​“Nha Bibinha Kabral – bida y obra”

PorChissana Magalhães,9 jun 2018 8:08

Nha Bibinha Kabra
Nha Bibinha Kabra

Os 30 anos da publicação do livro “Nha Bibinha Kabral - bida y obra”, de Tomé Varela, são o pretexto para recordamos essa personagem incontornável do batuco e da cultura cabo-verdiana.

Referenciado em vários sites e páginas de internet, em artigos académicos e jornalísticos, esta obra de Tomé Varela da Silva foi publicada em 1988 pelo Instituto Cabo-verdiano do Livro (ICL), na cidade da Praia integrado na colecção Tradições Orais, que também inclui os títulos “Finasons di nha Nasia Gomi” (1985, a sua primeira obra) “Nha Guida Mendi: simenti di onti na txon di manhan” (1990), formando uma trilogia dedicada ao batuco e finason.

Com 288 páginas que incluíam texto e fotografias, e escrito em crioulo, “Nha Bibinha Kabral - bida y obra” foi então distribuído apenas na cidade da Praia (algo comum à época), não se conhecendo outras edições do mesmo.

O livro é um dos documentos mais completos sobre a batucadeira nascida em Trás-de-Monti, Tarrafal de Santiago, em 1899 e é uma das principais referências da antropóloga e jornalista Gláucia Nogueira que também se debruçou sobre a vida e obra de Maria Mendes Cabral no livro “Batuku de Cabo Verde – percurso histórico”.

A vida de Bibinha Cabral não se conta desentrançada da sua ligação ao batuco. Mas antes da musicalidade ancestral fazer parte dos seus dias a cantadeira foi marcada pela realidade da época, que ditava que raras crianças na sua condição frequentassem a escola, mais distante ainda a possibilidade para as meninas. O analfabetismo não foi, entretanto, impedimento para que se tornasse uma biblioteca viva no que aos saberes tradicionais respeitasse.

Foi na adolescência, entre os dez e os catorze anos, que Nha Bibinha Cabral terá iniciado a aprendizagem de batuco e finason. “Contudo, por volta dos 19 anos, o noivo e futuro marido, que era sacristão – recorde-se que a Igreja condenava o batuque, apontando a sua dança como lasciva –, proíbe-a de participar nestas festas. Ela obedece, ficando 37 anos afastada das cantorias”, escreve Gláucia Nogueira.

No seu livro, Tomé Varela fala na data de 1920 como sendo a do casamento da tarrafalense cujo marido seria mais velho uns 15 anos e de quem teve oito filhos. Este terá emigrado para os Estados Unidos da América o que garantiu a Nha Bibinha anos de prosperidade, com casa própria e terras. O cenário viria a alterar-se drasticamente quando este falece, em 1945, e ela passa a enfrentar uma dura situação de pobreza. A irmã, Francisca da Veiga (Nha Tchicha) também batucadeira, seria um dos seus apoios.

As autoridades do concelho viriam, anos depois, a conceder-lhe uma moradia e uma pensão social. Antes, foi através do batuco que garantiu o seu ganha-pão. Mas era sobretudo uma paixão.

“Cantava por uma necessidade intrínseca de sentir alegria e de afastar a tristeza moral e material, e por uma necessidade extrínseca de sentir-se rodeada de “sabura” pela alegria que ela semeava no coração das pessoas, com suas cantigas contagiantes, que se tornaram uma presença necessária na maior parte das festas do seu conselho e não só”, traduz do crioulo Gláucia Nogueira, passagem de “Nha Bibinha Kabral” de Tomé Varela citada no seu livro.

É assim que, anos depois da morte do marido, ela regressaria aos terreiros o que, conforme “Bida y Obra”, nem sempre foi aprovado pela população local devido á sua idade que contrastava com mulheres mais jovens (a reverência e o respeito enquanto lenda do batuco só viriam anos depois). Aliás, do início ao fim do período colonial pouca ou nenhuma era a aceitação que o batuco tinha junto das autoridades e nos ambientes formais. Umas décadas antes da cantadeira nascer, publicavam-se documentos oficiais a proibir sessões de batuco na cidade da Praia, prevendo a prisão de quem infringisse a norma.

A viragem viria com a independência nacional. No pós-independência, o regresso às raízes, a valorização da matriz cultural africana, incentivava a celebração da cultura e Nha Bibinha era um dos personagens de destaque nas actividades que, em Santiago, se promoviam, chegando a subir aos grandes palcos da capital para fazer soar o batuco que trazia de Tarrafal.

E o finason de Nha Bibinha trazia a sua vida, sofrida, mas também o olhar atento que lançava à realidade que a cercava, sobretudo a das mulheres suas conterrâneas, e muitos conselhos e ensinamentos. E tanto o livro de Tomé Varela como outras fontes sublinham a alegria também contida nos seus batucos e nos terreiros onde eles nasciam e amadureciam.

A biografia de Nha Bibinha Cabral e o seu contributo para a cultura nacional despertaram o interesse de Tomé Varela que, nesse contexto de resgaste cultural e preservação das tradições orais, iniciou a pesquisa que viria a dar origem ao livro. “ Nha Bibinha Kabral – bida y obra” seria publicado três anos após a morte da cantadeira (Tarrafal,1985).

Antes, em 1982, o realizador norte-americano Gei Zantzinger faria, talvez, o único registo audiovisual da batucadeira ainda existente: o filme “Songs of the Badius” que chegou a ser exibido na mostra de cinema cabo-verdiano que em 2010 integrou as comemorações oficiais do aniversário da Independência Nacional.

O lamento que Nha Bibinha faz no filme quanto ao desinteresse das novas gerações pelo batuco (na altura estava-se em plena febre da música electrónica) não deixaria adivinhar o “boom” que viria a registar-se a partir do início da década de 2000, quando o batuco virou moda e, para além dos grupos de batucadeiras trajadas a rigor e com discos gravados, emergiu a chamada “geração Pantera”, com destaque para Princezito que desde criança seguia com curiosidade a lendária anciã, uma das suas maiores referências. 

Este texto foi originalmente publicado na edição 862 do Expresso das Ilhas

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Autoria:Chissana Magalhães,9 jun 2018 8:08

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  10 jun 2018 9:58

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