Tributo póstumo ao doutor Júlio José Dias

PorJosé J. Cabral,15 dez 2022 9:48

Tributo póstumo ao doutor Júlio José Dias, por altura da reposição do seu retrato, pintado e cedido gratuitamente, pela artista sanicolaense Clara (Cay) Almeida-Baudot, ao Município que a ambos viu nascer

Entre outros filhos notáveis, a ilha de São Nicolau orgulha-se de ter parido aquele que é cronologicamente o primeiro médico cabo-verdiano, Dr. Júlio José Dias, formado na Sorbonne (Paris), autor de uma tese ali publicada em 1830- Essai sur la Lithotritie, descoberta pelo grande amigo de Cabo Verde que foi o malogrado professor Jean Michel Massa da Universidade de Rennes II, que teve a amabilidade de editar a brochura que conhecemos.

Nascido no bairro de Chã de Abrantes, em Ribeira Brava, era filho de Maria Tomásia Leite e de José António Dias que foi Administrador nomeado pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão e que, com a extinção, passaria a exercer o cargo de Capitão-Mor da ilha de São Nicolau, tendo promovido o seu desenvolvimento, principalmente sob o ponto de vista agrícola;

Homem de uma grande generosidade, Doutor Júlio abandonou uma carreira brilhante em Paris para se fixar até à morte na sua ilha natal, onde nunca cobrou pelas suas consultas realizadas ao seu povo humilde, facto que lhe granjeou um grande prestígio popular.

Apesar de afastado dos grandes centros culturais de então, Júlio José Dias não vivia isolado do mundo nem estava alheio aos avanços científicos da época. Correspondia com os seus pares sendo de realçar o nome de François Guizot que foi primeiro-ministro da França.

De seus muitos gestos de generosidade, constam várias obras por si dirigidas enquanto responsável pelas obras públicas na ilha, parte delas custeadas com meios próprios, como é o caso da construção do Cais da Preguiça, por um tempo o principal de Barlavento, e que durante mais de século e meio serviu a ilha, até ser inutilizada, transformada que foi num “abufadouro”, já nos nossos dias.

De todos, o seu maior gesto de altruísmo, foi a cedência de sua mansão solarenga para instalação do seminário-Liceu, trocada por uma casinha modesta que possuía na Assomada de Cachaço onde passou a residir e onde faleceria a 6 de setembro de 1873, com apenas 61 anos de idade.

A importância reconhecida que o Seminário-Liceu teve na formação da elite intelectual cabo-verdiana, a luz que enquanto farol emanou a partir da Ribeira Brava para todo o Cabo Verde e possessões portuguesas no mundo, deveram-se ao desprendimento desse filho ilustre da ilha.

Em jeito de gratidão, a edilidade de São Nicolau de então, liderada pelo seu presidente Dr. José António Alves Pereira de Lemos abriu subscrição pública para lhe erguer o sumptuoso monumento em mármore, no Largo do Terreiro da Sé-Catedral.

Outro gesto de reconhecimento ao filho e cidadão benemérito foi expresso pelo retrato pintado a óleo, de autoria desconhecida, que por décadas decorou o Salão Nobre dos Paços do Concelho da ilha, de onde desapareceu misteriosamente; esse retrato a preto e branco que a muitos pôde ter passado desapercebido, encerrava elevado valor estético-artístico e simbólico, pelo que o seu sumiço, além de desconsiderar a pessoa do homenageado constituiu-se em profanação da memória de alguém a quem a ilha muito deve pela herança que a legou.

O gesto de generosidade de Doutor Júlio chegou até ao país que acolhera o Dr. Júlio (França) país de residência da pintora Clara Almeida ou Cay de Nhô Zé Gaída e Nhâ Maria Clara, cujo umbigo estará algures na casinha que ainda resiste em Chicadjan (Fajã de Baixo); artista renomada, com quadros expostos em galerias que vão de Dubai a França, arranjou tempo e inspiração para pintar e oferecer ao seu município outro retrato, desta vez colorido, pintado de seu punho a óleo sobre tela, para ocupar o lugar vagado, para minimizar o incómodo que a perda daquele possa ter causado.

Desta vez, preferiu a nossa artista patchê, reproduzir a imagem do nosso conterrâneo em idade mais jovem, com seu olhar profundo e semblante contemplativo, barba farta, ostentando a sua bata branca de médico e o Noeud Papillon, adereço que certamente importou da França, tal qual foi imortalizado no alto pedestal do Terreiro da Sé, de onde desce todas as noites para cuidar da saúde do povo da sua ilha.

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Tributo ao Seminário Excertos de José Lopes In Jardim das Hespérides

Meu velho e Venerando Seminário

Benemérito e Augusto Monumento

Berço da minha fé e sentimento

Da minha gratidão e relicário!

Firme nos embates do destino vário

Tu nunca morrerás no pensamento

Daqueles a quem deste o alimento

Da crença e da instrução, casa-sacrário!

Mãe espiritual e sempre querida

Confunde-se na tua a minha vida

Na parte em que esta foi mais descuidosa

Cuido ver-me na antiga camarata

E o pranto dos meus olhos se desata

Mãe-espiritual, mansão saudosa.

(…)

Do grande doutor Júlio José Dias

O prédio antigo fora propriedade

Facto que dá maior celebridade

À casa, não às minhas elegias

Rico outrora, morreu de mãos vazias

Médico benfeitor da humanidade,

Mas tem estátua que à posteridade

Irá contando as suas obras e pias.

De dois lados a casa primitiva

Foi mais tarde aumentada, e em mim viva

É a lembrança das obras de uma parte

Doutor Júlio, meu célebre parente!

Casa e estátua, qual mais ensina à gente

A transmitir-te o nome e a venerar-te?!

(…)

Hoje do nosso antigo seminário

Só resta em seu conjunto o edifício

Que se ergue como o altar de um sacrifício

Mas de Mória passando a calvário

Da descrença de um tempo ingrato e vário

A sua queda é um eloquente indício,

Que ao menos, desse altar, a Deus propício,

Suba a chama de um círio funerário,

E seja a gratidão, sentida e imensa,

De quantos lá beberam luz e crença!

Os homens só pouparam os seus muros!

Passando o mar Vermelho … a pé enxuto,

Deram-lhe o nome de “Instituto”,

Legando a outro aos séculos futuros …

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1097 de 7 de Dezembro de 2022. 

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Autoria:José J. Cabral,15 dez 2022 9:48

Editado porAndre Amaral  em  15 dez 2022 9:48

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