Pela importância que o naufrágio teve na vida socioeconómica das duas ilhas do extremo noroeste do arquipélago de Cabo Verde, principalmente na sociedade santantonense, não se pode permitir que os factos morram com a geração de então, sendo, portanto, nossa obrigação recolher, preservar e dar a conhecer à nova geração, e às vindouras, a drástica situação de secas, fome e abandono que se viveu nestas ilhas durante a década de quarenta do século passado.
Neste contexto, o blogue a Pedra do Letreiro procurou investigar o porquê desse navio que contribuiu para salvar grande parte da população de Santo Antão e São Vicente de morrer à fome se chamar SS John Emile Schmeltzer. Quem terá sido John Emile Schmeltzer? Vamos então aos factos.
No dia 01 de Setembro de 1939, pelas 04h45, a Alemanha então comandada por Hitler invadia a Polónia, dando assim início a Segura Guerra Mundial. Na sequência, o Reino Unido lançava um ultimato aos alemães para que retirassem as suas tropas da Polónia, tendo-lhes dado dois dias para tal. Como seria de esperar, a Alemanha ignorou o ultimato, obrigando assim o Reino Unido a declarar-lhe guerra. A seguir, outros Aliados viriam a fazer o mesmo, mergulhando o mundo numa das guerras mais sangrentas da era moderna.
Nos meses seguintes, a poderosa máquina de guerra aérea, terrestre e marinha alemã conseguiu aniquilar parte significativa dos esforços de guerra dos Aliados. A sobrevivência económica do Reino Unido dependia largamente da chegada em segurança dos navios mercantes que transportavam os equipamentos militares, suprimentos e tropas para o teatro de guerra, todavia os submarinos inimigos, “Lobos do Mar”, conseguiam, cada vez mais, afundar um maior número desses navios e as indústrias britânicas devastadas pela guerra não conseguiam, num curto espaço de tempo, produzir navios substitutos em número suficiente para suprir as baixas infligidas pela força alemã.
O Reino Unido era um dos maiores aliados dos Estados Unidos da América (EUA) na Europa Ocidental, portanto a sua queda representaria uma grande ameaça para os próprios EUA. Assim, alguns meses antes de os japoneses atacarem a base norte-americana de Pearl Harbor, os EUA decidiram entrar, ainda que indirectamente, na Segunda Guerra Mundial, prestando uma ajuda, em termos de logística bélica, inestimável para o Reino Unido. O presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, e o Primeiro-Ministro do Reino Unido, Winston Churchill, acordaram a concepção de um programa inovador de ajuda em regime de “Lend-Lease” que passou a permitir que armas e outros equipamentos bélicos fossem enviados para qualquer país considerado vital para a defesa dos interesses dos norte-americanos que até então mantinham uma posição neutra face à guerra.
Assim, dois estaleiros navais norte-americanos, respectivamente localizados na Costa Oeste (Pacífico) e Costa Este (Atlântico), começaram a produzir 60 navios comerciais para o Reino Unido. O projecto dos navios que foi oferecido pelos britânicos datava-se de 1879, sendo portanto obsoleto. Não obstante os navios estarem projectados para possuírem caldeiras a carvão e motores alternativos tecnicamente obsoletos, tinham a vantagem de serem práticos e poderem ser construídos em tempo record. Assim, os engenheiros navais dos EUA aproveitaram o projecto britânico e reformularam-no de modo a produzirem navios económicos num curto espaço de tempo.
Até o fim da Segunda Guerra Mundial, a indústria naval estadunidense produziu um total de quase seis mil navios mercantes e a maior frota de navios de combate até então vista pelo mundo. Os “Liberty Ships”, designados de “Ugly Ducklings” (“Patinhos Feios”) por Franklin Roosevelt, foram a maior e mais famosa classe de navios mercantes construídos durante a Segunda Guerra Mundial. Ao todo, entre 1941 e 1945, construiu-se o impressionante número de 2711 desses famosos navios. Mas quem eram esses tais “Liberty Ships”?
“Liberty Ship” foi o nome atribuído aos navios construídos pela Comissão Marítima dos Estados Unidos da América, durante o Programa de Emergência da Segunda Guerra Mundial, para auxiliar os Aliados no teatro de guerra no combate contra os germânicos. A Comissão Marítima atribuiu a esses navios a designação oficial “EC2-S-C1”. Onde o “EC” era a designação para navio de carga de emergência (“emergency cargo ship”); o “2” indicava a grande dimensão do navio que chegava a medir entre 400 a 450 pés de comprimento em linha de flutuação; o “S” era o significado para máquina a vapor (“steam engine”) e o “C1” o design especifico do navio e o número de modificação, respectivamente, (“the specific ship design and modification number”).
Cada “liberty” tinha 441 pés (134 metros) de comprimento e 56 pés (17 metros) de largura. O sistema de propulsão era constituído por uma máquina a vapor de três cilindros alternativos, alimentada por duas caldeiras a óleo combustível e que produzia uma força equivalente a 2500 cavalos, permitindo o navio deslocar-se a uma velocidade de 11 nós (20 km/h). Os seus cinco compartimentos tinham capacidade para transportar mais de 9 mil toneladas de carga, isto fora os aviões, tanques e locomotivas que podia levar atados ao seu convés.
A cada um dos navios que era construído atribuía-se o nome de uma personalidade já falecida e que ao longo da vida tivesse contribuído significativamente para o engrandecimento da sociedade americana. Mais de 100 desses navios que foram construídos entre 1944/1945 receberam os nomes de marinheiros mercantes mortos durante a guerra. Contudo, houve uma excepção, embora não intencional. O SS Francis J. O´Gara recebeu o nome de um fuzileiro naval que se pensava não ter sobrevivido quando o cargueiro Jean Nicolet foi torpedeado por um submarino japonês no oceano índico, no dia 4 de Julho de 1944. Todavia, ele tinha sobrevivido e sido feito prisioneiro de guerra pelos japoneses, juntamente com o capitão do cargueiro, David Nilsson, e o operador de rádio, Augustus Tilden. Francis J. O´Gara foi mais tarde resgatado, em 28 de Outubro de 1945, de um campo-prisão de guerra japonês e viveu até 18 de Setembro de 1981, quando faleceu aos 69 anos.
O primeiro dos 2711 navios a ser construído foi o SS Patrick Henry, lançado ao mar no dia 27 de Setembro de 1941. As 250 mil peças que compunham o navio foram pré-fabricadas em várias partes dos EUA, em seções de 250 toneladas, e montadas em 244 dias pela Bethlehem Shipbuilding Cor-poration, no seu estaleiro naval Bethlehem-Fairfield, sito na cidade de Baltimore, estado de Maryland. O tempo record de construção pertence ao SS Robert E. Peary, construído em 4 dias, 15 horas e 29 minutos. Segundo Wise e Baron (2004), cada um dos navios da classe “Liberty” chegava a custar, a valores do ano de 1945, dois milhões de USD (34 milhões de USD em 2017). Assim, os 2711 navios terão representado para os USA um investimento de 5,522 mil milhões de USD (92,174 mil milhões de USD em 2017).
Acreditava-se à época que se um navio conseguisse realizar mais que uma viagem, conseguir-se-ia então recuperar o valor do investimento nele realizado. Ao todo, 50 desses navios foram dados como perdidos na sua viagem de estreia. Contudo, ao longo do período que durou a Segunda Guerra Mundial, dos 2710 (1 dos 2711 navios ter-se-á incendiado e ficado completamente destruído ainda quando estava em construção no estaleiro), apenas 196 (7,2%) foram dados como perdidos, incluindo aqueles que foram destruídos por tempestades, naufrágios ou outros infortúnios não atribuídos à guerra. Tendo os EUA saído vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, o programa de construção de emergência dos navios teve um retorno incomensurável para esse país.
John Emile Schmeltzer (1882-1943) foi um engenheiro sénior, director da divisão técnica de construção naval da Comissão Marítima dos Estados Unidos da América (USMC) que deu enormes contributos na construção dos “liberty ships” durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. Foi ele que defendeu que um investimento nos estaleiros navais era necessário para os tornar mais eficientes no processo de montagem dos navios, cumprindo-se assim a agenda de construção num período mais curto, o que, por sua vez, permitiria entregar um maior número de navios para satisfazer as necessidades da marinha mercante dos USA.
Sabe-se que John Emile Schmeltzer terá nascido no ano de 1882 na Pennsylvania, filho de pais franceses (Louis Schmeltzer e Mary Elisabeth Schmeltzer). Casou-se aos 34 anos com Anne Austin Schmeltzer, com quem teve dois filhos, John Emile Schmeltzer Jr. e Louis Bourke Schmeltzer. Ele faleceu, subitamente, na noite do dia 24 de Fevereiro (quarta-feira) de 1943 com a idade de 60 anos, durante uma viagem entre Providence e Washington DC. Em reconhecimento ao seu trabalho de mérito desempenhado na Comissão Marítima, o centésimo trigésimo quinto navio a ser lançado ao mar recebeu o seu nome, SS John E. Schmeltzer.
O SS John E. Schmeltzer foi lançado ao mar em Baltimore, Maryland, no dia 16 de Maio de 1943 e naufragou na madrugada do dia 25 de Novembro de 1947 nos baixios de Ponta de Peça Santo Antão, às 05h49 locais, quando seguia viagem do Porto de Rosário, Argentina, para Gotemburgo, Suécia. O Porto de Rosário é um porto fluvial localizado na cidade de Rosário, margem direita do rio Paraná, acessível a partir do oceano Atlântico, de onde dista 550 quilómetros. É um dos centros de exportação de mercadorias de maior expressão da Argentina e é o eixo de maior área portuária desse país.
Em percurso marítimo, a distância entre Porto Rosário e Gotemburgo estima-se em aproximadamente 13 mil quilómetros, enquanto Praia Formosa, na ilha de Santo Antão, dista desse local uns 7,4 mil quilómetros. Tendo em conta que os navios da classe a que pertencia o “SS John” deslocavam-se à velocidade de 20 km/hora, estima-se que, sem a realização de escalas, a viagem entre Rosário e Praia Formosa tenha durado cerca de 14 a 16 dias. Assim, o “SS John” deverá ter zarpado do Porto de Rosário entre os dias 09 e 11 de Novembro de 1947.
No momento em que o navio naufragou, segundo um documento oficial da Guarda Costeira dos Estados Unidos da América, encontrava-se ao leme o imediato Karl Skjaveland que mais tarde, em 12 de Janeiro de 1949, viria a ser julgado por negligência, pela sua conduta imprudente que terá culminado no encalhe do SS John E. Schmeltzer. O julgamento deu como provado os fatos incumbidos ao réu, tendo-lhe sido aplicada a pena de suspensão dos títulos de imediato e capitão por um período de seis meses.
Num trecho do documento supracitado diz-se que o capitão na data do naufrágio estaria próximo da idade da reforma, mas em momento algum faz referência à sua identidade. Numa investigação por nós realizada foi possível saber que no dia 22 de Julho de 1947, sensivelmente quatro meses antes do naufrágio, a lista de tripulantes do “SS John”, na chegada ao porto de Nova Iorque, era encabeçada pelo Capitão Alexander Ekke.
Alexander Ekke nasceu no dia 17 de Outubro de 1885 em Saarema, Estónia, e emigrou para os EUA com 27 anos de idade. As informações recolhidas indicam que ele prestou serviço na marinha e mais tarde passou a ser capitão de navios. Obteve a cidadania americana em 1919 quando tinha 33 anos. Faleceu em Nova Iorque em Setembro de 1962, com a idade de 76 anos.
Cruzando as informações até aqui avançadas, à data do naufrágio do SS John E. Schmeltzer Alexander Ekke tinha 62 anos, completados no dia 17 de Outubro de 1947. Assim, uma vez que no documento da Guarda Costeira Americana diz-se que o capitão do “SS John” no dia do naufrágio estava prestes a reformar-se, e se tivermos em conta que na última escala/chegada que o navio fez em Nova Iorque, no dia 22 de Julho de 1947, a lista de tripulantes era encabeçada por Alexander Ekke, é muito provável que fosse ele o capitão que estava a bordo do navio no dia em que ocorreu o naufrágio na Ilha de Santo Antão.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 842 de 17 de Janeiro de 2017.