Quem disse que o futebol é jogo de homens?

PorAnónimo,5 mar 2011 23:00


Futebol no feminino

Na EPIF treinam diariamente dezenas de jovens futebolistas. Entre eles encontramos algumas mulheres, e na história do futebol feminino da Escola encontramos exemplos de coragem, de paixão e de entrega ao "melhor jogo do mundo".

Fim da tarde no Estádio Municipal da Achada de Santo António. O campo de relvado sintético está repleto de crianças e jovens que jogam futebol. Estão divididos por idades, no campo subdividido em seis partes. No último canto, um grupo inicia uma partida de futebol. Coletes vermelhos contra coletes azuis, pés ligeiros e toques de bola seguros. Uma estória sobre futebol deve começar pelos pés. À primeira vista, nenhuma novidade. É quando afastamos o olhar das chuteiras ágeis que vemos tratar-se de mulheres. E aí descobrimos que futebol não é só jogo de homens e que o futebol feminino tem a mesma qualidade de passes de bola que o futebol masculino.

"Há homens que são machistas, quando as mulheres estão a jogar, se não têm campo dizem: "Vão para casa lavar a louça. Vão fazer comida. Deixem os homens jogar que o futebol não é para mulheres. Lugar da mulher é em casa, os homens é que devem jogar," conta Sandra Andrade, uma das raparigas que treina na Escola de Preparação Integral de Futebol, a EPIF.

Os comentários não a incomodam e com o porte altivo próprio das atletas responde que "onde um homem pisa, uma mulher também pode pisar".

Neste momento, treinam na EPIF cerca de 30 mulheres, de todas as idades, mas pela instituição já passaram várias centenas de atletas. Algumas encetaram uma carreira internacional como futebolistas. A maior parte faz isto, simplesmente, por gosto.

"Temos aqui uma senhora, que é um exemplo para o país. Tem 45 anos, 6 filhos, 2 netos e faz parte do clube e da equipa", diz Djedji, fundador e treinador da EPIF.

a

Nas quatro linhas
mundiais

"No ano 2000/2001 preparei uma selecção feminina. Treinámos durante um ano, fizemos trabalhos específicos, de forma progressiva", ", recorda Djedji. "Eram jovens que nunca tinham jogado futebol na parte formativa, e no futebol, como na escola, se não se sabe o ABC não se pode ser engenheiro." Ao fim de um ano foram competir num torneio internacional nas ilhas Canárias.

A equipa chegou aos quartos-de-final da competição, um resultado que ainda hoje enche de orgulho o treinador. Nesse jogo, defrontaram a equipa feminina da Rayco (que detinha o título de campeã espanhola na categoria de seniores) e perderam na marcação de grandes penalidades. "Isto mostra o potencial que temos em Cabo Verde", acrescenta Djedji.

Depois desse campeonato, e quase todos os anos, a equipa feminina participa em competições internacionais.

Mulheres de força

Uma manhã, há cerca de dez anos, ao chegar à sede Djedji deparou-se com uma rapariga sentada à porta. "O que estás aqui a fazer?", perguntou-lhe. E ela respondeu-lhe que veio, de S. Vicente, para treinar com ele. Apanhou boleia num barco e ali estava ela, de seu nome Sheila Fortes, ambiciosa, pronta para o treino árduo e para ganhar o mundo.

b

"A história e a atitude dela motivaram-me", recorda Djedji.

Sheila foi uma das atletas que competiu nas Canárias em 2001. Deu nas vistas e em 2003 o FC Barcelona contratou-a. Actualmente, joga no L'Estartit que é outra equipa da primeira divisão espanhola de futebol feminino. 

Apesar de não ter sido a única cabo-verdiana contratada por equipas estrangeiras, é das poucas que realmente fez carreira no futebol. A maior parte das raparigas quando encontra algum conforto, ou quando casa, abandona a carreira. Ou então quando a vida lhes troca as voltas e engravidam.

Sandra Andrade é um dos casos a quem a maternidade condicionou o futuro enquanto atleta. Sandra participou em competições internacionais em 2004, na Holanda e no Luxemburgo. Depois, em 2006 engravidou e não pôde competir em Espanha. E é com alguma tristeza que pensa na carreira que poderia ter tido. 

Sandra está na EPIF há sete anos e, além de jogar também trabalha na escola: "Faço manutenção na sede, dos equipamentos, cuido das fichas, inscrições, faço tudo".

E em casa de Sandra quase toda a gente joga futebol, os homens e algumas mulheres, mas desde garota é ela quem mais gosta deste desporto e quem influencia os outros. Tem dois filhos, um menino e uma menina que também jogam futebol na escola.

A paixão pelo futebol, nestas mulheres, vem desde pequenas.

Tal como muitas outras raparigas em campo, Sandra começou a jogar com os amigos. Jogavam futebol de praia, de ribeira e Sandra chegou a jogar numa equipa em Lém Cachorro. Tinha 13 anos. Já lá vão vinte anos.

c

Também Maria Semedo de 23 anos começou a jogar nas ruas, rapazes e raparigas todos juntos. Isso foi há algum tempo, mas só há cerca de um mês é que se decidiu a entrar na Escola. Move-a o gosto que tem por este desporto que é também o seu único passatempo: 

"Além do futebol só o trabalho. O futebol é a minha diversão. Não vou a discotecas nem sequer gosto de dançar", responde com os olhos postos no jogo das companheiras.

Também para Viana Semedo (22 anos) o futebol é a sua actividade preferida, mas não encara o desporto com uma simples brincadeira. "Levo isto muito a sério", garante. Por isso, decidiu entrar há oito anos na EPIF que considera "um lugar mais organizado, onde dá para jogar melhor".

Viana já participou em vários torneios internacionais. Foi à Holanda, ao Luxemburgo e a Espanha e confessa que gosta de ganhar. O próximo jogo em que vai participar, revela, é contra a Equipa feminina da escola de São Vicente. "A equipa de são Vicente é boa, mas nós vamos ganhar", diz confiante.

Vaidade fora de campo

Há uma certa resistência familiar que impede muitas mulheres de jogar. As famílias acham que elas não ganham nada com este desporto e que é uma perda de tempo, mas o mesmo não se passa com os rapazes. No caso deles, são os próprios pais que tentam incutir-lhes o gosto pelo futebol.

De facto, mesmo em alta competição, as mulheres nunca ganham muito no futebol, pelo menos quando comparamos os seus ordenados com os valores astronómicos conseguidos pelos dos jogadores masculinos.

Mas ganham outras coisas. Ganham auto-estima, garante Djedji, perdem calorias, ficam com o corpo mais definido, eliminam as toxinas e a pele fica mais fina. Além disso, há toda uma postura, uma verticalidade que lhes é incutida nos treinos, em que devem manter a cabeça sempre erguida, que depois transparece nos seus movimentos do dia-a-dia.

d

Apesar de todas as características, que apontam directamente à vaidade das jogadoras, há coisas que em campo não são admitidas. A vaidade fica fora das quatro linhas.

"O treinador é muito exigente. Somos atletas temos que dar exemplo. Mulher que joga, não deixa crescer as unhas, não as pinta, nem usa brincos", conta Sandra.

Formação e competição

Há duas questões em que Djedji insiste durante toda a entrevista, e nas quais tem insistido durante a sua vida. Dois problemas transversais à modalidade do futebol feminino e masculino em Cabo Verde: a pouca aposta a nível formativo e a falta de campeonatos de formação.

"Isso foi uma falha enorme que se cometeu em quase todas as ilhas do país. As associações regionais de futebol não apostaram na formação", lamenta.

Uma das razões que Djedji aponta como causa do elevado número de desistências a nível da profissionalização desportiva das mulheres é a falta de competitividade.

"Não há competitividade na cabeça e na pele, chegaram a outro lado e preferem fazer a vida de outra forma. Casam e acham que é suficiente. A competitividade cria-se com competições. O atleta, a partir da idade de 10 ou 12 anos deve entrar em competições."

A falta de aposta nos campeonatos de formação é uma forma de desperdício de todo o potencial cabo-verdiano. "No plano internacional as equipas cabo-verdianas e a selecção não ridicularizam o país. Conseguimos empatar e até mesmo ganhar a grandes equipas. Imagine-se se tivéssemos campeonato de formação, se fossemos organizados. Se Cabo Verde tivesse campeonatos de formação já tinha estado no Mundial".

Além disso, até a nível de motivação e trabalho diário, questões fundamentais para uma desportista, é de suma importância a realização desses campeonatos. A maior parte dos atletas não é nem pontual, nem assíduo nos treinos.

"Muitas vezes vêm aos treinos por vir. Quando lhe dá na cabeça ou quando sabem que vai haver saída, por exemplo, para S. Vicente ou para Espanha." Contudo, segundo o treinador, as mulheres são mais esforçadas do que os rapazes.

O número de jogadores de ambos os sexos está a diminuir. Hoje são cerca de 200, mas já chegaram a ser mais de 350. E também este "desinteresse" é consequência da falta de competitividade.

"Os jogadores ficam tantos anos aqui, sem competição chega a um ponto em que isto é monótono. Se houvesse competição, esses jovens tinham vontade de treinar para terem um lugar do 11 (ou até para ficar no banco), para se mostrar às namoradas, aos namorados, e aos amigos", diz Djedji.

Sandra Andrade, ao fazer o balanço dos 7 anos que esteve na EPIF concorda com Djedji e reconhece a falta que fazem as competições: "Se houvesse campeonato o futebol feminino estava mais evoluído", afirma. O mesmo se passa com o futebol.

Outro ponto referido é o currículo do jogador, que se vai construindo ao longo dos anos de formação e que é importante, não só para as futuras contratações, propriamente ditas, mas principalmente para criar o à-vontade necessário aos momentos mais delicados das competições, como os penalties, por exemplo.

"Quem está a perder é o país...", remata Djedji, sem conseguir disfarçar a desilusão.

Um futuro melhor

Djeji relembra, no entanto, que no futuro as coisas talvez sejam diferentes. A EPIF tornou-se uma fundação em 2010. Desde então têm surgido algumas mudanças positivas. Protocolos assinados com o AC Milan, a Câmara Municipal da Praia e a Federação Cabo-verdiana de Futebol (FCF), contemplam a criação de campeonatos no plano da formação. Por isso, apesar dos obstáculos que ainda é preciso ultrapassar, perspectivam-se melhorias significativas a nível do futebol de formação.

 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Anónimo,5 mar 2011 23:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  5 mar 2011 23:00

pub.
pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.