Estávamos em 1998.
Nos bastidores do palco, eu estava nervosa – extremamente nervosa. A música que escolhi fez com que recaísse sobre mim a responsabilidade de abrir o espectáculo. Era suposto essa música ser tocada apenas pela banda. Mas não abri mão, insisti em cantá-la. O meu argumento era irrefutável. A música era do meu avô.
Os músicos estavam já no palco, a postos. Soam os primeiros acordes. O meu coração dispara. Reúno a coragem, respiro fundo para me acalmar. A música é rápida, precisa, não há tempo a perder ou perde-se o pé, o compasso, a respiração. Avanço até ao centro do palco sem sequer olhar em volta. Pego no microfone e começo a cantar. Entro concentrada no ritmo, na letra, na harmonia. A ansiedade, tentei que ficasse lá atrás.
Todas as circunstâncias contribuíam para o significado, para a tremenda carga emotiva do momento.
Naquele concerto memorável, organizado pelo Congresso Dos Quadros Cabo-Verdianos da Diáspora, juntavam-se músicos e cantores de várias gerações, e oriundos das várias comunidades caboverdeanas pelo mundo. Uma miúda como eu era na altura, sentia-me encantada por me ter sido dada a oportunidade de estar ao lado de pessoas que sempre admirei, como Ildo Lobo, Mirri Lobo, Chico Serra, Djosinha, Jorge Sousa. E de conhecer outros jovens mais próximos da minha geração, como Mariana Ramos e Nazálio Fortes, entre tantos outros. Já nem sei dizer quem mais lá estava. Confesso que passei boa parte do tempo a recolher autógrafos daquelas lendas vivas, que ainda hoje guardo com carinho.
Algures no público, estavam os meus pais. A minha mãe sempre teve uma atitude desprendida com as minhas cantorias. Ainda hoje, quando lhe dizem que canto bem, responde invariavelmente, “ah sim, ela tem a mania de abrir a goela”. Mas daquela vez a emoção do momento atraiçoou-a. Foi a única vez em que vi escapar-se-lhe uma lágrima.
Além de tudo isto, era a primeira vez que cantava no Mindelo, cidade onde não nasci, mas onde estão enterradas bem fundo as minhas raízes, e que povoa o meu imaginário desde menina. Era também a primeira vez que cantava no Éden Park, espaço tão intimamente ligado à história da minha família.
Cresci a ouvir histórias sobre este cinema fundado pelo meu bisavô, César Marques da Silva. Histórias sobre o meu avô Antoninho, pianista dos Ritmos Caboverdeanos, banda que também integrava os seus irmãos, Djosa e Lulu Marques. Do sentido de humor de todos eles, lendário. E claro, também as histórias da minha mãe, de como às vezes tentava entrar à socapa no cinema, mas era sempre detectada e expulsa pelo tio José. Convenhamos, difícil seria que passasse despercebida, tendo em conta que tinha os cabelos loiros, quase brancos, cor de palha, herança de um avô inglês de quem só sabemos que assobiava muito, o que lhe valeu o nominha de Subiador. Tão loira que, quando passou um filme com uma actriz igualmente loira e sensivelmente da mesma idade, de nome Haley Mills, as pessoas lhe perguntavam na rua: “Oh mnininha! É bô que ta entrá naquel filme que ta lá na Éden Park?”, ao que ela, despudoradamente, respondia “É mim, sim!”, sentindo-se por segundos, talvez, uma das muitas estrelas da constelação que via brilhar naquele cinema.
Vou cantando a música, “Na entrada de Éden Park, m otcha um zorre ta tchorá” mas uma réstia de medo persiste em mim. E se falho, se saio do ritmo, se desafino? É uma música extremamente exigente, em qualquer momento pode correr mal. Avô Antoninho só deixou esta música, Carnaval d’Intentaçon, mas não esteve para brincadeiras. Olho instintivamente para trás, para a minha direita, à procura de alguma coisa que me desse segurança, de um qualquer apoio que me ajudasse a levar aquela tarefa a bom termo. O meu olhar cruza-se, por um segundo, com duas figuras portentosas. Luís Morais e Morgadinho, dois músicos lendários e homens generosos que, como se adivinhassem os medos de uma miúda, me ofereceram, ambos, naquele segundo, sorrisos francos e encorajadores. Sorrisos que me abraçaram. Como se me dissessem, “estás a ir bem, és a neta do teu avô, diverte-te e aproveita o momento”. E era tudo o que eu precisava. Encarei de novo o público, agora com outro ânimo, e foi como se, a partir dali, tudo explodisse à minha volta, transportando-me para dentro da música, daquele momento e de todos os outros momentos que tiveram lugar naquele espaço, fazendo-me presente em toda a história que sempre acompanhei de longe. Naquele momento fui parte dos Ritmos Caboverdeanos, da Voz de Cabo-Verde, da história do Éden Park, da própria cidade do Mindelo, deixei de ser estrangeira na minha música, na minha família, na minha própria história, e num momento que vale por uma vida, fiz parte de tudo. Sinto que ainda faço, porque naquele preciso momento, naquele tempo e naquele espaço, cheguei a casa.
Ao Luís Morais, já não tenho oportunidade de dizer o quanto aquele sorriso significou. Mas ao Morgadinho ainda posso enviar um abraço apertado, com todo o afecto do mundo. O mesmo que ele me mostrou.