Durante a chamada idade de ouro do xadrez francês Deschapelles, La Bourdonnais, Saint-Amant e Krieseritzty formavam o temível quaterto do Café de la Régence, aquela constelação de quatro brilhantes xadrezistas franceses que durante décadas espalharam terror e susto nos salões europeus, e aos quais ficamos a dever as mais bárbaras, ferozes, impetuosas, fascinantes e brilhantes partidas de todos os tempos. Cronologicamente o primeiro a entrar na arena foi Alexandre Louis Deschapelles (1780-1847), em muitos aspectos o percurssor e protótipo dos modernos Grandes Mestres. Era arrogante, convencido, fanfarrão e um apaixanado pelo jogo de cartas e de azar. Além disso foi um heroi.
Filho de um marechal francês, na guerra contra a Prússia perdeu a mão direita e ficou gravemente ferido na cabeça. No princípio do século XIX gozava a frenologia de grande reputação e muitos adeptos desta pseudo-ciência especulavam se o traumatismo craneano de que foi vítima não teria afectado a parte do seu cérebro responsável pelo xadrez. „Cabe aos fisiólogos demonstrar“, escreveu em 1850 o jornalista inglês George Walker, “se a contusão que Deschapelles sofreu na cabeça não terá estimulado ao mais alto grau a sua fantasia, atributo sem o qual um génio é absultamente impensável”. Deschapelles afirmava nunca ter-se ocupado da teoria do jogo; mais ainda, que nunca tinha ouvido falar do xadrez até o dia em que num passeio pelo Palais Royal deparou-se-lhe dois homens aprofundados num jogo que ele tomava conhecimento pela primeira vez. Durante duas horas seguiu atenciosamente o estranho e misterioso jogo.
Logo após a partida desafiou o melhor dos dois, um tal Monsieur Bernard para um match no dia seguinte no Café de la Régence. Deschapelles perdeu em poucos lances todas as partidas, mas insistiu numa revanche no próximo dia, pois a sua vontade de ganhar não ficava nada a dever aos futuros campeões mundiais Alekine ou Bobby Fischer. Bernard, sem saber como lhe acontecia, perdeu uma partida atrás da outra.
Deschapelles resume num misto de vaidade e vanglória o histórico encontro. “Acabei por lhe oferecer dois pões e dois lances de vantagem... e ganhei. Desde esse esse dia não progredi mais no xadrez. Na minha experiência aprendende-se em três partidas tudo o que é possível aprender no xadrez.” É uma história bonita, mas é pena que ninguém lhe tenha dado crédito. Certo é que a despeito da sua extrema pompa, e da sua relativa simplicidade estratégica, (quero dar mate, voilà tout) Deschapelles foi, durante muitos anos, o mais forte jogador da França e do mundo. Nos últimos anos da sua vida retirou-se do xadrez – por duas razões: primeiro porque surgiu uma nova geração de mestres contra os quais tinha poucas chances e Deschapelles não suportava derrotas; segundo, porque durante as guerras napoleónicas o mestre resolveu tornar-se agricultor. Um desses novos mestres despontados no firmamento escaquístico foi seu aluno La Bourdonnais, o qual teremos o prazer de apresentar num dos próximos números.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 836 de 06 de Dezembro de 2017.