Esquina do tempo: Antónia Pusich, Primeira mulher de Cabo Verde a publicar

PorExpresso das Ilhas,5 set 2017 6:34

Antónia Gertrudes Pusich, conhecida como “grande escritora, jornalista, música e ‘feminista’ portuguesa”1 do século XIX, é, na verdade, natural de Cabo Verde, ilha de São Nicolau, onde nasceu a 1 de Outubro de 1805, e quinta filha de António Pusich, que foi Intendente da Marinha e Governador-Geral de Cabo Verde.

Em 1801 António Pusich fora nomeado Intendente da Marinha de Cabo Verde, o único intendente que o arquipélago de Cabo Verde alguma vez teve, mudando-se para as Ilhas, onde lhe nasce a filha Antónia Gertrudes. Terminada a sua comissão como intendente da marinha em 1811, Pusich volta a Lisboa, prosseguindo dali para a Corte, na altura sediada no Rio de Janeiro.

Posteriormente Pusich foi nomeado Governador-Geral de Cabo Verde, entre 1818 e 1821, ficando o seu nome ligado à ilha de São Vicente ao rebatizar, em 1819, a Aldeia de Nossa Senhora da Luz com o nome de Vila Leopoldina (em homenagem à Dona Maria Leopoldina, Arquiduquesa de Áustria e primeira esposa do imperador D. Pedro I e Imperatriz Consorte do Império do Brasil de 1822 até sua morte em 1826).

 

Antónia Gertrudes Pusich, São Nicolau, 1805-1883

 

Primeira mulher jornalista e directora de periódicos

Antónia Gertrudes Pusich foi a primeira mulher que, como jornalista e directora de publicações periódicas, pôs o seu nome no cabeçalho, sem se esconder, como até aí outras mulheres o haviam feito, atrás de um pseudónimo masculino.

Antónia Pusich fundou e dirigiu os jornais “Assembleia Literária” (jornal de instrução), Lisboa, [1849?]-1851; “Beneficência” (jornal dedicado à Associação consoladora dos aflitos), Lisboa, 1852-1855; e “A cruzada” (jornal religioso e literário), Lisboa, 1858, a testemunhar a sua intervenção na pedagogia e na vida social e política da sua época2.

Da vasta obra que deixou publicada, destaca-se o poema Olinda ou A Abadia de Connor Place (1848) e Saudade (1859). Fez teatro e escreveu sobre membros da família real, como Canto saudoso ou lamentos na solidão á memoria do Dom Pedro Quinto (1861). Redigiu uma monografia sobre o seu pai em 1872: Biographia de Antonio Pusich contendo 18 documentos de relevantes serviços prestados a Portugal por este illustre varão; Resumo da história da republica de Ragusa e sua antiga literatura, um documento importante para o conhecimento da História de Cabo Verde de um determinado período.

 

Primeira mulher no Almanaque de Lembranças

Antónia Gertrudes Pusich colaborou no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro (Lisboa, 1851-1932)3, tendo sido o primeiro escritor de Cabo Verde, e mulher, a ali publicar, no caso, o poema “Um cipreste”, no seu número de 1854:

 

Ou de bronze s estátuas douradas,

Ou gigantes marmóreos padrões,

Representem das eras passadas

As grandezas, vitórias e acções.

Sejam vozes de eterna harmonia,

Da virtude o devido troféu;

Doire as sobras da morte a poesia,

Dê-lhes vida essa luz que é do Céu.

 

Sob as campas descanse o passado,

Que me soube tão ledo sorrir!...

No horizonte, de nuvens guardado,

Seus mistérios esconda o porvir.

 

Casa onde morou a 1.ª mulher que ousou o seu nome no cabeçalho de um jornal. Rua de São Bento, Lisboa


Seguiram-se em 1855, “Ao Sr. A. F. de Castilho. No encerramento do curso normal de leitura repentina. Memória”; em 1856, “Madeira. Saudação lírica”; em 1857, “Lamentações. Oremos pelos finados”; em 1858, “Chora!”; e em 1859, “A uma viúva inconsolável. A flor pendida”, num total de cinco poemas longos seguindo os cânones da época do Romantismo Português.

De recordar que Guilherme da Cunha Dantas, outro dos fundadores da literatura cabo-verdiana, só faria a sua estreia poética no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro em 1875 – se bem que já tivesse publicado Contos Singelos (Mafra, 1867) e um texto em prosa no Almanaque Luso-Brasileiro no ano de 1872 – seguido da Africana, em 1883 (ano da morte de Antónia Gertrudes Pusich); Eugénio Tavares, em 1885; e José Lopes da Silva, Sénior, em 1888.

Numa época em que as mulheres estavam confinadas à família, à música e aos bordados, Antónia Gertrudes Pusich defendeu que deveriam também aprender a ler e a escrever para poderem participar na vida social e política do País. Através dos jornais que fundou despertou nas mulheres o sentido cívico que viria a ser uma realidade nos séculos que se lhe seguiram.

Por tudo aquilo que ficou aqui dito, Antónia Gertrudes Pusich (São Nicolau, 1 de Outubro de 1805 – Lisboa, 6 de Outubro de 1883) não pode ficar confinada às estantes das bibliotecas portuguesas nem à lápide que a Câmara Municipal lhe colocou na última casa onde morou, na Rua de São Bento, em Lisboa, ela precisa ser conhecida, estudada e apropriada por Cabo Verde como uma das pioneiras e fundadoras da sua literatura.

 

1 TALAN, N., “In memoriam à esquecida Antonià Gertrudes Pusich” – SRAZ L, 145-192 (2005).

2 BOLÉO, Maria Luísa V. Paiva, in “O Leme”, http://www.leme.pt/biografias/pusich/

3 Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro – Presença Cabo-verdiana, 1851-1900, Vol. I, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2012.

 

Capela de Santo António dos Navegantes, Preguiça, São Nicolau, mandada construir em 1805

por António Pusich pelo nascimento da sua filha Antónia Gertrudes. 


Não apenas coser, pintar e bordar

“Nos outros colégios do Estado e ainda nas escolas particulares igual esmero se vai tendo com a instrução dos meninos e honra seja feita aos professores e directores desses colégios. Mas as meninas!... As meninas imploram atenção, e de todas as pessoas que nutrem sentimentos de humanidade e desejos de ver prosperar a sua pátria. [...]. Enquanto em nossa terra as mulheres não tiverem a precisa instrução literária, ensinam a coser, marcar, bordar, música, etc. Porém a ler, escrever, contar, etc., não. E ainda menos outros estudos. Que mal pode ensinar alguém o que mal sabe... Poucas senhoras sabem escrever bem [...]. Aparecem numa sociedade, ostentam uma brilhante conversação, fazem uma elegante figura... encantam os espectadores... seduzem... adquirem nomeada, estudam todas essas aparências fosfóricas (sic); vai um sábio entrar com elas em discurso... onde está o espírito dessas fascinantes beldades?... Evaporou-se! Nem sabem dar uma razão do que dizem.”    

 

Antónia Pusich, 25 de Agosto de 1849

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 822 de 30 de Agosto de 2017. 

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Autoria:Expresso das Ilhas,5 set 2017 6:34

Editado porRendy Santos  em  6 set 2017 17:09

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