
As melodias das mornas de Betú são fulgentes, isto é, agradam logo à primeira audição.Todas têm o traço generoso e sincero, inspiração e elegância.As linhas e contornos melódicos e a harmonia (acordes – veja-se na transcrição abaixo o Sib no contexto de Re) são de grande originalidade e constituem um estilo particular polido por intensa musicalidade.
Sem dúvida que Betú é um dos mais proeminentes compositores modernos e da moderna Morna, herdeiro de outros grandes melodistas que o antecederam: Eugénio Tavares, B.Léza, Jotamont, Manel d’Novas, Djack de Carmo, Luluzim, só para citar alguns dos mais famosos.
Na verdade, depois de ter analisado cientificamente algumas das suas mornas, resolvi pôr de lado a ciência musical, pela sua inutilidade quando as evidências artísticas não são para ser dissecadas. Mais vale a consciência da beleza e a admiração que se deve a um artista.
Vamos começar pelo princípio. Quando é que nasceste na ilha do Maio, fala-me sobre os teus pais e família chegada e a tua primeira infância?
Eu nasci no dia 7 de Julho de 1961, na vila de Porto Inglês, ilha do Maio. Filho de Higino Tavares Silva e Deolinda Mendes Tavares. O meu pai é da família Tavares Silva de Calheta, de onde provêm vários músicos maienses, nomeadamente o famoso Horace Silver. Tive uma infância normal para as condições sociais do Maio à época. Desde cedo manifestei a minha tendência para a música que, segundo contam os mais velhos, era uma constante nas brincadeiras com os colegas da rua/zona Cadjitinha.
Nas fotos como compositor, apareces quase sempre com um violão. Quando começaste a aprender o violão?
Por volta dos meus 15/16 anos. Inicialmente, só nas cordas graves, a fazer de baixista, e tempo depois comecei a conhecer os acordes.
No teu Facebook nota-se o teu romantismo para com a ilha do Maio onde nasceste. É uma nostalgia ou uma espécie de substituição à ‘turbulência’ da capital?
Nem uma nem outra! Nostalgia não, porque Maio está sempre ao alcance e vou lá com frequência. Fuga à turbulência da capital, também não porque aqui resido desde os 11 anos de idade, acompanhei o seu crescimento. Diria que se deve ao laço umbilical com o Maio e que é muito forte. A infância é a fase mais marcante da vida!
Qual foi a primeira Morna composta? Data, momento…
‘Gana di voá’. Estava no Maio de férias e com saudades de uma recente paixão que ficara na Praia. É contemporânea de Manú. Quando fiz essas duas mornas tinha 17/18 anos de idade.
As tuas mornas possuem um elegante traço melódico e são inovadoras na história da morna… Foi uma procura ou é algo que surge espontaneamente?
A melodia é o primeiro elemento de atracão na morna e é uma evidência desde os clássicos. Neste sentido é uma herança. Mas há também a preocupação com a procura do novo.
Quais os compositores que te inspiraram e que mais admiras? Tiveste um mentor? O teu violão tem um nome poético?
Não posso falar em mentor, mas certamente, como acontece com todos, terei bebido nos clássicos e também nalguns contemporâneos. Contrariamente ao teu caso, infelizmente ainda não consegui arranjar um violão com qualidades especiais a ponto de lhe dar um nome poético, hehe!
As letras das tuas mornas falam sobejamente do amor. Há outras temáticas que enfatizas? E no amor, são vivências e pertencem ao foro da poética?
Há outras temáticas como a emigração e a ilha natal, mas sem dúvida é o amor o tema principal da minha música. E uma das razões é precisamente a elasticidade poética do tema. A gente não consegue explicar esse mistério, mas está sempre à procura. Há sempre algo a dizer.
Nas tuas composições, começas pela letra, pela melodia ou trabalhas com ambas?
Melodia. Tenho antes na cabeça o tema a tratar, mas a letra vem depois porque, não sendo poeta, a primazia tende para a parte musical onde me sinto mais seguro.
Naturalmente que há sempre uma inspiração. É constante ou bastante periódica? Tem a ver com momentos íntimos?
Sim, inspiração é que comanda, sobretudo para quem não está na música profissionalmente. Tem a ver com momentos de emoções fortes, de alegria ou de tristeza, ou simplesmente de luminosidade criativa.
O grande compositor Wagner disse certa vez que se um criador está feliz e alegre em geral não está inclinado a compor. O que achas?
A sensação de alegria é normalmente epidérmica e mais efémera que a de tristeza e estará mais inclinada a propiciar criações mais ligeiras, mas pode, como se sabe, proporcionar obras com a mesma dignidade das de maior investimento musical.
As tuas mornas são por vezes em tom menor, por vezes em tom maior. As em tom maior têm sempre um quê de ‘hino’ (aliás como quase todas as mornas), mas existe quase sempre uma espécie de ‘existencialismo’subtil. Faz parte do teu temperamento? Quais as tonalidades preferidas?
Apesar de ter vivenciado muito o ambiente de serenata, de mornas quase sempre em tom menor, a maioria das minhas são em tom maior. Terá um pouco a ver com a minha infância ligada à igreja, onde predomina o tom maior, mas também com a procura de caminhos com maiores possibilidades de inovação, ainda que no seguimento da linha beleziana. Existencialismo? Já fui confrontado várias vezes com essa observação. Terá alguma razão de ser!
O que consideras significativo no teu percurso de compositor?
O reconhecimento público do meu trabalho que se tem demonstrado de várias formas: com homenagens, com diplomas oficiais, com troféus…e tudo porque tenho tido o privilégio de ser interpretado por vozes que contribuíram e contribuem muito para a valorização da minha música.
Também cantas as tuas mornas. O Manel d’Novas considerava que tinha uma voz de ‘trovador’ e não de mornista. O mesmo acontece contigo?
A minha intervenção como intérprete foi sempre inexpressiva, de modo que pouco interessa a catalogação!
Quais são os intérpretes preferidos das tuas composições.
Prefiro indicar aqueles que mais contribuíram para a divulgação da minha música: o Ildo Lobo, pelo número de interpretações, a Cesária Évora, pelo alcance da audiência, mas também Mirri Lobo, Nancy Vieira e outros, pelas iniludíveis prestações.
Já compuseste por encomenda? A quem pertence o publishing das tuas mornas?
Encomenda no sentido comercial, não. Mas já, raras vezes, cheguei a responder a algum pedido. Tenho acordo de edição com a Africanostra (França) para cada uma das composições.
O que podes considerar importante para a visibilidade, a continuação da veia da Morna e os estímulos que a sociedade e os poderes políticos podem dar?
O reconhecimento da Unesco para Património da Humanidade seria um contributo valioso, mas será necessário trabalhar a sério, com o envolvimento de toda a nação cabo-verdiana. Registo com muito agrado que não tem faltado intérpretes novos e interessantes da morna, bem como criações novas de qualidade.
Catálogo das Mornas
GANA DI VOÂ
Maio, década 70,
MANÚ
Maio/Praia, década 70,
MENSAGEM
Porto, 1981
NHA CORAÇON I
Lisboa, 1984,
DJARMAI DI MEU
Porto, 1985,
NHA CORAÇON II
Porto, 1986
MAIO NHA TERRA
Maio, 1986,
NHA BERÇO
Maio, 1988,
NOTÍCIA
Praia, 1989
DOR DI NH’ALMA
Praia, 1989,
SALVÂ NHA CRIOLA
Praia, 1990,
CUSAS DI CORAÇON
Maio, 1996,
NHA SÊGRED
Praia, 1996,
É NÔS CABO VERDE
Praia, 2002,
MARINA
Praia, 2002
TEMA CU BÔ
Praia/Maio, 2003,
NÔS AMIZADE
Praia, 2003,
NÔS CANTADOR
(Em homenagem ao Ildo Lobo) Praia, Maio Dez.2004,
AMOR E MAR
Praia, 2004
NHA VAZIO
Praia, 2005,
LEMBRANÇA
Praia, 2006,
NOIVA DI CÉU
Praia, 2007
NÔS FÉ
Praia, 2008,
NHA DOCIN
Praia, 2010,
LAÇO UMBILICAL
Praia, 2011
CIÚMES DI MEU
Praia, 2012,
BEJO
Praia, 2013,
AMORIZADO
Praia, Jun.2015


Texto originalmente publicado na edição impressa do nº 791 de 25 de Janeiro de 2017.
homepage








