“Tenho cerca de um milhar de obras pintadas e praticamente todas vendidas. Portanto, seria um disparate da minha parte dizer que não é um sinal de sucesso”, assume. Nesta entrevista, além de vários outros tópicos, o artista tece considerações sobre as artes plásticas e passa em revista a sua carreira profissional que dura já há 32 anos.
É pintor, escultor, designer e músico. Pessoalmente como se define?
O que sou resume-se àquilo que eu tenho no meu portfólio: ‘Kiki Lima, artista plástico, designer e músico’. São as partes mais conhecidas da minha actividade artística. Portanto, a minha actividade principal é de artista plástico, mais concretamente pintor e também escultor. A minha formação académica é de designer de comunicação e sou músico pelo gosto…
E pelo berço.
Sim, a música foi a minha primeira área artística, que é por sinal mais fácil de praticar e de se manifestar. Dei os primeiros passos na música aos 10 anos, infelizmente não progredi tanto quanto gostaria. Mas tenho planos futuros para a música, depois de passar à reforma. Como disse, a minha actividade artística centra-se na pintura. No design, apesar de ser a área da minha formação académica, tenho uma intervenção mais limitada. Já fui, no tempo, o primeiro designer cabo-verdiano com formação superior, mas a minha actividade nesta área resume-se àquilo que preciso fazer para os meus trabalhos e pouco mais. Já fiz mais, mas agora estou um pouco arredado.
Parece que a pintura foi uma escolha acertada, pois ganhou muito dinheiro com os seus quadros que figuram nos mais importantes espaços nacionais e também internacionais.
Acho que ganhei tudo. Em primeiro lugar, ganhei a satisfação de fazer uma coisa que me dá gozo, que me dá prazer. Não faço nada forçado e consequentemente organizei-me para me dedicar às artes plásticas. Assumo-me como profissional das artes plásticas desde 1986, portanto há 32 anos. Dou-me por satisfeito com o percurso que eu fiz; foi um percurso com bastante sacrifício. Dez anos depois de ter começado a pintar aqui em Cabo Verde, deram-me uma bolsa para estudar direito em Portugal, mas a minha opção era sempre para as artes. Estando em Lisboa, aproximei-me das escolas de artes e concretizei aquilo que eu definitivamente identifiquei como a minha vocação. Então deixei de me dispersar em outras coisas e concentrei-me nisso: matriculei-me na Escola Superior de Belas Artes para fazer pintura e escultura, mas acabei por desviar-me e fazer design e comunicação como parte académica. Depois investi na procura daquilo que fosse meu, portanto a minha própria personalidade na pintura. Neste ponto de vista acho que consegui, embora não esteja 100 por cento satisfeito, porque penso que há sempre mais coisas a fazer. Consegui construir uma carreira de 32 anos como profissional e no próximo faço 50 anos como artista plástico, como pintor. Mesmo que não faça mais nada, já é alguma coisa.
Já foi considerado o melhor o melhor pintor cabo-verdiano de sempre. Considera-se ainda o melhor?
Bom, não fui eu que me considerei. Eu acho que é muito arriscado dizer isto. Tenho defendido que nas artes é muito difícil dizer quem é o melhor. Agora, admito que haja uma aceitação bastante grande do meu trabalho. Não posso negá-lo, porque seria falsa modéstia, se olhar não só para a minha produção e pela quantidade de quadros vendidos. Tenho cerca de um milhar de obras pintadas e praticamente todas vendidas. Portanto, seria um disparate da minha parte dizer que não é um sinal de sucesso. Agora, ser o melhor ou não depende muito da preferência estética de quem olha. Eu assumo em parte este atributo, porque fiz por isso. Dediquei-me às artes plásticas em full-time com o fim de me impor no mercado e satisfazer aquilo que eu queria dizer. É através da pintura que eu digo o que quero. De facto, fiz um esforço que não me custou praticamente nada, a não ser as 12 ou 14 horas por dia que eu trabalho. É claro que não deixa de ser um estímulo ouvir isso que eu aceito perfeitamente, com as devidas restrições.
Qual é a sua técnica pictórica?
A minha técnica teve naturalmente uma evolução: a técnica adquire-se e encontra-se o aperfeiçoamento com a experiência. Como todos os artistas passei naturalmente por uma fase experimental, copiei, segui e estudei sobretudo os impressionistas franceses. Fiz um curso por correspondência que se baseava exactamente na técnica de pintura impressionista a óleo. Depois desviei-me, ou seja, fiz um percurso na continuidade com uma personalidade própria. Por exemplo, utilizo muito a harmonia de cores do impressionismo, mas com uma técnica diferente. Como sabe, a técnica do impressionista são pinceladas curtas e depois as cores misturam-se e dão a impressão de. Eu optei por fazer cor sim, mas com pinceladas longas e rápidas, fazendo uma coisa que o impressionismo não fez que é expressar o movimento através de gestos. Aliás, a pintura expressionista também, mas do ponto de vista temático difere um pouco disto. Portanto, digamos que eu estou no impressionismo e no expressionismo, mas com uma personalidade própria. Introduzi alguns aspectos na minha técnica que não existiam antes, nomeadamente o uso de paletas: deixei de usar paletas de braço, para usar uma mesa, porque passei a dar preferência a pinceis largos, ou invés de pinceis finos. Foi uma consequência lógica da mudança que eu fiz para exprimir movimentos e trazer menos pormenores, etc. Isto é uma inovação minha. Outra coisa que eu fiz, foi não me preocupar com o tempo que devo pintar um quadro: um quadro só está terminado, quando não tem nada que me chateie. E só está acabado, entre aspas, porque regra geral quando volto a olhar para ele já sinto que falta alguma coisa. Mas eu assumo os erros e os defeitos que estão nos meus quadros. A maneira de assumir esses erros implica reconhecer e emendar e esse corrigir é que ajuda também a exprimir o movimento. Ou seja, toda a dinâmica do movimento fica expressa no quadro pela assunção dos erros cometidos ao longo do processo. Do erro resultam quadros acabados que não são propriamente quadros acabados; são quadros acabados inacabados, porque ficam com um aspecto imperfeito, embora estando lá tudo. Outra técnica que não é propriamente minha é associar a mancha ao traço. Portanto, há muito desenho pela mancha, mas há também desenho pelo pincel: vou desenhando à medida que vou pintando, em função do que aparece no quadro.
Se se disser hoje que é o maior pintor cabo-verdiano poderá parecer exagerado, mas não deixa de ser mérito seu: as pessoas assimilaram a sua técnica e por isso já não surpreende tanto como há 20, 30 anos.
Sim, há pessoas a pintarem ao meu estilo, sobretudo estrangeiros. Acho que isso só reforça uma coisa que é fundamental na arte – cada artista deve procurar-se até se encontrar. Foi o que eu fiz. O encontrar-se pressupõe manifestar uma personalidade própria e é isso que faz a diferença entre os artistas e que faz avançar a arte. Penso que quando um artista pinta à maneira de, está a abdicar em parte da sua personalidade, porque todos nós identificamo-nos com algum estilo, e essa identificação é um caminho que se optou por seguir. Mas eu acho que o artista deve perseguir aquilo que faz a diferença. Naturalmente que isto dá trabalho, custa muito dinheiro, porque pintar é caro. Mas eu fico satisfeito ao ouvir isso, não como presunção, mas porque significa que marquei a diferença.
Gostaria de pintar como o Tchalé Figueira?
Não, porque Tchalé pinta a personalidade dele e eu pinto aquilo que eu sinto. Nisso acho que o Tchalé é um pintor autêntico e a autenticidade é que faz a personalidade do artista. Lá está, eu nunca pintaria como o Tchalé e eu penso também que ele nunca pintaria como eu. Independentemente de as pessoas gostarem mais de um ou de outro estilo, penso que cada um deverá manter o seu estilo se ele quiser ser autêntico ou for autêntico. Copiar não vale. Eu gosto de pintar como Kiki Lima, porque a minha fase de procura passou. Eu tive fases em que gostaria de pintar como Van Gogh, ou como Paul Cézanne… e fi-lo. Pintei, copiei, estudei, mas depois ultrapassei essa fase. Eu digo neste momento com orgulho que eu sou Kiki Lima, a minha pintura é Kiki Lima.
Os seus quadros decoram ministérios e as mais importantes instituições do país. O que significa isto para si?
É motivo de uma grande satisfação, até porque não é só em Cabo Verde. Tenho quadros em instituições portuguesas, em empresas europeias e em colecções privadas. É de facto uma grande satisfação, porque eu penso que o máximo que um artista pode desejar é ver que tudo o que pinta é consumido e figurar em determinadas instituições nacionais e estrangeiras é sinal de prestígio. Não há como negar isso, é, de facto, uma grande satisfação ao ver isso.
Alcançou quase tudo na pintura.
Devo dizer-lhe que consegui na pintura o que a maioria dos pintores não conseguiu. Não conheço, aqui em Cabo Verde, nem propriamente em Portugal, salvo raras excepções, artistas que tenham tido uma produção tão grande e com receptividade quase a 100 por cento. Isso em termos quantitativos, o que é um reflexo da qualidade. Desde que comecei a pintar os meus quadros tiveram boa aceitação. Vendi sempre os meus primeiros quadros, portanto os de 1974, 75 e 76 foram sempre vendidos e todas as fases da minha carreira tiveram resposta no mercado. Essa parte do mercado é importante, porque há quem considere que o artista não deve trabalhar para o mercado. Eu não trabalho para o mercado, mas o mercado é um barómetro da pintura. É claro que há outras coisas que influenciam…
O que não vende, não tem valor?
Como eu disse, o mercado é um dos barómetros. Nesse aspecto quem não vende, não será bom. Mas a história da arte ensina-nos que há pintores que não tiveram sucesso inicialmente e mesmo em vida, mas foram reconhecidos mais tarde. Portanto, não podemos olhar para a arte só sob o aspecto comercial, mas também sob o impacto social que possa ter. Mas isto é de menos-valia, digamos assim. O barómetro é o que vende, porque ninguém compra sem gostar. Mesmo que compre um quadro como investimento, tem de gostar para investir. Então, temos de conjugar as duas coisas: eu só compro porque gosto, já quer dizer que compro qualidade. Portanto, se o trabalho vende, é porque tem qualidade.
Há dez anos afirmou que os artistas não se confrontam entre si, nem discutem ideias. Alguma coisa mudou neste lapso de tempo?
De facto, de 2007 para cá passaram-se dez anos e acho que houve alguma evolução nesse sentido. Mas os artistas continuam a não se encontrarem, continuam a não se associarem, continuam a não discutir ideias entre si. Pelo contrário, sub-repticiamente tem-se dado alguma prioridade às críticas nas costas. Não obstante, acho que o ambiente melhorou, se calhar graças aos meios de comunicação que têm divulgado mais as obras dos artistas plásticos e esse diálogo estabeleceu mais através da comunicação social. Mas esta falta de diálogo é um pouco próprio das artes plásticas, porque nomeadamente a pintura é uma actividade muito individualista e acho que isso é típico do artista plástico que se fecha no seu casulo, não por se considerar melhor, mas por ser a melhor forma de ele se encontrar e de produzir. Mas eu continuo a dizer que, de facto, não há este diálogo profundo, inclusivamente não há uma associação de artistas plásticos credível – nós associamo-nos muito mal.
Qual a sua opinião sobre a tão propalada arte contemporânea?
Eu acho que o próprio termo é infeliz, porque aquilo que é contemporâneo é o que é do tempo presente. E uma das características desta arte contemporânea, ou seja, contemporaneamente nós vemos desde o ultrarrealismo até esses gatafunhos. Tudo isso é arte contemporânea. Agora ainda ninguém conseguiu demostrar que para pintar mesmo que seja pintura abstrata não se tenha que saber desenhar. É que o desenho não é só básico, é mesmo estruturante, porque colocar uma mancha é fazer desenho. Portanto, há sempre um critério ao colocarmos tinta na tela. E quem fá-lo sem critério, pensando que está enganando alguém, engana-se a si próprio, porque não consegue enganar. É que em toda as obras abstratas, sente-se o concreto por detrás, porque as obras abstratas pressupõem um processo de abstratização a partir do concreto. Portanto, aquela essência fica lá. Agora, aquilo que se tentou fazer um pouco nesse contexto de arte contemporânea é chegar ao abstrato sem conhecer o concreto. Então há uma falsidade, há um vazio, e isso não convence a ninguém, porque não tem sustância.
Joseph Beuys dizia que todos podemos ser artistas. Todos os que pintam são artistas?
Toda a gente pode ser pintor, mas toda a gente não é artista. Não é, e aí é que está a diferença. Pintar é colocar tinta sobre uma tela, ou sobre uma superfície: é pintura, mas pode não ser arte. A diferença está aí; muita gente pode pintar, mas nem toda a gente é artista.
Em Cabo Verde temos mais artistas, ou mais artífices?
Acho que Cabo Verde tem mais artífices, mas potencialmente tem muitos artistas. Agora, é preciso procurar essa diferença. O artista é um criador, o artífice é um executor de uma ou outra ideia. É o que faz a diferença entre o artesanato e as artes plásticas. O artista inventa, cria, é particular. O artesão é repetitivo, é utilitário, etc.
Portanto é da opinião que o artesanato é um género menor?
Eu penso que sim. Está-se a tentar dizer que não, mas é. O artesão pode inventar uma peça, mas fá-lo com um sentido utilitário e limitado. Ele vai repetir, mas não consegue tocar a inteligência do observador e acrescentar algo. Por exemplo, se eu digo a um designer ‘você é um artesão’ ele fica chateado, mas se disser e um artesão ‘você é um designer’ ele fica todo vaidoso. Porquê? Porque o designer acrescenta algo mais do que aquilo que faz o artesão. Aliás, esta polémica decorreu até há pouco no Centro Nacional de Artesanato, no Mindelo. Portanto, o design vem do artesanato, mas é muito mais avançado porque tem a componente do desenho, da concepção… O artesão não faz isso, ele não concebe a sua peça antes de a executar e diferencia-se do artista plástico, porque o artista plástico não trabalha para o público: ele concebe o seu trabalho e apresenta-o ao público; quem gostar compra, quem não gostar não compra, mas a obra em si continua a ser uma coisa individualizada – não há reprodução.
Voltando ao Kiki Lima. Fez uma colecção para a canarina Emicela, especializada em cafés e frutos secos. Como surge esta parceria?
Primeiro, não é uma parceria. A Emicela contactou-me e encomendou-me alguns trabalhos como artista plástico. Não interferiu no meu trabalho. Disseram-me apenas ‘nós somos uma empresa que vai produzir café em Cabo Verde e nós queremos dar enfâse ao café cabo-verdiano e queremos ter um artista de renome. Por exemplo, eles usam o Tito Paris na parte musical. Então o que é que me pediram? O tema é café. Depois de falar com eles pintei vários quadros sobre o café e quando viram os quadros compraram doze. Assinamos um contrato em que eles poderiam utilizar essas obras, dentro dos limites da lei, para promover a empresa. Portanto, eu não deixei de fazer o meu trabalho como artista plástico. Fiz exactamente o que faço sempre. Portanto, não estabelecemos nenhuma parceria; fizemos um contrato, eles pagaram o trabalho, depois satisfeitos com o trabalho, contrataram-me também para fazer publicidade. Ou seja, eles foram consequentes no trabalho.
Por razões ideológicas, seguramente não faria isso em 1974.
Eu acho que faria sempre, se tivesse o conhecimento disso. Mas em 1974 não se fazia isto. Depois, eu não vinculo o meu trabalho a ideologias. A minha ideologia é: trabalhar, pensar e mostrar a cultura cabo-verdiana, a cabo-verdianidade. Não tenho preconceitos em relação a nenhuma forma digna de usar o meu trabalho. Eu acho que usar o meu trabalho em publicidade não é indignidade, pelo contrário. Nós estamos a ver o impacto que teve, desde que sejam salvaguardados os meus direitos autorais. O que a Emicela fez muito bem: respeitou sempre, pagou sempre e fez coisas que me promoveram que é uma compensação como artista, sem deixar de fazer aquilo que eu fiz. Repare, por exemplo, que as chávenas e os pacotes de açúcar não diminuíram a minha arte, muito pelo contrário: divulga, torna conhecida e mete lá a minha assinatura.
Para terminar. Que recados envia ao Ministério da Cultura?
Eu acho que tem sido feito muita coisa, embora haja ainda muito a fazer. Lembro-me que quando fiz a minha primeira exposição, nunca tinha visto uma exposição de pintura. A minha exposição tinha sido feita em 1975 pelas mãos do Manuel Figueira, Bela Duarte e Luísa Queirós. Eu era um jovem de 21 anos e nunca tinha visto uma exposição. Hoje as coisas são bem diferentes. Portanto, há um caminho que já foi feito e que tem que ser continuado. Acho que nesta fase o ministério tem que continuar a apoiar financeiramente a criação das artes e sobretudo a formação de artistas, ou instituições que trabalham para este fim.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 852 de 28 de Março de 2018.