- CONJUNTURA
Uma das convicções dos antifascistas que estiveram detidos no Tarrafal, era a esperança de que um dia alcançariam a liberdade, quer fosse por vias legais, quer por vias ilegais. Aliás, a esperança, o sonho e a ansiedade pela liberdade faziam parte do quotidiano de todos aqueles que devido a delitos políticos ou comuns se encontravam encarcerados. Cada navio que aportava ao Tarrafal, cada carta que chegava ou cada preso que dava entrada ou saía do Tarrafal era motivo de ansiedade e de sonho para os restantes. Como se referiu, foi com o despertar da Segunda Guerra Mundial e com as suas consequências que Salazar se sentiu obrigado a ir diminuindo de um modo geral a repressão, em particular no Campo de Concentração do Tarrafal. À medida que os exércitos fascistas, alemães e italianos, iam sendo derrubados pelos aliados nas diversas frentes de batalha, a atitude de Salazar e como consequência, os comportamentos dos diretores, dos carcereiros e dos guardas do Campo, diminuíram de agressividade1. Foi nessa conjuntura que começaram a surgir os primeiros rumores de que os reclusos do Tarrafal iriam ser postos em liberdade, acreditando-se seriamente que o Tarrafal iria ser encerrado2. De facto, nessa altura, em Janeiro de 1944, e como que justificando o boato, foram postos em liberdade os alemães, Willy e Fred, o polaco, Israelvski, o italiano Bartolini, o ex-agente da PIDE António Augusto Pires, o médico Ferreira da Costa, e ainda Cândido de Oliveira, António Guerra e outros mais.
Foi também em meados de 1944 que começaram a chegar ao Campo notícias com mais regularidade, embora um pouco atrasadas. Passou a ser autorizado por parte do Diretor, o capitão Filipe de Barros, que os reclusos recebessem alguns jornais, tais como o Século, o Diário de Notícias, o Primeiro de Janeiro, o Diário Popular, o Diário de Lisboa, etc. A este propósito, Correia Pires diz que a partir de certa altura se foi quebrando o isolamento em que viviam, com os jornais e os pedaços de jornais a que eles chamavam Rádio Merda, deixando de ser considerados fruto proibido3. Por outro lado, notaram-se melhorias na assistência médica, na alimentação, no fornecimento e tratamento da água. Neste ambiente de franca melhoria, o facto considerado por todos como o melhor testemunho da mudança foi a permissão de se ouvir a rádio, se bem que só as emissoras nacionais. A sede de notícias por parte dos reclusos e a curiosidade eram muito grandes, essencialmente no que respeitava às notícias da frente de guerra, aguardando a todo o momento que a poderosa Alemanha de Hitler se rendesse às forças aliadas.
Com a chegada de David Prates da Silva, substituindo Filipe de Barros, em Janeiro de 1945, e já com o Campo a queimar os últimos cartuchos como espaço de repressão, o quotidiano dos reclusos melhorou de forma ainda mais significativa4. O rancho e a água apresentavam uma qualidade muito maior e melhor do que anteriormente e os trabalhos foram completamente banidos. Os reclusos tinham como atividades somente as necessárias ao funcionamento da prisão. Efetivamente, em janeiro desse ano já reinava a convicção de que a guerra não iria durar muito tempo, o que de facto aconteceu. A 8 de Maio, com a derrota pesada frente aos Aliados, a Alemanha capitulou.
A 8 de Outubro de 1945 criou-se o Movimento da Unidade Democrática, que tinha como finalidade a luta contra o regime salazarista, o que para os reclusos do Tarrafal seria um sinal claro de que a luta contra o fascismo se fazia também dentro do próprio país.
A conjuntura internacional, caracterizada pela vitória das democracias sobre o nazismo, a situação interna em Portugal, caracterizada por uma agitação social, e a ação do Movimento da Unidade Democrática (MUD) foram cruciais para que Salazar moderasse a repressão, adotando uma atitude mais ou menos consequente face aos compromissos assumidos perante as democracias ocidentais5. Em Portugal, do Minho ao Algarve, se falava do Tarrafal. Também a nível internacional havia uma voz solidária de países como a Inglaterra, o Brasil, a França, e outros países da América latina, que se manifestavam contra a existência dessa prisão.
Como estratégia política utilizou Salazar a promessa da realização de eleições livres, a exemplo do que se passava na Inglaterra. Também através da Emissora Nacional, e pela voz de António Ferro, então Secretário da Informação de Salazar, pela primeira vez se afirmou que em Portugal não existiam presos políticos. Tal notícia, como é de prever, deixou os reclusos no Tarrafal completamente atónitos.
As pressões exercidas sobre a política salazarista foram tão grandes que levaram a que em Fevereiro de 1945 fossem libertados cerca de cinquenta reclusos. Também em Outubro de 1945, o sistema se sentiu na obrigação de decretar uma amnistia para outros cento e dez presos. Muitos destes encontravam-se no Tarrafal sem culpa formada6. A partir desse momento, o Campo passou a funcionar com cerca de quarenta reclusos que não tinham sido abrangidos pela amnistia7. O último preso português a abandonar a prisão do Tarrafal foi Francisco Miguel. Foi transferido para a prisão do “forte de Caxias” em 31 de Janeiro de 19548.
- ENCERRAMENTO
Depois de quase duas décadas de tortura física e mental, o Campo de Concentração de Tarrafal fechou as suas portas a 26 de Janeiro de 1954, com a saída de Francisco Miguel. No entanto, só dois anos depois é que foi legalmente encerrado, nos termos do Decreto-Lei número 40.675, de 7 de Julho de 19569.
Normalmente no regime da ditadura salazarista, quando um recluso era libertado, esse gesto era regulado de acordo com o artigo 380 do Decreto-Lei número 26.643 de 28 de Maio de 1936: “O recluso será posto em liberdade terminada a detenção, ou cumprida a pena de prisão ou medida de segurança, exceto nos casos especiais determinados na lei.” Todavia, nestes casos que referimos, devido às pressões nacional e internacional, a maioria dos reclusos foi posta em liberdade com base numa amnistia10. Em qualquer dos casos, o artigo 387 do referido Decreto dizia que quando em liberdade, se o recluso não tivesse meios para pagar o transporte para a localidade onde fosse residir ou não tivesse recursos para viver, seria mandado apresentar pelo Diretor à associação do Patronato. Não podendo acontecer isso no Tarrafal, os reclusos tiveram que usar os seus meios ou esperar pelo regresso dos barcos que abasteciam o arquipélago de Cabo Verde, para poderem regressar a Portugal e às suas cidades, aldeias e famílias.
Com a alegria da partida, o espírito de solidariedade reforçava-se e, quando da despedida entre aqueles que regressavam em liberdade e aqueles que ficavam ainda encarcerados no Campo, havia momentos de partilha em que os que ficavam ofereciam aos que partiam roupas e outros objetos pessoais que não eram autorizados a usar no Campo, enquanto os que partiam se multiplicavam em promessas de os manterem na memória, assim como de continuarem a luta pela qual a maior parte lá tinha ido parar, trabalhando para a sua libertação. Estes eram momentos de fortes emoções em que trocando abraços, os homens, apesar de habituados a uma luta dura e difícil, não conseguiam de modo nenhum esconder as lágrimas.
Também à partida se fazia sentir a disciplina do Campo, tendo que se cumprir certas formalidades. A passagem pela secretaria do Campo para levantarem qualquer valor que aí tivesse ficado em depósito e que por sistema não existia. Posteriormente as suas próprias malas eram revistadas, não fosse dar-se o caso de algum dos prisioneiros que permanecesse no Campo utilizar os que partiam como correio para o exterior, enviando alguma carta ou mensagem que pusesse em causa a imagem que era passada para a opinião pública exterior e que poderia pôr em causa o “bom funcionamento do Campo”. Só então o recluso se podia considerar um cidadão livre.
JOSÉ SOARES
HISTORIADOR E FIDJU STO AMARO ABADE
TARRAFAL, AOS 26 JANEIRO DE 2022
1 A conjuntura internacional a partir de 1942 estava traçada de seguinte forma: os americanos já estavam no Norte de África; em fevereiro de 1943 o Exército Vermelho proclamava a vitória em Estalinegrado; em Setembro os alemães foram expulsos pelos ingleses e americanos da África.
2 Os testemunhos referem que o boato se insinuava facilmente no quotidiano do Campo. Os mais vulneráveis eram os presos politicamente menos conscientes, e por vezes tornava-se doentio e perigoso. Mas sempre que estava próxima a chegada do navio Guiné, o boato espalhava-se e circulavam as esperanças mais absurdas que se podiam imaginar. Eles nunca desanimaram, antes pelo contrário, sentiam sempre em si a esperança da liberdade, embora nessa altura, em 1942, Hitler estivesse no auge do seu poder e das vitórias. (Conf. Tarrafal, Testemunhos, cit., p. 218.)
3 Correia Pires, Memórias de um Prisioneiro do Tarrafal, cit., p. 260.
4 Segundo os reclusos do Tarrafal, com o novo Director o salazarismo procurou manchar ainda mais a opinião pública com a ideia de que no Campo de Concentração do Tarrafal os reclusos tinham um bom tratamento, o que na verdade não acontecia.
5 Miguel Wagner Russell diz que a evolução da guerra na União Soviética, a seguir à batalha de Estalinegrado, e os contratempos sofridos pelos nazifascistas nos outros teatros das operações militares iniciaram um processo de lenta desintegração psicológica entre os servidores de Salazar, que viam com inquietação o desenvolvimento favorável da causa antifascista. E isso também foi notório no Tarrafal. (Conf. Miguel Wagner Russell, Recordação dos Tempos Difíceis, cit., p. 124).
6 Os reclusos que foram amnistiados em 1945 ainda permaneceram no Campo até 25 de janeiro de 1946, visto que não tinham possibilidade de custear os transportes para o regresso a Portugal. Desse modo, tiveram que esperar pelo regresso do navio Guiné, para poderem regressar.
7 Amnistia significa medida de clemência ou de perdão que se traduz no esquecimento e desaparecimento da natureza criminal dos factos. Isto é, o crime é considerado como não tendo sido cometido e restituem-se ao amnistiado os direitos que possuía antes de ter sido condenado. Ver. Dicionário de História de Portugal, 8ª edição, Porto Editora, 1998, p. 91.
8 Joaquim Ribeiro, na obra Recordações dos Tempos Difíceis, diz-nos que, de facto, Francisco Miguel foi o último a sair do Campo de Concentração do Tarrafal em 26 de janeiro de 1954, após lá ter entrado, pela segunda vez, em 28 de Janeiro de 1951, somando aí um total de 9 anos, que foram parte dos seus 21 anos passadas nas várias prisões fascistas.
9 O artigo número 8 do Decreto-Lei número 40.675, de 7 de Julho de 1954, estabeleceu que os imóveis em que esteve instalado o Campo de Concentração de Cabo Verde e os materiais que não fossem remetidos para a ColóniaPenal de Bié, em Angola, passassem a fazer parte do património da então província de Cabo Verde, que hoje é um país independente. Ainda acrescenta que os funcionários da referida prisão fossem colocados no quadro da ColóniaPenal do Bié.