Logo a seguir uma outra igualmente prazerosa: gosto de escrever crónicas. Então não esperei por mais nada e pegando logo numa caneta comecei a escrever sobre a cachupa. Algures, num recanto da minha memória, ressoava a voz duma amiga querida que me pedia isso mesmo, uma cachupa literária. Mas será que não fiquei afetada pelo medo do vírus? Cachupa literária parece um tantinho inusitado, mas enfim… cadé a cronista que é pressuposto morar em mim? É cronista, mas também é muitas outras coisas, cozinheira inclusivo.
Entrei na cozinha e não é que lá estava ela em frente ao fogão a gás e não as três pedras que a minha delirante imaginação sonhara momentos antes. Numa panela, sobre o lume, água a ferver a que juntara alguns temperos (louro, alho, cebola) e os inevitáveis milho e feijão. Sobre a mesa da cozinha uma infinidade de ingredientes que mais parecem uma mesa desarrumada. Puro engano, parece um caos mas cada coisa terá o seu momento certo e cada um dará uma contribuição única ao produto final. Sendo a cachupa o prato nacional, seja ela rica ou pobre, qualquer dos ingredientes que transbordam da mesa pode estar ausente, dois ou três até, que nada impede o sabor delicioso no fim, quando aparecer na terrina fumegante.
O ingrediente essencial que jamais pode sumir é o Milho e esse é um senhor que não abre mão dos seus pergaminhos. Não serei eu a escamoteá-los, pelo contrário.
Mas não vamos perder o foco e o nosso é a panela que deixamos ao lume. Enquanto se processa a cozedura poderemos conversar um pouco, tal como as vizinhas fazem, ao portão, entre uma e outra fase da cachupa.
O milho chegou às ilhas vindo da América, entrou no arquipélago com o pé direito e transformou-se na base da alimentação dos cabo-verdianos. Pela via da oralidade foram passando de geração em geração o modo de fazer uma cachupa, um cuscus, um xerém, uma djagacida, uma brinhola e todos os outros saborosos derivados do milho, um campo ilimitado de criatividade.
Mas o milho não é apenas isso. São sobremaneira relevantes o seu significado e simbolismo na cultura do povo cabo-verdiano e o papel que desempenha na sua sobrevivência, na resistência cultural, na persistência do lavrador que lança a semente à terra na esperança duma chuva que vem, que não vem…
O uso mais generalizado é através da cachupa, essa mesma que temos aí ao lume e já demos tempo suficiente para cozer, com o lume espevitado que lá deixamos. Está na hora certa para juntar a carne de porco salgada, o chouriço, a couve ou agrião, o repolho e um pouco de feijão-verde se tiver. Essa cachupa, com ar de cachupa rica pode ir a qualquer mesa, mas ela não é de frescuras nem tão pouco é exigente. Pode ser bem mais simples, apenas com peixe e couves, sendo já famosa a cachupa com cabeça de atum, de sabor especial, em S. Vicente, servida nas tascas e botequins, diretamente da panela, em prato fundo, para conservar melhor o perfume dos temperos verdes.
Deixei-me embalar no bar da esquina onde um ponche divino acompanhava o tal prato fundo e quase me esquecia que tenho uma panela ao lume. Vou lá espreitar e retificar o sal. Cheguei a tempo de colocar a mandioca e a batata-doce e preparar o refogado, esse sim elemento indispensável de um bom acabamento, preparado na frigideira, com tomate, cebola, salsa, coentros, azeite e óleo. Sendo a cachupa um prato aberto a todas as fantasias, nela pode caber tudo o que quisermos ou esteja à mão: abóbora, banana verde, fruta-pão, galinha e tudo o mais que a imaginação ou o bolso permitirem. Posto isto só me resta desejar-vos um bom apetite.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1023 de 7 de Julho de 2021.