Artes Plásticas: A infância segundo os Levy Lima

PorChissana Magalhães,23 jun 2018 11:16

​Há um ano protagonizaram com outros dois elementos da família uma exposição memorável. No Palácio da Cultura Ildo Lobo os irmãos e sobrinho/filho Levy Lima instalaram as suas telas e instalaram-se. Enquanto recebiam os visitantes que durante um mês passaram pela mostra, David e Luis Levy Lima criaram novas obras. O resultado está na exposição “O Futuro é das Crianças”, patente no Hall do Palácio da Assembleia Nacional até 08 de Julho.

Dificilmente o lobby do edifício da Assembleia Nacional esteve alguma vez tão colorido como por estes dias. Entrando no edifício somoS imediatamente abraçados pela profusão de cores que se espalham pelas grandes telas distribuídas pela cerca de uma dúzia de placards ali instalados. Olhares fortes, inocentes e também risonhos de crianças nos acompanham à medida que adentramos o universo partilhado por tio e sobrinho. Uma partilha não apenas de um espaço físico de exposição, mas principalmente de linguagem, de olhares e até mesmo de angústias, como mais adiante saberemos.

A partilha de um momento – no dia 11 de Junho do ano passado, durante a exposição “Duas gerações, quatro artistas” – quando juntos realizaram, no Palácio da Cultura Ildo Lobo, a performance “Pintura ao Vivo”, resultou nesta exposição inaugurada a 08 de Junho. Na ocasião, tio e sobrinho pintaram algumas das obras que hoje se encontram expostas no Palácio da Assembleia e do momento, do qual fizeram também parte activamente muitas crianças que foram assistir, resultou uma ligação ainda mais forte entre os dois que se aperceberam de pontos em comum no seu trabalho.

“O meu tio disse então, respondendo a alguém que perguntou “porquê [pintar] crianças?”: “Cabo Verde é a terra das crianças e o futuro pertence-lhes”. Por isso o título desta exposição não podia ser outro”, explica Luís Levy Lima deixando sempre transparecer a admiração e carinho que dedica ao tio – um afecto quase que de avó e neto, explicado talvez pela grande diferença de idade que há entre os dois.

As semelhanças e diferenças no trabalho dos dois são evidentes até para quem não é especialista em artes. Os traços de David Levy são mais esbatidos, quase imperceptíveis em algumas telas. Os de Luís bem definidos e marcados. O tio privilegia o momento, aprisiona na tela o tempo da história ilustrada. O sobrinho é mais de feições, de expressões, liberta em cores e traços o sentimento. As semelhanças encontramo-las nos temas: crianças, mulheres, lugares… Cabo Verde. Em múltiplos registos e elementos, Cabo Verde.

“Na exposição do ano passado percebemos que tínhamos mais coisas em comum do que pensávamos”, diz Luís, que garante que esta a partilhar esta mostra com o David não é por serem tio e sobrinho mas por terem essas coisas em comum. “Empatia não se explica”, resume.

Montar as 33 telas que dão corpo à exposição “O Futuro é das Crianças” não foi tarefa fácil. A princípio, tudo correu mal. A companhia área que os trouxe de Lisboa cancelou o voo. Chegaram dois dias mais tarde do que o previsto e…as malas com as obras ficaram para trás. Quando a transportadora área finalmente as fez chegar a Praia já só tinham escassos dias para montar a mostra. E o inesperado voltou a acontecer, a presidência da Assembleia Nacional, de quem partiu o convite aos dois artistas para exporem não tinha preparada uma estrutura para apoiá-los na montagem. Valeram-lhes os amigos. Como a pintora Nela Barbosa que emprestou os placards e Heleno Barbosa, técnico do Palácio da Cultura, que os assistiu incansavelmente em toda a logística.

Já antes, durante esse um ano que separa as duas viagens a Cabo Verde, ambos passaram por momentos difíceis. “Tivemos os dois momentos difíceis e complicados nesse intervalo. Eu estive hospitalizado e andei a trabalhar a 50 ou 40% do que o habitual. Ele também passou por coisas complicadas”, confidencia o mais velho. “Mas também é um desafio e os desafios são para ganhar. Não entro em desafios para perder”, acaba por assumir.

As peripécias, dizem agora, dão um sabor especial à exposição. “A adversidade tem um grande papel”, declara David, que vê a concretização da exibição como um momento de superação.

“Ontem, na inauguração, estávamos um pouco vulneráveis e ter os amigos aqui foi especial. Sentimo-nos acarinhados. Esta exposição é também um bocado diferente e com uma carga emocional forte”.

É fácil a quem visitar a mostra perceber a que se refere o jovem artista. Mesmo quem não conhecer mais intimamente a história dos Levy Lima poderá ler nas telas, principalmente aquelas que retractam crianças, histórias da infância em Cabo Verde, muitas delas duras, de inocências perdidas. De esperança e superação outras. Ou simplesmente da liberdade que também caracteriza ainda o ser pikinoti nas ilhas.

Quando lhe perguntamos se se revê nos quadros de crianças, David emociona-se. As memórias da sua vivência de menino em Santo Antão trazem lágrimas.

“Eu quase que não tive infância. Eu brinquei, sim. E para brincar quase que tinha que pedir licença. Eram 11 irmãos e eu era o mais velho. Tinha que tomar conta dos outros e fazer as tarefas de casa”, conta-nos. Mais adiante, diz ter por cada um dos irmãos uma grande admiração.

Olhando novamente para as telas em exibição, arriscamos dizer que Luís recria a infância dura do tio, enquanto que este pinta aquela que foi testemunhando e gostaria de ter vivido mais: a meninice das brincadeiras, dos jogos de bola, carambola e oril, do contar e ouvir estórias.

“É quase isso”, admite Luís, explicando que as suas angústias existenciais são passadas para as telas de forma simbólica, sobretudo através dos animais que pinta. E mostra-nos o quadro onde pintou o rosto de um tigre (que diz ser Richard Parker, o felino da história “A Vida de Pi”) explicando tratar-se de um auto-retrato. “Há ali um pintar-me sem me pintar”.

David, que concorda que o sobrinho reproduz em subtexto a dureza da sua meninice, diz que não poderia jamais pintar ele mesmo a sua infância pois seria demasiado perturbador.

“Os trabalhos que aqui estão são os que escolhemos para estar aqui”, diz o mais velho dos pintores sobre as telas expostas. E repete, talvez lembrando as peripécias para trazer as obras a Cabo Verde, talvez referindo-se ao seu percurso de vida: “A adversidade faz-nos crescer, obriga-nos a crescer”.

Luís, não consegue conter o riso: “Ele tem 72 anos e ainda fala em crescer!”.

E uma vez mais transparece a cumplicidade entre tio e sobrinho tão bem traduzida na mostra conjunta que antecipa um futuro mais colorido para as crianças cabo-verdianas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 864 de 20 de Junho de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,23 jun 2018 11:16

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  23 jun 2018 16:39

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