Fazer chegar o LIVRO a cada canto de Cabo Verde

PorChissana Magalhães,29 abr 2018 7:09

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Com o Plano Nacional de Leitura em fase de montagem e a iniciativa presidencial “Ler mais, Saber mais” a descentralizar-se, há cada vez mais sinais de que a sociedade civil também está a abraçar a leitura e a proliferação de livros como um desígnio nacional. Afinal, para ler mais é fundamental ter acesso aos livros.

Em Novembro passado, à margem do festival Morabeza - Festa do Livro (promovido pelo Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas), o escritor angolano José Eduardo Agualusa disse, em entrevista ao blogue Bússula Literária, que “o grande desafio de Cabo Verde é levar o livro a todas as famílias”. É que para o escritor angolano essa é a explicação que encontra para o pouco desenvolvimento que, na sua opinião, regista a literatura nacional.

“É fácil entrar em casa de alguém e ver que sempre tem um violão, sempre tem alguém que toca. Mas, normalmente não têm livros. Enquanto não houver livros em todas as casas de Cabo Verde, não vamos conseguir desenvolver a literatura”, disse então.

Mas a utilidade da leitura, é sabido, não é apenas fazer evoluir a produção literária. É a própria literacia (de modo geral) da população que cresce, resultando numa sociedade mais pensante e critica. Algo que o escritor Rony Moreira defendeu em tempos não ser do interesse da classe política (reportagem Novas Letras, edição nº 780, de 09 de Novembro, de 2016 do Expresso das Ilhas).

Como que para contrariar o jovem escritor, meses depois o Presidente da República viria a lançar a iniciativa “Ler mais, Saber mais” em que durante uma semana e através de conferências, sessões públicas de leitura e uma feira do livro no Palácio da Presidência se procura sensibilizar os cidadãos (principalmente os mais jovens) para a importância do livro e da leitura.

Mas na verdade, este empenho do presidente Jorge Carlos Fonseca (também ele escritor) no estímulo à leitura já vinha de antes. Nos seus discursos e intervenções públicas, particularmente em escolas e universidades, apontou sempre aos jovens a leitura como caminho para uma cidadania mais consciente e um intelecto rico.

Este ano, a iniciativa que também é apresentada como tendo por propósito apoiar institucionalmente outros projectos de promoção da leitura, deixou os salões e o jardim da presidência para ir ao encontro das comunidades. O casal presidencial dividiu entre sí visitas a escolas básicas e secundárias – na manhã de ontem, enquanto o Presidente fazia a entrega de livros para a biblioteca da escola básica de Achada-Lém (Santa Catarina de Santiago) a primeira-dama tomava parte numa sessão de leitura com os alunos da Escola Miraflores, na cidade da Praia - sendo que também convidou alguns escritores para sessões de leitura e conversa com as crianças e adolescentes da escola básica do Paiol.

Sociedade Civil abraça a causa

O Facebook – frequentemente apontado como inimigo do livro e da leitura – também serve para nos fazer descobrir um vídeo onde vemos crianças a percorrem ruas, cafés e mercados, de livro em mãos, fazendo parar os adultos para as ouvirem ler contos infantis. O vídeo em questão foi criado para divulgar a iniciativa “7 Vozes 7 Livros 7 Espaços”, concebida e coordenada pela socióloga Conceição Delgado e concretizada pelas crianças do Centro de Dia “Orlandina Fortes”, em São Vicente.

Na segunda-feira, Dia Mundial do Livro, o projecto teve mais uma edição e as crianças do Centro coordenado pelo Instituto da Criança e do Adolescente (ICCA) saíram novamente às ruas e invadiram espaços públicos para partilhar a leitura.

“O objectivo é, pela voz das crianças, fomentar a leitura e também a escrita, fomentar a literacia e também estimular nas crianças o raciocínio lógico e fazê-las vivenciar a leitura fora das salas de aula”, explica Conceição Delgado no referido vídeo onde podemos assistir a imagens enternecedoras como a de uma menina que lê para um grupo de mulheres, aparentemente vendedeiras de um mercado.

Numa ilha frequentemente acusada de priorizar a “sabura” – ilustrada nos muitos festivais de música organizados pela edilidade e por privados – os promotores desta iniciativa informal e sem ambições mediáticas estão empenhados em ir contra a corrente, fazê-la vingar e até alargá-la, incluindo adolescentes e talvez mesmo adultos no grupo de “leitores públicos”.

Também a partir da ilha de São Vicente porém, neste caso com uma pequena comunidade da ilha de Santo Antão como destino final, o projecto “Viajando Entre as Palavras” continua o seu propósito de ajudar a combater a exclusão cultural através da criação de pequenas bibliotecas comunitárias em comunidades remotas, onde mais dificilmente se tem acesso ao livro.

Afinal, nesta luta pelo incremento do hábito da leitura e da literacia, a palavra-chave é mesmo esta: acesso. Constatando o óbvio, para se ler mais há que se ter livros. E se mesmo nos maiores centros urbanos do país persiste alguma dificuldade nesse acesso - nomeadamente no que toca a um maior número de bibliotecas públicas e aos preços dos livros – o que dizer de uma pequena aldeia do interior de Santo Antão, num dos municípios mais pobres do país?

Acesso

Idealizada e implementada por estudantes da Universidade de Cabo Verde, em São Vicente, sob a orientação técnica e científica da professora Celeste Fortes e com apoio do Corpo de Voluntariado, a primeira edição do projecto “Viajando Entre as Palavras” conseguiu, em 2015, montar uma sala de leitura na comunidade de João Afonso (em Santo Antão) deixando uma biblioteca equipada com 700 títulos, num total de mais de 2500 livros.

“A sala de leitura Davi Tolentino tornou-se um espaço cultural de referência para a comunidade”, dizia um dos elementos da iniciativa sociocultural num artigo do Expresso das Ilhas sobre o projecto, em Janeiro deste ano. Nessa altura, estava a arrancar uma nova campanha de angariação de livros com o fim de criar uma nova biblioteca, desta vez na localidade de Pontinha de Janela, em Paúl.

Três meses depois, a equipa de 25 elementos que integram o projecto desembarcou esta segunda-feira em Santo Antão com a missão de, em sete dias, criar e apetrechar de livros uma sala de leitura, com a particularidade de recorrer à reciclagem de caixotes de fruta para criar as estantes.

Quando, em 2014, constataram a escassez de livros e a dificuldade de acesso a estes que tinham os cerca de 12 mil estudantes do ensino superior em Cabo Verde, um grupo de cidadãos decidiu associar-se e criar, na Cidade da Praia, a Livraria Pedro Cardoso (LPC). Mais do que uma livraria, seria também uma editora.

Mário Silva, o sócio representante do empreendimento, escreve no editorial da recentemente lançada revista da livraria – a Leitura, que também assume como meta “contribuir para que a actual e as próximas gerações tenham uma relação mais íntima com o livro – que o ambiente na inauguração do projecto editorial era de “optimismo quanto ao futuro do livro”.

O seu optimismo, hoje, mantem-se quanto aos hábitos de leitura dos cabo-verdianos: “Não comungo dessa ideia pessimista de que não se lê. Cada vez se lê mais. A literacia tem aumentado. Temos doze mil estudantes no ensino superior que finalmente começam a ter acesso ao livro. Mas, claro, poderia se ler muito mais.”

Em três anos, a LPC editou 37 obras. Romances, teses de doutoramento, livros para o público infantil, entre outros. Num nicho especial encontram-se as reedições de livros raros e clássicos da literatura nacional. O caso do romance “O Escravo”, de José Evaristo D’Almeida , é especial já que a livraria arriscou a tiragem de 1000 exemplares, quando a sua média habitual é de 500. Lançado em Abril de 2016, a previsão é de que a obra esteja esgotada dentro de dois ou três meses. Portanto, pouco mais de dois anos depois da sua publicação. Algo impensável há alguns anos.

O que mudou? Acesso, principalmente. É que a LPC possui, como já referimos, apenas uma livraria física todavia, aposta na disponibilização dos seus livros a partir de plataformas digitais (entre elas a FNAC, a Wook, a Bertrand…) e na descentralização da oferta com a realização de feiras do livro em diferentes municípios do país.

“Neste momento decorre, com grande sucesso a nossa feira do livro em Ribeira Brava, São Nicolau. Em São Domingos – onde pela primeira vez aconteceu uma feira do tipo – também foi sucesso. Ainda este ano iremos à Brava”, conta-nos Mário Silva anunciando o objectivo de ritualizar as feiras e fazê-las chegar a todos os 22 municípios.

“Estou optimista quanto à leitura, mas é necessário uma política clara do livro. Nos últimos 43 anos a prática não tem acompanhado os discursos. Há esperança de que o Plano Nacional de Leitura venha a alterar isto, mas é necessário sabermos o papel do Estado, da Biblioteca Nacional (BN) e do Governo, porque temos tido sinais contraditórios”, acrescenta o mesmo.

O jurista e professor universitário especifica a sua preocupação com a constatação de que o Governo não tem apoiado a edição de livros – nem mesmo de livros raros - mas investe na realização de um festival literário quando a Câmara Municipal do Sal, em parceria com privados já avançara com um.

“E agora a Biblioteca Nacional parece que vai ser outra vez editora… Vai ser concorrência aos privados? Isso de editar livros esgotados era algo que estávamos a fazer… A política era desactivar a BN enquanto editora. Agora voltou a editar. Não dá estabilidade aos privados”, conclui.

O propósito de dotar cada família cabo-verdiana de livros parece assim abraçado por diferentes actores sociais, esperando-se sempre que surjam mais iniciativas e que se afinem desde já as estratégias para que cada um desempenhe o respectivo papel nesta cadeia com vista a um futuro onde não apenas se dilate o número de leitores mas igualmente a qualidade da literatura nacional.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de Abril de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,29 abr 2018 7:09

Editado porAndre Amaral  em  29 abr 2018 17:58

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