Artesãos querem maior qualidade do artesanato cabo-verdiano

PorDulcina Mendes,28 dez 2025 8:41

Os artesãos Gustavo Duarte e Beto Diogo criticam o actual estado do artesanato cabo-verdiano, apontando a perda de qualidade e apelam à necessidade urgente de valorização da matéria-prima nacional, da criatividade e da profissionalização do sector. Pano de terra, cerâmica, cestaria e trabalho de renda são os elementos que mostram o artesanato cabo-verdiano, sendo uma fonte de renda e uma atracção turística. Alguns artesãos estão preocupados com o rumo que o nosso artesanato está a tomar, com a venda de produtos chineses como sendo artesanato.

O Expresso das Ilhas esteve em conversa com Gustavo Duarte e Beto Diogo. O artesão Gustavo Duarte conta com 50 anos de carreira dedicados ao artesanato e possui a categoria de mestre artesão e professor. Já Beto Diogo, com uma longa carreira nesta área, possui a categoria de mestre artesão formador.

Segundo Gustavo Duarte, o país já viveu um período mais avançado no artesanato, chegando mesmo a produzir selos de artesanato para colecção, um marco de valorização e reconhecimento internacional. “Hoje temos mais quantidade do que qualidade. Há mais artesãos, mas menos artesanato que realmente representa Cabo Verde”, lamenta.

Para Gustavo Duarte, o verdadeiro artesanato deve carregar a identidade do país sem necessidade de rótulos. “Não é preciso escrever ‘Cabo Verde’. A própria obra deve indicar a sua origem”, afirma, acrescentando que as medidas já implementadas, como o cartão do artesão e a atribuição de níveis, podem contribuir para melhorar o sector, desde que haja maior exigência.

Na mesma linha, Beto Diogo afirma que hoje temos pouca qualidade no artesanato cabo-verdiano. “Em relação a um tempo atrás, portanto, o artesanato já caiu muito, porque hoje em dia encontramos pessoas que compram simplesmente objectos nas lojas chinesas, que são um trabalho industrial, e colocam esses objectos na estante para vender como artesanato, quando não o são”.

Beto Diogo indica que a culpa é do Governo, através do Centro Nacional de Artesanato e Design (CNAD), porque foi criado um selo, Created in Cabo Verde, mas infelizmente não há fiscalização.

“E quando tens uma lei e não fazes a fiscalização, obviamente que a lei fica sem vigor, porque mesmo em termos da maior feira de artesanato de Cabo Verde, estou a falar da URDI, encontras pessoas lá a vender peças que não são artesanato, à frente da autoridade, o CNAD, e ninguém toma medidas”, critica.

Para Beto Diogo, a falta de fiscalização põe a nu a falta de controlo, porque devia existir uma equipa, como foi falado na altura, envolvendo desde o Instituto de Gestão da Qualidade e da Propriedade Intelectual (IGQPI) até à fiscalização, neste caso também as câmaras, porque faz parte da lei nacional. “Mas, infelizmente, por falta desse controlo, nós continuamos a ter uma má qualidade do artesanato cabo-verdiano”.

Beto Diogo refere que a sua posição é crítica no sentido de melhorar, e “não é só criticar por criticar, porque podemos dar pistas ao CNAD, neste caso, no sentido de efectivar a fiscalização nas feiras, tanto feiras municipais como feiras a nível do Governo, porque, se reparares, o que aconteceu em Cabo Verde, ao nível da URDI, por exemplo, é a falta de ligação entre o CNAD e as câmaras municipais”.

Conforme Beto Diogo, se houvesse essa ligação de forma rigorosa, estaríamos a ter um grande número de artesãos com qualidade, porque estariam a ser impostos prémios, como o Prémio do Melhor Artesão do Ano ou o Prémio Carreira, uma questão de estimular aqueles que estão a começar agora, no sentido de termos uma representação condigna na URDI.

“Às vezes, reparamos que quem vai representar o seu município na feira, a URDI, não é o melhor artesão nem a melhor qualidade. Muitas vezes, quem vai representar é por padrinhagem, por amiguismo e por politiquismo também”, relata.

Por isso, apela às câmaras municipais para apostarem no Prémio de Melhor Artesão do Ano ou no Prémio Carreira. “Assim como realizam os CVMA todos os anos para distinguir músicos e outras áreas, também o artesanato devia ser contemplado, para podermos ter um artesanato de qualidade na melhor montra de Cabo Verde, a URDI”.

Valorização da matéria-prima local

Uma das grandes preocupações de Gustavo Duarte prende-se com o pouco aproveitamento das matérias-primas existentes no país. Para Gustavo, o artesanato cabo-verdiano deve resgatar o saber dos antepassados, utilizando recursos como carriço, coco, barro e pano de terra, adaptando-os ao mundo contemporâneo.

E lembrou que o carriço era um material outrora essencial, utilizado na construção de casas, estradas de cama e jangadas, mas que hoje perdeu espaço com a industrialização. “Actualmente, o carriço está a ser usado apenas para pequenos cestos, quando pode ser transformado em candeeiros, flautas, brincos, tabaqueiros e outras peças com grande valor artístico”, explica.

Gustavo destaca ainda que há estudos e experiências que demonstram o potencial do carriço, inclusive em ambientes de luxo, como hotéis de cinco estrelas, provando que materiais tradicionais podem ganhar novo significado quando valorizados artisticamente.

Mais artesãos, menos profissionalização

Apesar das críticas, o artesão reconhece avanços importantes, como o aumento do número de pessoas dedicadas ao artesanato, sobretudo jovens. “Antes éramos cerca de 30 artesãos, concentrados no Centro de Artesanato de São Vicente e na Cidade da Praia. Hoje já somos centenas”, sublinha.

No entanto, enquanto membro do grupo de avaliação responsável pela atribuição do cartão do artesão, Duarte afirma que, entre cerca de 600 avaliados, poucos podem ser considerados verdadeiros artesãos. “Somos um país pequeno e, se queremos aparecer, temos de primar pela qualidade. O artesanato deve ser uma profissão, exercida com mestria, criatividade e conhecimento”, defende.

Criar, produzir e vender

Outro ponto central da reflexão de Gustavo Duarte é a necessidade de separar o papel do artesão do vendedor. Para Gustavo, o artesão deve dedicar-se à criação e produção, enquanto a comercialização deve ser feita por espaços próprios ou profissionais especializados.

“O tempo que o artesão passa a vender é tempo que deveria estar a criar. Isso compromete a qualidade e leva muitos a produzir peças pequenas e repetitivas apenas para garantir rendimento imediato”, observa, referindo que as dificuldades financeiras acabam por limitar a ambição artística.

Com uma carreira consolidada, Gustavo Duarte afirma que hoje aposta em peças de maior dimensão e valor artístico, algumas avaliadas entre 100 e 200 contos, destinadas não só a turistas, mas também ao mercado interno. “Temos de pensar nos cabo-verdianos que gostam de ter as suas casas bem decoradas e não apenas vender nos cruzeiros”.

Resgatar o artesanato

Para resgatar e valorizar o artesanato nacional, Gustavo Duarte defende uma maior responsabilidade do Governo e das câmaras municipais. Entre as propostas, destaca a criação de um concurso anual do “Melhor Artesão do Ano”, à semelhança dos Cabo Verde Music Awards (CVMA) na música.

“A ideia passa por eleger, em cada município, os três melhores artesãos, cujas peças passariam a integrar o património municipal. Os vencedores representariam os seus municípios em eventos nacionais e internacionais, promovendo a qualidade e a identidade local”, assegura.

Conforme Gustavo Duarte, esta iniciativa permitiria elevar o nível de exigência, incentivar o uso de matéria-prima nacional e garantir uma representação mais qualificada em eventos como a Feira do Artesanato e Design de Cabo Verde (URDI), que, na sua opinião, tem perdido qualidade devido à selecção inadequada de participantes.

Beto Diogo acredita que o resgate do artesanato cabo-verdiano passa pela formação, porque, “se repararmos, por exemplo, temos vindo sempre a criticar ao nível da nossa panaria. Antigamente, nós tínhamos um pano de terra que era feito de algodão; hoje não. Hoje temos um pano de terra feito em Cabo Verde, mas o material é importado. Então, o pano de terra tem de ser uma peça original, uma peça nacional, porque, quando importas um material, neste caso o pano de terra, que até já foi elevado a património nacional, ele deve ter rigor”.

Para Beto Diogo, nesse caso, o Ministério da Cultura e o Ministério da Agricultura deviam fazer uma concertação, no sentido de estimular esse ícone do artesanato cabo-verdiano, a panaria, no sentido de criar produção de algodão e dar aos artesãos da panaria condições para que pudessem produzir pano de terra com algodão.

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“Um artesão que tem contas para pagar não tem tempo para plantar algodão, colher algodão, urdir algodão até que ele chegue ao ponto de bem produzir. Portanto, acho que as autoridades deviam cuidar dessa parte, para podermos ter um pano realmente cabo-verdiano”, esclarece.

Beto Diogo sublinha que o seu atelier é autónomo. “Sou o primeiro a dar formação de artes em cabedal nas cadeias de Cabo Verde, no Centro de Recuperação de Toxicodependentes, na secção de jovens, e, neste momento, temos um projecto que já tem 15 anos, que é o projecto de artes em cabedal, e que ultimamente reforçámo-lo com o Atelier Móvel”.

Diogo reforça que há bem pouco tempo esteve em algumas zonas com a sua viatura a dar formação a jovens. “Por exemplo, há bem pouco tempo, estávamos no Tarrafal de Santiago, numa zona bem encravada, que é Figura Moita. Também estivemos na Achada Fazenda, estivemos no Tarrafal de Monte Trigo, em Santo Antão. Então, conseguimos, através dessa viatura, levar conhecimento onde os jovens não conseguem ter acesso aos tradicionais centros de formação”.

Formação

Gustavo Duarte defende ainda maior organização da classe, combatendo o individualismo e promovendo encontros regulares entre artesãos para discutir problemas e apresentar propostas às entidades competentes. “Juntos somos mais fortes. Não devemos esperar ser chamados, devemos ter voz activa”.

Duarte acredita que o futuro passa também pela formação, sobretudo das novas gerações. “O artesanato é uma área com carreira. Um jovem pode começar no nível 1 e chegar a mestre, ser formador ou professor. É possível viver bem do artesanato, com profissionalismo”.

Por fim, deixa uma mensagem de esperança e valorização do sector, defendendo o artesanato não apenas como expressão cultural, mas também como área económica, turística, educacional e ambiental.

“O nosso país não é pobre em matéria-prima. A pobreza está na mente. O artesão tem de aprender a olhar, descobrir e transformar”, conclui.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1256 de 24 de Dezembro de 2025.

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Autoria:Dulcina Mendes,28 dez 2025 8:41

Editado porDulcina Mendes  em  28 dez 2025 14:44

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