Batuco entre evolução e conquista

PorDulcina Mendes,2 ago 2025 9:11

O Batuco, uma das manifestações culturais mais antigas de Cabo Verde, continua a atravessar os séculos com força renovada e marcada por uma expressiva dimensão feminina. Ao longo do tempo, tem conquistado diversos avanços, com a instituição do Dia Nacional do Batuco que se celebra no dia 31 de Julho, o aumento de grupos, presença em vários palcos, criação de categorias próprias nos Cabo Verde Music Awards, entre outros marcos. Esta manifestação é mantida, sobretudo, pelas mulheres.

Em 2021 foi instituído o Dia Nacional do Batuco. A data é celebrada no Dia da Mulher Africana. Além disso, o Batuco tem conquistado aos poucos alguns palcos.

O Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas tem realizado o Encontro Nacional do Batuco com os grupos das ilhas de Santiago e do Maio. A Fundação Batuku CV realiza todos os anos o Festival Nacional de Batuku com batucadas no país e na diáspora.

No município de Tarrafal de Santiago há um Festival do Batuco que acontece há mais de 20 anos. Além disso, os Cabo Verde Music Awards criaram este ano uma categoria só para o Batuco.

Para falar desta manifestação cultural, o Expresso das Ilhas esteve em conversa com o investigador e professor universitário José Maria Semedo, que disse que o Batuco atravessou os séculos com grande vigor e que é essencialmente uma festa da mulher.

“O Batuco tem persistido com vitalidade. Atravessou os séculos e acompanhou as mudanças sociais, mantendo sempre uma profunda ligação com a mulher cabo-verdiana. É uma festa feminina, é da mulher”, relata.

Para o investigador, a centralidade feminina no Batuco está intimamente ligada às dinâmicas históricas da escravatura. “Enquanto os homens estavam ocupados nos trabalhos pesados, as mulheres, que permaneciam no espaço doméstico, preservaram tradições orais, histórias e rituais como o batuco. Isso explica a resistência dessa manifestação no seio familiar e comunitário”.

José Maria Semedo sublinha que o Batuco não permaneceu estático no tempo. Evoluiu e adaptou-se, integrando elementos contemporâneos sem perder a sua essência. “Hoje vemos o batuco em arranjos clássicos, como na obra de Eutrópio Lima da Cruz, ou interpretada por artistas consagrados como Lura, Mayra Andrade e até mesmo Madonna. Há também fusões com performances coreográficas mais elaboradas, como nos espectáculos de grupos como Raiz di Polon”, refere.

Apesar dessa evolução, José Maria Semedo alerta para a necessidade de se manter vivas as três dimensões do batuco: a poética, a melódica e a coreográfica. “O Batuco é portador de mensagens, conselhos e sabedoria popular. É uma canção de conteúdo literário”.

O investigador citou alguns nomes que deram grande contributo ao Batuco, como Nácia Gomi, Nha Mazinha Mendi e Bibinha Cabral. “Eu conheci essas pessoas, tanto Nha Nácia Gomi como Nha Mazinha Mendi. Essas pessoas tinham poemas bem elaborados. Na ilha do Fogo, ainda há a memória de Ana Procópio”.

Outrora restrito aos quintais e terreiros, o Batuco ganhou os palcos nacionais e internacionais. No entanto, essa transição exigiu adaptações. “Já temos o batuco em música clássica. Eutrópio Lima da Cruz tem uma gravação do Batuco numa melodia clássica. E temos o Batuco gravado, de Nha Nácia Gomi. As figuras do batuco não só continuaram como expoentes, mas temos cantores modernos. As cantoras como Lura e Mayra Andrade cantam o batuco, até Madonna gravou o Batuco”.

José Maria Semedo frisa que actualmente muitos grupos estão organizados com fardas e coreografias ensaiadas, o que também representa um sinal de profissionalização e afirmação cultural.

Mas lembrou que o Batuco já foi proibido no passado, como em 1866, quando autoridades da Praia tentaram silenciá-lo por perturbar o sossego público, e foi alvo de olhares depreciativos, inclusive por figuras como Charles Darwin, que o considerava “selvagem”, mas resistiu, hoje. É celebrado com festivais, há um Dia Nacional do Batuque, e grupos continuam a surgir e a revitalizar a tradição.

“O Batuco persistiu e acompanhou o tempo. Se era proibido na zona de Ponta Belém, como diz o documento. Ou era uma dança selvagem de pretas, como disse Charles Darwin. Hoje em dia não é, o batuco já chegou ao palco da Assembleia Nacional, na era do colonialismo isso era impensável”, realça.

Ainda sobre a proibição, o site www.caboverdeamusica.online refere que, durante o período colonial, essa dança foi considerada como “selvagem” e imoral, repudiada pela igreja católica, devido à sua sensualidade. “Contudo, no seu meio original, os momentos em que se dançava o batuku estavam sempre ligados ao ambiente familiar, às festas de casamento e ao baptizado”.

Património mundial

Sobre a eventual candidatura do batuque a Património Cultural Imaterial da Humanidade, Semedo é claro: “O Batuco é uma invenção cabo-verdiana. Nasceu no espaço crioulo de Cabo Verde. Não foi importado. É único no mundo”.

Para José Maria Semedo, o argumento central da candidatura deve assentar precisamente na sua originalidade, tal como aconteceu com a morna. “A UNESCO não quer importações. O que se pretende é classificar o que é autêntico, enraizado, criado por um povo. O Batuco cumpre todos esses requisitos”.

O ex-deputado, José Soares, que levou a proposta de lei que instituiu o Dia Nacional do Batuco, numa entrevista ao Expresso das Ilhas, em 2022, por altura do primeiro aniversário da instituição do Batuco como património nacional, disse que antes de levar a candidatura desse género a património mundial há muitas coisas que devem ser feitas antes disso, por exemplo, a formalização do batuco e das batucadeiras.

“Precisamos reconhecer as batucadeiras e a partir daí, talvez quiçá daqui a alguns anos, pensar num outro passo. Mas primeiro trata-se de consciencializar a sociedade cabo-verdiana de que o Batuco é tão importante como a morna, o funaná e a coladeira e que deve ser de certa forma muito mais valorizada”.

Para a fundadora da Associação Delta Cultura, Marisa Correia, o Batuco fez um grande percurso para chegar onde está hoje. “Acho que é merecido, porque se há um género musical que tem se esforçado muito para não morrer, é o Batuco. Lembro-me de que antes, no Tarrafal, existia o nosso grupo e o Pó di Terra, depois surgiu o Raiz di Tarrafi”.

Marisa Correia diz que seria justo que o batuco alcançasse o mesmo reconhecimento que a morna, ou seja, ser reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade. “Vamos todos lutar para isso acontecer. Será uma maior satisfação para as batucadeiras, para o Batuco e para Cabo Verde”.

“Torcemos para que isso aconteça, porque se o Batuco chegar lá é mais que merecido, porque o Batuco, a morna e o funaná andaram no mesmo caminho em Cabo Verde, para não dizer que o Batuco foi um dos primeiros”, salienta.

Futuro

Apesar do caminho promissor, José Maria Semedo expressa preocupações com a perda de alguns elementos tradicionais, como o Batuco de quintal ou a indumentária original das batuqueiras, como as saias compridas até os pés. Reconhece, no entanto, que a cultura é dinâmica: “Talvez essas saias já não interessem à malta jovem. E tudo bem. A cultura evolui. O importante é não perder a essência”.

Para José Maria Semedo, o Batuco representa, antes de tudo, um poderoso instrumento de afirmação identitária e uma forma viva de comunicação popular. “Estamos no caminho certo. A cultura não se congela. Reinventa-se. E o Batuco é, sem dúvida, uma das maiores expressões da alma cabo-verdiana”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1235 de 30 de Julho de 2025.

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Autoria:Dulcina Mendes,2 ago 2025 9:11

Editado porAntónio Monteiro  em  2 ago 2025 12:11

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