O Expresso das Ilhas esteve em conversa com Mauro Fernandes, Engenheiro Informático,um curioso que tem feito algumas experiências durante as suas aulas, para perceber como funciona o processo de criação musical através da IA.
Mauro Fernandes explica que as pessoas que usam as plataformas de IA recorrem aos chats para criar letras e músicas de acordo com o tema que querem. Depois, pedem para traduzir para crioulo, mas isso acaba por gerar um crioulo não muito puro, pelo que as pessoas editam aquelas letras para as colocar num crioulo mais “nosso”.
Por exemplo, “o ChatGPT tem usado um crioulo mais de São Vicente, misturado com um pouco de Santiago, porque não tem aquele crioulo enraizado. Quando fazes a alteração para crioulo, usas outra plataforma de IA para a concepção da música, e essa plataforma usa a letra que criaste. Ou então podes criar a tua própria letra, colocá-la lá, e ela transforma-a em música”, explica.
Conforme relata, as plataformas de IA ainda não estão muito orientadas para géneros que fazem parte da realidade cabo-verdiana, como funaná ou kotxi pó. “São mais vertentes de R&B, músicas românticas, e também morna. Da nossa realidade, a morna é a única que o ChatGPT usa naturalmente. O resto é adaptado às letras com base em vertentes internacionais disponíveis”.
Mauro Fernandes sublinha que esta IA usa instrumentais musicais conforme o estilo escolhido. “As pessoas pesquisam e ele não dá a mesma resposta para todos. Adapta a letra e a música ao estilo pedido e cria um instrumental”.
Fernandes conta que muitos artistas em Cabo Verde estão a usar plataformas para criar músicas, mas o público ainda não percebeu o que está a acontecer. “A única coisa que dizem é: ‘A música é boa, quem é que canta aquilo?’”.
Por isso, afirma que, actualmente, no mundo artístico, mesmo quando alguém diz que não usa IA, pode não a usar para gravar som, mas pode usá-la para criar letras. “A IA cria letras de acordo com o tema em questão, especialmente para as gerações mais jovens. Hoje em dia temos músicas no YouTube com várias visualizações feitas com suporte da IA”.
Por outro lado, considera que a IA não veio para substituir ninguém, mas sim para apoiar e dar mais ênfase à escrita da pessoa que vai cantar.
Preocupação
A ferramenta pode até ser útil na criação de obras, mas existe um senão: os nossos entrevistados alertam para o perigo do uso excessivo da inteligência artificial.
A cantora Neuza de Pina considera preocupante o uso excessivo da IA por parte de algumas pessoas para fazer músicas. A IA, segundo Neuza de Pina, tem trazido facilidades que, por um lado, impressionam, mas por outro desvalorizam o verdadeiro trabalho artístico. “Fazer música não é apenas juntar sons; é viver, sentir, transformar emoções em melodia”.
Neuza de Pina afirma que Cabo Verde tem uma tradição musical riquíssima, feita por pessoas que nem sempre estudaram música, mas nasceram com o dom. “E agora, as máquinas estão a imitar isso. É assustador ver alguém gerar uma canção em minutos quando muitos de nós levamos meses, às vezes anos, a criar algo autêntico”.
Segundo o produtor musical Paulo Lobo Linhares, ao longo da história da música, sobretudo da produção musical, sempre existiram ferramentas que contribuíram para facilitar ou acelerar (numa perspectiva industrial) o produto final.
No entanto, considera, tudo o que surge numa perspectiva de “apressar” o processo, favorecendo apenas o lado financeiro da indústria musical, enfraquece a criatividade, empobrece o músico e a nossa música.
A vice-presidente da Academia Internacional de Criadores de Música, Solange Cesarovna afirma que a maioria das plataformas de IA usa as obras de milhões de autores e artistas para treinar sistemas altamente lucrativos, sem pedir autorização, sem dar crédito e sem pagar. “Isto não é apenas ilegal, é uma ameaça à essência da criação, à dignidade de quem transforma sentimentos em arte”.
Danny Spínola, presidente da SOCA, defende por seu turno que a IA pode até ajudar a criar, mas, desde que só ajude… agora, fazer tudo, já não é muito bom, porque as pessoas perdem o poder de criação.
E questiona: se todos passarem a criar através da inteligência artificial, “até que ponto teremos inovações e novidades. A IA é algo programado; por mais que ela crie, a sua criação fica numa linha. Por exemplo, na música podemos ter tudo igual, como se fosse plágio, porque é difícil para a inteligência artificial fazer músicas diferentes umas das outras”.
Consequências
Para a cantora Neuza de Pina, as consequências do uso da IA são sérias. Em primeiro lugar, há uma ameaça directa à autenticidade e à sobrevivência dos músicos que vivem da arte, refere.
“Quando qualquer pessoa pode ‘criar’ uma música com um clique, o valor do trabalho humano diminui. Isso pode levar à perda de emprego, ao desinteresse dos jovens por aprender instrumentos e à saturação do mercado com músicas sem alma”, reforça.
Neuza de Pina considera que a música feita por IA pode soar bem, mas é vazia, não tem vida, não tem verdade. “O futuro da nossa cultura musical, especialmente em Cabo Verde, pode estar em risco”.
Paulo Lobo Linhares defende que as consequências dependem de como a IA é usada. “Ainda estamos diante de um mundo desconhecido. Talvez só conheçamos o óbvio, aquilo que nos favorece de forma imediata e financeira”.
Como consequência positiva, sublinha que o artista ganha mais tempo para o “ócio criativo”, que sempre foi e sempre será essencial à criação artística. “Contudo, o uso excessivo da IA pode levar a produções genéricas, uniformizando a música em prol da etiqueta ‘sucesso comercial’ e provocando a perda de identidade própria”.
Para Linhares, a base de dados das IAs cresce com o contributo de cada músico, mas aquilo que cada um lá deixa passa a ser, cada vez mais, de todos. “Alguns chamam a isso democratização da música; eu prefiro chamar-lhe diluição da música, uma perda da pureza e da identidade de cada artista”.
Outro risco é a dependência das ferramentas de IA e a consequente falta de ética ou transparência para com o público, além da preguiça criativa.
“A substituição de instrumentos e músicos humanos por sons gerados artificialmente cria uma ilusão de realidade que, na verdade, é artificial. Isso habitua as gerações futuras ao ‘plástico’, ao som não natural, afastando-as da essência humana da arte”, assegura.

Conforme o produtor musical, mesmo quando o artista dá as directrizes à IA, o resultado nunca traduz por completo o seu interior artístico, “o qual depende do já referido ócio criativo”.
As ferramentas de IA, acrescenta, podem e devem auxiliar, mas nunca substituir o pensamento artístico e o tempo de criação.
Paulo Lobo Linhares sublinha que conhecer bem a IA, sem preconceitos, é essencial. “Ela pode ser usada como laboratório de experiências instrumentais, mas apenas isso: experiências. Aproveitar ‘o já feito’ pela IA traz sempre o risco da uniformização dos chamados ‘sucessos’. Em Cabo Verde, onde muitas vezes a ‘plateia aplaude rápido’, isso pode ser perigoso”.
Papel das autoridades
Neuza de Pina assegura que as autoridades precisam urgentemente de criar regulações claras sobre o uso da IA na música.
“É preciso distinguir o que é criação humana do que é produção artificial. Não podemos colocar no mesmo patamar um artista que investe tempo, dinheiro e alma numa obra e uma máquina que gera uma música em segundos. Precisamos proteger os direitos dos artistas verdadeiros, senão vamos perder toda uma geração de criadores genuínos”, afirma.
Na mesma linha, Paulo Lobo Linhares considera que as entidades responsáveis podem e devem fazer alguma coisa. “A regulação será fundamental para proteger a autenticidade e a autoria musical”.
Solange Cesarovna, por seu turno, avança que as entidades de gestão colectiva, unidas através da CISAC, actuam globalmente com uma força sem precedentes. E estão a exigir mudanças concretas como licenciamento obrigatório das obras usadas na IA; remuneração justa e proporcional para os criadores; e transparência total sobre os dados usados nos sistemas.
“Paralelamente, estão a dialogar e a pressionar os governos e os legisladores, à escala global, para regulamentações urgentes e claras. Fica evidente que sem as entidades de gestão colectiva, e o lobby e o networking global das mesmas, através da CISAC, o ecossistema criativo ficaria desprotegido”, revela.
Já o presidente da SOCA, Danny Spínola, disse que estão preocupados com o avanço da IA e que tem de ser o Estado a agir primeiro, criando leis, por exemplo.
“Compete ao Governo criar leis que ajudem a pôr limites. E que se crie uma linha editorial que analise as músicas antes de passarem nas rádios. Mas o nosso papel não é esse. Quando a pessoa chega aqui com a sua obra, faz-se o registo e o juramento pela sua honra de que o trabalho é dela, e nós só fazemos a gestão e damos à pessoa o direito que ela tem”, salienta.
Em relação aos livros, Danny Spínola considera que o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas tem um papel importante, por exemplo, na criação de uma equipa para analisar as obras antes de serem publicadas.
“Tanto no domínio da música como do livro e da arte, é muito importante que as obras sejam analisadas. Estamos num mundo cada vez mais globalizado, e a tendência é sofrer muita influência. Temos muita tendência para fazer coisas rápidas, o que faz com que as pessoas não se aprofundem e não se dediquem muito”, realça.
Por sua vez, a Sociedade Cabo-verdiana de Música (SCM) promete levar o tema à discussão na próxima assembleia-geral, para poder tomar uma posição.
Apelo
Neuza de Pina apela às pessoas para que não deixem que a tecnologia as substitua. “Usem-na como ferramenta, não como criadora”.
A cantora foguense acrescenta que a música é a voz da alma humana, e isso nenhuma máquina pode replicar. E pede aos colegas artistas que invistam na autenticidade, no talento, no ‘ao vivo’ pois é aí que a verdade da arte continua a viver.
“E aos que vivem inteiramente da música, digo: não desistam. A nossa luta é preservar a essência do que fazemos. Talvez este seja o momento de repensar o mercado, fortalecer o cenário ao vivo e valorizar o que nos torna únicos como cabo-verdianos: a nossa musicalidade natural, o dom”, enfatiza.
O produtor musical Paulo Lobo Linhares apela aos artistas e criadores que trabalhem aquilo que é deles, e que ofereçam apenas isso.
“Busquem inspiração na audição de música, na vossa e na dos outros; frequentem o máximo de espaços musicais, de tocatinas em bares escondidos aos grandes auditórios. Leiam críticas, inclusive internacionais, e, acima de tudo ganhem tempo com o ócio criativo, não com a pressão industrial”, enfatiza.
Linhares aconselha os artistas a inspirarem-se nos mais velhos e ouvirem os colegas de profissão. “Não se preocupem muito com muita coisa que é escrita por ‘críticos’ que não conhecem o terreno-palco, que é, na verdade, o vosso domínio. Porém, sejam escutados e tenham humildade”.
Por sua vez, Danny Spínola apela aos criadores para que usem as suas capacidades, estudem muito, sejam virtuosos naquilo que produzem e cultivem a sua criatividade.
“Pode até haver ajuda artificial, porque está na ordem do dia, mas nunca para ser tudo feito pela Inteligência Artificial”, refere.
Na mesma linha, pede aos seus associados e a todos os artistas cabo-verdianos que façam algo que contribua para o desenvolvimento do país. “Para Cabo Verde se desenvolver, temos de ter pessoas com orgulho dos seus trabalhos, com vontade de criar para o bem do país”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1253 de 03 de Dezembro de 2025.
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