Cabo-verdianos matam saudades de Chiquinho

PorChissana Magalhaes,15 mai 2016 6:00

Na semana passada o Expresso das Ilhas fez história com a sua edição nº 753. Os factos assim o comprovam: pela primeira vez na história da imprensa cabo-verdiana um jornal chegava aos espaços habituais de venda acompanhado de um livro. Por apenas mais 400 escudos foi possível adquirir um dos 600 exemplares da reedição fac-similada do clássico da literatura nacional, o romance de Baltasar Lopes, Chiquinho. E na edição de hoje há mais. Já chegaram ao país mais seiscentas unidades, que desta vez vão, na sua maioria, para as outras ilhas. Afinal, os cabo-verdianos leem pouco por uma questão de falta de hábito ou de acesso? Ou uma coisa leva à outra?

Outro marco, este para a história da literatura cabo-verdiana: em poucas horas (menos de 24h) estava praticamente esgotado o stock de seis centenas de exemplares enviados de Portugal.

Do contacto com algumas livrarias e editoras, inclusive a Biblioteca Nacional (o espaço de eleição para os grandes lançamentos no país) as vendas mais expressivas já registadas ficam-se pelos cerca de 120 ou 150 exemplares nas primeiras 24horas. Este feito tem sido conseguido por obras relativamente recentes, de carácter “histórico”, estudos ou biografias de personalidades, geralmente com um bom trabalho de marketing e publicidade associado ao acto de lançamento.

Foi com a intenção de fazer os cabo-verdianos lerem um clássico nacional que o director do Expresso das Ilhas, António Monteiro, abordou em Lisboa João Pinto de Sousa, editor da portuguesa A Bela e o Monstro, sobre a possibilidade de replicarem em Cabo Verde a parceria que a editora acabava de concretizar com o jornal português Público. Esta publicação lusa, durante vários números ao longo de 2014, disponibilizou 15 reedições fac-similadas de “obras fundamentais da lusofonia” (que incluiu autores como Eça de Queiroz, José Luandino Vieira, Almeida Garrett, Carlos Drummond de Andrade, Odete Costa Semedo, entre outros) numa colecção intitulada “800 Anos de Literatura em Português”.

Os detalhes da parceria viriam a ser acertados com João Sousa aquando da passagem deste pela cidade da Praia, em fevereiro passado, para participar do encontro de escritores lusófonos promovido pela UCCLA.

À semelhança do que fez o Público, em que cada uma das 15 edições foram acompanhadas de textos de especialistas, o Expresso das Ilhas convidou Manuel Brito-Semedo, especialista em Literatura Cabo-verdiana e Leão Lopes, que teve Baltasar Lopes como tema do seu doutoramento, para escreverem sobre Chiquinho nas duas edições que antecederam a da venda do livro. Esta viria enriquecida com um artigo do académico português Alberto Carvalho (publicado inicialmente no Público), também ele com doutoramento a versar a obra do escritor claridoso.

Se em Portugal o mote para as reedições foi assinalar os 800 anos da literatura de expressão portuguesa, em Cabo Verde o chapéu seria a efeméride dos 80 anos da publicação do primeiro capítulo de Chiquinho na revista Claridade, considerada o maior marco histórico da literatura cabo-verdiana, a ponto de definir a separação pré e pós-Claridade.

“Os clássicos geralmente são muito citados, mas pouco lidos. É o que acontece, por exemplo com Os Lusíadas: muitos citam alguns dos versos, porém são bem menos os que leram a obra na sua totalidade”, faz notar António Monteiro para sublinhar a intenção mais pedagógica do que comercial do semanário.

 

Uma reedição muito aguardada

A iniciativa não poderia ter tido melhor acolhimento. Antes mesmo de chegar aos pontos de venda, assinantes, leitores habituais, académicos, e até mesmo empresas, ministérios e outras instituições reservaram volumes.

“Trata-se de uma prestação de grande valor para a nossa sociedade. Por isso, que venham mais clássicos e maior divulgação da Literatura Cabo-verdiana”, manifestou ao Expresso das Ilhas, Fátima Fernandes, especialista em Literatura Cabo-verdiana, área que leciona na Uni-CV.

Já o colega da Uni-CV, Manuel Brito-Semedo, considera “genial” a ideia de assinalar os 80 anos da criação de Chiquinho. “Coincidentemente, a data ficou próxima do aniversário do autor (23 de Abril), que é o patrono da instituição do Dia Nacional do Professor (nr: é também o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor).

Chiquinho é um livro de leitura obrigatória para alunos do 11ª ano da área de Humanísticas, mas está há vários anos esgotado no mercado cabo-verdiano. Teoricamente, 1/3 dos alunos do secundário devem ler este livro, mas será que o leem mesmo? Por isso põe-se o problema: ou têm estado a ler fotocópias do livro – o que pode levantar questões no referente aos direitos autorais - ou não o leem de todo, o que é preocupante”, observa Brito-Semedo que sublinha ainda a inexistência da prática de reedições no minúsculo mercado livreiro nacional. Algo comum em outros países.

Aliás, Chiquinho tem tido ao longo dos anos várias reedições. Fora de Cabo Verde. Por exemplo, em 1961, a Prelo Editora lançava em Lisboa a sua 2ª edição do romance de Baltasar Lopes. Em 1988, era a vez duma reedição do Instituto Português do Livro e da Leitura. Já no século XXI, em Janeiro de 2003, uma edição em catalão das Edicions La Campana; em 2006, edição partilhada entre a editora Nova Vega e os Herdeiros de Baltasar Lopes, numa colecção denominada Palavra Africana e com um prefácio de 22 páginas do já citado especialista Alberto Carvalho. Os herdeiros viriam partilhar uma outra reedição com a editora Livros Cotovia, em 2008. Mas seria a edição de 2006, da Vega, a última a ser disponibilizada no mercado cabo-verdiano em finais de 2010 pela Livraria Semente, apenas em São Vicente. Em 2012 este clássico nacional chegava, em língua Inglesa, ao Kindle (dispositivo para leitura de livros digitais).

A última reedição feita em Cabo Verde (também ela fac-similada) foi em Dezembro de 1997, pela editora Calabedotche, de propriedade do intelectual mindelense Moacyr Rodrigues.

 

Mais “clássicos” a caminho?

Por parte de “entidades oficiais”, tem sido ao longo dos anos mencionada a intenção de reeditar clássicos da literatura nacional. Em Dezembro de 2012 A Semana online chegou a noticiar que a Biblioteca Nacional e do Livro estava a trabalhar na reedição de Chiquinho num trabalho especial que incluiria não só o livro com o texto de Baltasar Lopes, mas também um suplemento que iria “servir de auxílio aos professores e alunos” e que deveria ficar concluído ainda naquele mês para ser publicado em data a definir. Até hoje não foi ao prelo.

A Academia Cabo-verdiana de Letras, mais recente em actividades, também já anunciou a intenção de reeditar “clássicos” e menos clássicos. Autores como Teixeira de Sousa e Manuel Lopes estão na lista, mas ainda não há datas certas.

Nesta onda de projectos de reedições, uma editora nacional está a trabalhar silenciosamente na reedição da revista literária Ponto & Virgula, publicada entre 1983 e 1987, e que em 2007 teve os seus 17 números republicados em fac-simile, em Portugal.

Já o Expresso das Ilhas, perante tão bom acolhimento da sua iniciativa, e ainda no âmbito da efeméride lietarária, já está a trabalhar para vir a disponibilizar aos seus leitores uma reedição fac-similada dos 9 números da revista Claridade.

Acesso ao livro

“O livro em Cabo Verde é muito caro e o sistema de distribuição não funciona”. A constatação de muitos é aqui verbalizada por Brito-Semedo. Explica-se assim, em parte, o sucesso da iniciativa do Expresso das Ilhas. O livro foi disponibilizado aos leitores do jornal por um preço muito acessível. Metade do valor de venda do preço mais baixo normalmente encontrado nas principais livrarias nacionais, no que se refere a livros cabo-verdianos.

Para a responsável da Direcção do Livro e da Leitura da Biblioteca Nacional, Ana Aguiar de Pina, o preço do livro em Cabo Verde é sim inacessível para larga parte das famílias cabo-verdianas. “As condições económicas e financeiras das famílias inibem sim hábitos de leitura. Mas mesmo em famílias mais abastadas a valorização do livro é relativa. E esse estado de coisas tende a continuar, com os pais a passarem para as crianças o exemplo de valorizar outras coisas em detrimento dos livros”. Telemóveis e iPads, por exemplo.

Acontece que uma das formas mundialmente disponíveis para se driblar a dificuldade na aquisição de livros está praticamente vedada aos cabo-verdianos. As bibliotecas em Cabo Verde, com raríssimas excepções, já não emprestam livros. Deixaram de o fazer por causa da falta de compromisso dos utentes, que não devolviam os exemplares emprestados, desfalcando os seus já limitados acervos.

Aliás, as bibliotecas são poucas. “Os municípios, em vez de queimar dinheiro em festivais, deviam investir em bibliotecas municipais. Nem a Praia, que é capital, tem uma biblioteca municipal, talvez porque se confunde o que é da cidade com o que é nacional”, faz notar Brito-Semedo.

Ana de Pina também aponta a carência de bibliotecas municipais e escolares e diz que a Biblioteca Nacional, que iniciou no ano passado um trabalho de mapeamento destas bibliotecas, está disponível para colaborar, na medida das suas possibilidades, na criação de mais espaços do tipo. Algo que contemplaria não apenas a questão do apetrechamento, mas também a formação de agentes bibliotecários já que “montar uma biblioteca sem ter a geri-la alguém que entenda do assunto levará a que a mesma, em pouco tempo, venha a estar “morta””, diz.

A falta de um Plano Nacional de Leitura tem sido frequentemente apontada nos debates sobre a questão do acesso ao livro em Cabo Verde. “O Estatuto da Biblioteca Nacional prevê a criação do Plano Nacional de Leitura”, informa a directora do Livro. É no entanto um instrumento que deve resultar de políticas e estratégias concretas, a estabelecer por uma parceria entre os ministérios da Educação e da Cultura. Um plano nacional de leitura tem por objetivo elevar o nível de literacia dos cidadãos de um país, exigindo investimentos na criação de bibliotecas, edição de livros, fomento de clubes de leitura, listas de obras de leitura obrigatórias ou sugeridas nas escolas, etc.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 754 de 11 de Maio de 2016.

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Autoria:Chissana Magalhaes,15 mai 2016 6:00

Editado porAndré Amaral  em  16 mai 2016 8:57

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