-verdiana, digo que sou completamente cabo-verdiana e tenho orgulho disso e está claro que todo o trabalho que tenho vindo a fazer com paixão é em prol da cultura cabo-verdiana. Também se me perguntar se sou portuguesa, também vou dizer que sim. Sou as duas, nós os cabo-verdianos temos um pouco disso. É quase a mesma coisa se me perguntar se gosto mais do meu pai ou da minha mãe.
Então por isso esse regresso às origens?
Todo esse meu regresso à minha origem tem muito a ver com os meus pais, com esta saudade, nostalgia, as histórias maravilhosas que os meus pais sempre me contaram da origem e isto me encanta muito, porque é a minha história.
Em 1998 acompanhou Cesária Évora em dois importantes projectos: abriu os espetáculos daquela cantora na Expo’98 e participou, em Paris, nos concertos do projecto ‘Cesária & Friends’. Conta-nos como foi essa experiência.
Foi fascinante, imagina eu uma miudinha a começar a cantar e de repente estar no palco com uma artista como a Cesária Évora e outros grandes artistas como Caetano Veloso, os Madredeus, mas foi fantástico. Estas coisas no início da minha carreira foram boas, estava muito tímida e insegura. Não sabia se tinha mesmo voz para isso, porque se tivesse sonhado ser cantora desde pequena talvez fosse mais segura. Aquilo era um misto de emoções muito grande e também confirmação, porque não fiquei muito tempo a cantor junto de cantores amadores. Comecei logo a fazer parceria com artistas internacionais. E a partir daí comecei a ter aulas de canto e a conhecer este mundo que para mim era completamente novo.
Qual era o seu verdadeiro sonho?
Era ser bailarina e acabou por não ser. A música entrou assim na minha vida e a dança ficou para trás.
Teve uma pequena participação na terceira série “Morangos com Açúcar”. Como foi a sua participação?
Foi optimo, fui representar uma cabo-verdiana. Representar é outra coisa que também gosto de fazer. Quando comecei a cantar era muito tímida e ainda sou, mas já não se nota muito. Li algures que o teatro ajuda a combater a timidez: então fui fazer teatro, entrei para uns grupos de teatro e aprendi algumas coisas. Depois fiz umas peças, participei em musicais infantis e entretanto convidaram me para os “Morangos com Açúcar”. Talvez tem a ver com estas participações que tinha a nível da representação. Foi uma experiência muito gira, porque toda a produção era fabulosa, desde os actores que eram todos miúdos de 14/15 anos e receberam- me muito bem e senti-me muito em casa. Foi uma experiência muito interessante.
Este é seu sexto disco. Se não me engano está com 19 anos de carreira, como tem sido seu percurso?
Tenho tido altos e baixos, tenho tido muito trabalho, com muita alegria e tem-me trazido momentos muito bons. Tenho conhecido muitas pessoas, aprendido muito, viajado muito. As pessoas têm-me dado muitas emoções e muitas coisas boas. O retorno tem sido muito grande, tenho sido muito acarinhada e esse apoio acaba por me ajudar a continuar nesse caminho. Tem sido um caminho muito colorido.
O que significou Djô da Silva na sua carreira?
Djô da Silva para mim é o africano mais profissional que conheço. Ele tem feito um trabalho inacreditável para a minha carreira e sou muito grata pela sua seriedade. Admiro-o muito e tenho imensa honra em trabalhar com ele até hoje.
Dizem que é a sucessora de Cesária Évora. Acha que sim?
Pois dizem, tenho um respeito e uma admiração enorme pela Cesária Évora. Ela para mim é de facto uma referência, tenho um carinho por ela que me transcende. Não tenho a pretensão de me colocar como herdeira porque não faz muito sentido. Tenho um percurso completamente diferente, quero seguir o meu caminho, quer ser reconhecida pelo meu trabalho e meu nome. Aprendi muito com ela, a postura dela na vida que são aquelas coisas que aprendemos em silêncio, que aprendemos vendo e é esse respeito que tenho por ela.
A sua faceta como compositora é ocultada pela perfeição das suas interpretações. Que composições suas considera as mais conseguidas?
Eu antes de mais sou interprete. A primeira vez que tive de gravar um disco que foi “Nha Vida” conhecia compositores, não sabia como fazer para escolher músicas de poetas ou compositores para cantar. Então sentei-me no meu quarto e comecei a escrever; depois perguntei ao produtor quantas músicas que é preciso, ele disse-me que são oito. Então comecei a escrever e acabei por fazer sete temas e o oitavo tema foi do Paulinho Vieira. Depois saí nessa procura da música de Cabo Verde. Então comecei a solicitar mais músicas aos compositores cabo-verdianos, por ter vivido em Portugal e querer contar histórias vividas pelos próprios. A compositora veio um pouco lado a lado com este percurso, digamos, vou escrevendo coisas para completar os discos. Neste disco “Herança” por exemplo escrevi “Sabe di Más” e o “Barco de Papel”, são temas que escolhi entre vários que vou escrevendo. Digamos que sou as duas coisas: cantora e compositora.
Que lugar ocupa o tema “Um Cartinha”?
“Um Cartinha” cabe sempre num cantinho da mala.
Onde veio a inspiração para “Um Cartinha”?
O que me inspirou nesse tema foi, de facto, a vontade de comunicar que o cabo-verdiano tem e esta necessidade de comunicar com quem está longe, porque foi sempre o dilema do povo das ilhas de ter sempre familiares e amigos fora a quem queremos mandar uma cartinha. E esta história é engraçada e foi essa questão que me levou a escrever este tema com muita alegria, porque temos que partir destas coisas.
Em que países da lusofonia tem tido maior aceitação?
Em todos aqueles por onde passei a aceitação tem sido muito boa, inclusive no Brasil, onde estive poucas vezes, mas sinto-me sempre muito acarinhada e tenho vontade de fazer mais coisas no Brasil.
E em Portugal?
Em Portugal também. As pessoas apreciam o meu trabalho. Acho que poderia ter mais espectáculos lusófonos e étnicos de música em que se encaixasse melhor a nossa música de Cabo Verde, em Portugal. Agora estão a acontecer cada vez mais coisas nesse sentido, até na comunidade portuguesa em França e outros locais a minha música tem sido muito bem aceite e fico muito feliz por isso.
O quê por exemplo gostaria de fazer no Brasil?
Tenho produtores que estão interessados em trabalharmos. Agora isto é tudo um processo, o meu disco vai lá chegar, vai ser promovido, podemos dizer que é um recomeço e neste recomeço o Brasil está na nossa agenda.
Como caracteriza a evolução da música cabo-verdiana?
Acho que tem evoluído muito bem. Em Cabo Verde há um potencial artístico muito grande, há óptimos músicos que surgem inesperadamente, mas de uma forma muito assídua. Temos artistas como eu que são inspirados na música tradicional cabo-verdiana, temos artistas noutros géneros musicais, mas temos talentos que é o mais importante de tudo, independente da escolha que cada artista faça. Acho que a música cabo-verdiana está em crescimento e fico feliz por isso.