“O ano de 2019 vai ser o ano da reflexão… Estou a (tentar) dar um tempo do teatro e repensar tudo, para voltar com mais força”. Esta é a “novidade” que Patrícia Silva nos adianta quando em conversa lhe perguntamos se há algo novo em relação à sua actividade no teatro que podemos adicionar a este texto, planeado há já algum tempo. Conhecedores que somos das muitas vezes que este afastamento já foi anunciado e não cumprido, manifestamos a nossa dúvida. Afinal, lá diz o ditado: quem corre por gosto não cansa.
“Já estou afastada da ALAIM... Falta só “Blimund”, assegura a professora entre risos, referindo-se à sua outra ocupação enquanto professora do Ganga, grupo juvenil de teatro da Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo.
É a própria a assumir que a sua relação com o teatro navega entre a dor e a paixão. “Vivo entre estes dois extremos”. E isto é assim porque Patrícia Silva não consegue dedicar-se àquilo que escolhe fazer sem ser com intensidade e entrega. O que, perante as dificuldades que o fazer teatro em Cabo Verde e conciliá-lo com o trabalho de professora, implica algum desgaste.
Mas, comecemos por lembrar o início desta aventura:
“Comecei a fazer teatro em 2008, no curso do Centro Cultural Português de Mindelo. Logo depois fundamos o Grupo de Teatro do Centro Cultural do Mindelo, que mais tarde veio a extinguir-se. Depois de fazer o curso do CCP-Mindelo comecei também a dar aulas de teatro. Descobri então não só a minha vertente actriz como também a minha vocação para professora de teatro”.
A docente do ensino secundário revela que gosta de trabalhar de forma diferente com os seus alunos, usar metodologias alternativas. De modo que o teatro “também aí, me serviu”.
“Como forma de passar o conhecimento de forma mais rica e criativa”, em 2009, enquanto professora da disciplina Formação Social e Pessoal deu início a um programa de aulas extracurriculares, aos sábados, em formato teatro.
“Só que eu tinha dez turmas! Então era uma [aula] turma a cada sábado, o que significa que o intervalo de aulas para cada turma era enorme. Tinham que esperar muito até ter nova aula-teatro. Foi muito difícil mas, ainda o fiz por dois anos. Os meus sábados eram assim: de manhã trabalhava com as minhas turmas e á tarde com o grupo do Centro Cultural do Mindelo. Nesses dois anos fizemos espectáculos nas escolas, pequenas performances e sketches”, recorda.
Foi nesse contexto que decidiu realizar um casting entre os seus alunos para integrar elementos à peça que estava a encenar com o grupo de teatro do CCM, “Blimund”.
Até pôr a peça em palco foram algumas as etapas, começando por uma pesquisa. A lenda oriunda de Santo Antão, sobre o boi rebelde que inquieta reis e soldados, é das mais populares de Cabo Verde e como já temos referido tem sido recorrente a sua adaptação (e reinvenção) às mais variadas expressões artísticas. Desde a literatura infantil, como nos livros de Leão Lopes e Celina Pereira, à música, em que encontramos a versão de Bau (a partir do original de Travadinha) registada no disco de 2002 intitulado “Capeverdean Melancholy”. Também no cinema o “boióna” meteu os cornos: em “Ulime”, a curta-metragem de Tambla Almeida (lançada em 2010), o actor Herlandson Duarte transfigura-se no bovino “revolteód” ao ostentar uma icónica caveira de boi. Em anos mais recentes, duas novas releituras do mito através do teatro-dança: “Munda”, de Sara Estrela, e “Boilimundo” de Djam Neguin.
Patrícia Silva vê este conto da tradição oral cabo-verdiana como “uma história originária de Santo Antão mas que acaba por ser a história de todos os cabo-verdianos. Porque o “boióna” é o símbolo da nossa liberdade. Uma metáfora que se usou para falar da nossa luta pela independência”.
Assim, antes deste “Blimund” re-imaginado pelo dramaturgo Caplan Neves ir às escolas, estreou nos palcos - em 2009, numa parceria com o ICCA – e de seguida encantou miúdos e graúdos no maior festival de teatro do país, o Mindelact, em 2010. Foram várias as apresentações.
Quando a trupe do CCM desmantelou-se “achamos que era um projecto muito interessante para morrer e quisemos dar continuidade”. Era o projecto “Blimund nas Escolas” a nascer, faz por estes dias dois anos.
“A ideia de levar “Blimund” às escolas é precisamente porque é um conto tradicional, porque é investir na dramaturgia nacional”, refere a professora que gostaria de divulgar esta história junto ao máximo número de crianças e por isso resolveu “tirar o espectáculo da nossa zona de conforto, que é uma sala de espectáculo, e sair para as escolas onde é mais fácil chegar a um grande número de crianças”.
O desejo é chegar ao maior número possível de escolas do país mas, as dificuldades são quase tantas quanto as que afligiram o boi “revolteód” quando “Nhô Rei” investiu contra ele com todo o seu poderio. Até para trazer o espectáculo à capital a trupe “suou”. Graças ao convite da companhia Fladu Fla, que realizava o festival internacional TeArti, ao patrocínio do banco BAI para a viagem, e às portas abertas de amigos e familiares que os receberam, foi possível chegar a centenas de crianças da ilha de Santiago.
“ Foi especial”, dizia-nos Patrícia Silva em Outubro passado, poucos minutos depois de deixar o palco do Palácio da Cultura Ildo Lobo e ainda nas suas vestes de fada azul que encantou as crianças da plateia. Constatando o feedback positivo, a actriz e coordenadora do projecto admitia então a grande emoção que sentia nessa comunhão com os pikinotis. Afinal, fazer teatro para crianças “é mais difícil do que para adultos, porque elas são sinceras e se não gostam mostram logo”.
Por isso mesmo, apesar de muito elogiar o texto de Caplan Neves, diz que nesta versão que têm levado às escolas optaram por estar “menos focados no texto e mais no trabalho dos actores; [há] mais interactividade e participação das crianças”.
Por estes dias, contrariando a anunciada ideia de fazer uma pausa, tem usado as redes sociais para angariar apoios para dar continuidade ao projecto. A ambição agora é levar “Blimund” à ilha da Boa Vista.
“Este projecto precisa de muitos abraços para continuar... Várias são as adversidades, mas se tivermos muitos amigos a apoiar-nos ganharemos "força para acreditar..."”, escreveu na sua página do Facebook.
Foi dali que trouxemos a fotografia acima que Patrícia Silva fez acompanhar do seguinte texto, a ilustrar bem a ambiguidade de sentimentos de quem aqui faz teatro:
“Quando olho para esta foto e penso na primeira escola a que levamos a história do #blimundo fico contente com o nosso percurso. Caminho difícil. Muitos momentos de desânimo. De frustração. Mas faria tudo outra vez. Porque as crianças são, sem dúvida, o melhor do mundo e nos enchem de energia para enfrentar este mundo...”.