Já estamos com saudades do Kriol Jazz. A oitava edição do Festival voltou a trazer à capital de Cabo Verde grupos e intérpretes de qualidade. Quatro noites de muita e boa música e uma homenagem a um dos grandes pianistas cabo-verdianos: Chico Serra.
Pediu meia hora, mas só o deixaram tocar duas músicas. Chico Serra, o homenageado desta edição do Kriol Jazz, encolhe os ombros à contrariedade, sobe ao palco, senta-se ao piano e desliza os dedos pelas teclas que trata por tu desde os quatro anos de idade, apesar de não saber ler uma nota sequer: “nem sei onde fica o dó na pauta”, diz a rir ao Expresso das Ilhas.
Como não podia deixar de ser, toca duas mornas: Eclipse, composta por B. Leza, e Papa Joaquim Paris, de autor desconhecido. Interpretou-as como interpreta todas as músicas, para si. “Toco sempre à minha maneira. Claro, se as pessoas gostarem fico contente. Mas, primeiro toco para mim”, diz o músico à beira dos 70 anos que garante não estar a pensar em retirar-se dos palcos. “Não estou reformado da música. A paixão é a mesma. E quando for lá para baixo”, ri-se, “vou levar a música comigo”.
E por ele, tocava todos os dias, como confidenciou. E muito mais do que duas músicas – “as pessoas queriam mais, fica para a próxima” – até porque a idade não o impediu de fazer uma noitada antes do Kriol Jazz. A tocar piano, pois claro, até à uma da manhã. E não foi até mais tarde porque tinha de apanhar o avião para a Praia às 5h.
Sobre o reconhecimento que o festival lhe atribuiu por uma carreira com mais de seis décadas e que o levou aos palcos do mundo fora, reage com a mesma simplicidade e sentido de humor com que foi respondendo às questões: “é assim que devem ser as homenagens, não a título póstumo”.
A primeira noite do Kriol Jazz na Praça Luís de Camões foi de borla. E o espaço foi pouco para todos os que quiseram não só homenagear Chico Serra como ouvir todos os que passaram pelo palco.
O já habitual trio de Ron Savage, liderado pelo baterista que dá nome à banda e é também director na Escola de Música de Berklee, trouxe o seu jazz de fusão, onde músicas clássicas do género e composições originais ganham sonoridades novas, que passam pelo R&B e pelo gospel. A suavidade com que Savage toca a bateria serve de complemento perfeito para os diálogos que se estabelecem entre todos os instrumentistas e a voz poderosa – uma surpresa agradável – da cantora Nadia Washington.
Se é verdade que não se ouviu nada de novo, também é verdade que a qualidade foi sempre alta, com todos os músicos, e a vocalista, a mostrarem uma virtuosidade exemplar.
O trio luxemburguês Jeff Herr Corporation trouxe o seu jazz vigoroso e orgânico aos palcos do Kriol. Um trio energético, dirigido pela bateria de Jeff, num ritmo “denso e luxuriante” como lhe chamou a Jazzaround, e acompanhado pelo saxofonista Maxime Bender e pelo baixista Laurent Payfert.
A primeira noite acabou em festa com Axel Matrod, mais conhecido por El Gato Negro. Sons latinos e cosmopolitas, que vão de França a Cuba e viajam pela América do Sul. A saltitante cumbia libre que tocam assemelha-se a algumas das composições de outro francês que faz igualmente música do mundo. Manu Chao, e não é por acaso. Quando Axel tocava nas ruas de Barcelona, a Guarda Civil confiscou-lhe a guitarra. Manu Chao, que também frequentava as Ramblas catalãs, ofereceu-lhe outra.
Esta vida de vagabundo do mundo deu ao El Gato Negro uma sonoridade muito particular. Cabem lá todos os ritmos exuberantes e calorosos que foi recolhendo nas suas viagem pela América do Sul e Central, além da cumbia também lá moram os boleros, a salsa, cha cha cha, modernizados pelo toque cosmopolita de Alex. E a sua experiência de músico de rua, transforma os concertos em pandemónios de dança.
Sexta-feira abriu com um encontro de sons portugueses e cabo-verdianos. O quarteto de Carlos Martins, uma das figuras fundadoras do jazz português, partilhou o palco com a cantora Jenifer Solidade e o pianista Khaly. E como soou bem o Zeca Afonso cantado pela Jenifer, lusofonia na sua plenitude, música de revolução cantada de forma revolucionária, uma versão tropical com um toque de funaná.
Para Jenifer Solidade fazer fusão com um grupo que não é cabo-verdiano é muito importante para a sua carreira artística. “É um pouco a realização de um sonho também, sair do meu crioulo, da música tradicional e entrar num estilo jazz próprio de Carlos Martins, o que não deixa de ser gratificante e satisfatório tanto para mim, como para ele que me convidou para esse projecto”.
Este projecto com Carlos Martins, conforme a cantora, começou em Atlantic Music Expo 2015. Carlos Martins, por seu lado disse que Jenifer e Khaly são músicos fantásticos de uma grande humildade, com uma capacidade musical fora do comum. “Este projecto é algo diferente e pode ser um caminho novo dependente da música que se está a fazer”, indicou.
O angolano Paulo Flores trouxe o semba à Praça Luís de Camões. Mas, não só. Ao estilo tradicional juntou o jazz, o reggae, a música popular brasileira. Deu uma volta pela morna, ao interpretar uma música de Manuel d’Novas, e deu ainda um saltinho à quizomba, “para tirar os maus-olhados e acordar o hemisfério”. Uma nota para o guitarrista guineense Manecas Costa, que neste regresso aos palcos cabo-verdianos fez a festa por todos, juntando, como é hábito, alegria e virtuosismo.
Depois do show, Paulo Flores mostrou-se feliz com a reacção do público e disse que é sempre uma bênção e um privilégio tocar em Cabo Verde.
“Damos toda a nossa alma e sentimos de volta o carinho e afecto das pessoas. Sou sempre muito bem tratado aqui na Praia. É uma bênção fazer o que gosto, e ter as pessoas a cantar comigo e a aplaudir”
Quanto ao repertório, conta que tentou diversificá-lo um pouco, para mostrar a diversidade de alguns dos seus disco mas também tendo em mente um pouco na história do Kriol Jazz Festival.
Quando os músicos são todos bons é difícil escolher o ponto alto da noite. Mas, se tivéssemos mesmo de atribuir o “prémio” ele iria para o marroquino Aziz Sahmaoui e a sua University of Gnawa. Aquele homem alto e ligeiramente desengonçado que circulava pelo público transformou-se em palco quando empunhou o guembri, instrumento de cordas tradicional que soa muito parecido ao bandolim. A partir daí foi uma festa de cavalgadas melódicas orelhudas que convidavam à dança frenética. Uma festa de gnawa, música típica de Marrocos.
Foi fácil perceber as razões porque a música marroquina tem fascinado a Europa e a América do Norte nos últimos 40 anos (desde que o guitarrista Brian Jones gravou The Pipes Of Pan At Joujouka, em 1971). E apesar de ter juntado guitarras eléctricas, bateria e teclas, é a percussão tipicamente magrebina que está no centro da música. As batidas e a voz que transporta os sons do deserto dos seus ancestrais nómadas. O que não é de estranhar, uma vez que Aziz aprendeu a tocar gnawa com os antigos mestres como Hamida Bossu, Abdel Kebir Marchent, Moallem Sadique, e Moallem Sam. Com alguns deles chegou mesmo a viver, só assim, disse, conseguiu perceber a herança que estava a receber, para depois a poder transformar.
A gnawa é, tradicionalmente, uma música xamânica, usada para curas, e isso vê-se na urgência com que é tocada e cantada, onde notas perseguem notas num frenesi festivo com odores das mil e uma noites. Foi um concerto visceral, intoxicante, que acabou num transe colectivo, com todos os músicos na percussão. Apoteótico. Choukran – obrigado – Aziz.
Aziz Sahmaoui confessou que gostou muito da reacção do público. “O público aqui é muito acolhedor, reagiram bem à nossa música, ao nosso movimento e à nossa improvisação. Há qualquer coisa na música que despertou o interesse das pessoas”.
Mas a noite ainda não tinha chegado ao fim. À Spanish Harlem Orchestra, vencedora já de dois Grammy, coube encerrar a segunda noite na Praça Luís de Camões. O seu jazz salsero não deu tréguas: começaram em grande, continuaram em grande e terminaram em grande, mostrando os seus ritmos latinos à maneira de Nova Iorque.
Liderados por Óscar Hernández, que já colaborou, entre outros, com o panamiano Rubén Blades ou o norte-americano Paul Simon, os músicos da Spanish Harlem Orchestra hipnotizaram o público desde a primeira à última nota. Numa experiência musical que arrancou muitas pessoas das cadeiras e as pôs a dançar.
Ainda estávamos a recuperar o fôlego quando a última noite abriu. Primeiro com Dina Medina, que trouxe jazz, mas também mornas, coladeiras – uma versão mais jazzy de Sangue de Beirona que soou muito interessante – e terminou com um funaná. Um bom aquecimento para a brasileira Tânia Maria. Pianista desde os 7 anos, Tânia Maria trouxe à capital o seu jazz de fusão: piano bossa nova, baixo num registo mais jazz, bateria num tom de samba. Na memória ficam muitos momentos, com destaque para os diálogos entre as teclas e a percussão e as demonstrações de técnica e destreza, fosse ao piano fosse a tocar no órgão Triton (algumas vezes, em ambos ao mesmo tempo).
Com uma carreira iniciada nos anos 60, Tânia Maria ainda se diverte, e diverte-nos, a actuar, com deambulações pelas malhas rítmicas que lhe permitem vestir com novas roupagens temas clássicos como Aquarela do Brasil, música com que encerrou o concerto e que fez a Primeira-Dama cantar e a Ministra da Saúde dançar.
Visivelmente cansada depois da grande actuação, Tânia Maria afirmou que já esteve em mais de 60 países, e que em Cabo Verde sentiu-se em casa. “E preferível tocar em casa do que tocar na casa dos outros, mas não sinto que estou a tocar na casa dos outros, estou a tocar na minha casa”.
O que se seguiu foi uma explosão de energia, o jazz musculado do grupo Nettwork, com o baixista Charnett Moffett e o guitarrista Stanley Jordan. De Moffett pouco mais há a acrescentar, filho de um baterista dos anos de ouro do jazz (Charles Moffett), já tocou com alguns dos nomes maiores dentro do género (Dizzy Gillespie, Herbie Hancock, Dianne Reeves, Anita Baker, Branford Marsalis, Bette Midler, só para citar alguns), e Stanley Jordan é um dos maiores guitarristas do mundo, conhecido por usar a técnica ‘touch’ – tocar nas cordas da guitarra em vez de as dedilhar.
Neste cruzar de técnicas e talentos coube tudo, jazz clássico, free jazz, bop, rock, pop, trance e sons do mundo. Tudo com muita energia e intensidade, acompanhados por um baterista que deu imenso trabalho aos tom e ao surdo (tambores com o som mais grave). E quase podemos jurar que o pedal do bombo chegou ao fim a arder.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 752 de 20 de Abril de 2016.