Este tipo de mate acontece com frequência em partidas Blitz e Bullets, quer por meio de golpes táticos, quer por pura distração. Portanto, é compreensível que em partidas com estes ritmos, mas é raro ver isso acontecer em partidas clássicas, ainda por cima quando o ‘’azarado’’ era o então Campeão Nacional, jogando com um adversário com muito menos conhecimento teórico do jogo.
Sim, foi exatamente isso que sucedeu. Fui mais uma vez vítima do mate da retaguarda três anos após ter perdido a tal partida às cegas que comentei na minha última crónica. Desta vez foi um pouco mais de um mês após ter-me sagrado Campeão Individual Absoluto de Cabo Verde. Tinha sido convidado como figura ilustre para participar no 1º Open Sal, cuja ideia era reunir no mesmo torneio os melhores jogadores nacionais e quiçá um ou outro estrangeiro.
Open Sal, Área Docas, Pedra de Lume 30/08/2018
( Marco Duarte vs Éder Pereira)
Era a primeira ronda. O átrio de jogo era afável e ficava à beira-mar. Havia uma tela gigante para que o público pudesse acompanhar as partidas e um tabuleiro DGT para transmiti-las online em tempo real. Não que isso tivesse algum peso psicológico sobre mim, mesmo sendo a primeira vez que jogava em directo. Estava numa onda de “não me aquece e nem me arrefece”. Confesso que não preparei nada em especial para aquela partida, pois só havia passado um mês desde a minha última competição que tinha vencido invicto, jogando contra os players da elite nacional. Ainda sentia-me em boa forma e confiava na minha experiência.
1.d4 Cf6 2.Cc3 d5 3.Bf4 (o Grande Mestre Baadur Jobava, da Geórgia, é considerado um grande especialista do sistema London com o Cavalo em c3. Mas o meu adversário não levou a cabo nenhuma das ideias teóricas deste sistema. Fez lances naturais e tentou iniciar rapidamente um “ataque” no flanco do rei com táticas simples. Mantive sempre um olho atento no meu rei, mas estava mais focado em delinear um plano a longo prazo). Bf5 4.Cf3 e6 5.e3 Be7 6.Bd3 Bxd3 7.Dxd3 O-O 8.O-O a6 9.Be5 Cbd7 10.Cg5 c5 11.Bxf6 Cxf6 12.e4 (“ele vai perder um peão!”, foi a primeira coisa que saltou-me à vista. 12…dxe4 13.Ccxe4 Cxe4 14.Cxe4 Cxd4 15.Df3 b5 16.c3 De5 17.Tfe1 Dc7 18.Tad1 Tfd8 19.Txd8+ (considero este lance um erro posicional, pois cede a coluna D às pretas sem nenhuma compensação). 19… Txd8 20.h3 (abrindo uma “janelinha” de escape de um eventual “mate com os peões do Éder”. 20…Dd7 21.Cg3 Dd2 22.De4 Dd5? (Procurava simplificação, ganho do peão b2 ou então meter uma Torre na sétima). 23.Df4 Dd2 24.De5 Bf6 25.De4 Dxb2 26.Kh2 Dxc3 27.Te3 Dd4 28.Df3 Be5 29.Te4 Dc3 30.Dh5 Bxg3+ 31.fxg3 Td5? (Blunder! Aqui com 32. Dxd5 era morte súbita! Não o vi no momento, mas felizmente o Marco também não se apercebeu). 32.Dh4 Td4 33.Tf4! Feito este lance, Marco levantou-se e foi beber uns goles de água. Txf4. (Mal larguei a Torre na casa f4 apercebi-me de imediato do desastre que tinha causado para o exército negro. Fiquei estupefacto por um instante segurando a Torre branca na mão a tentar perceber o que poderia ter causado aquela confusão. Há muito que vigiava a possibilidade deste mate, mas então como foi que o permiti? E logo percebi que havia sido “enganado” pelo meu próprio cérebro. A informação que captei nesta posição foi que a Dama preta encontrava-se na casa D2. Não sei a razão de ter “visto” assim, mas deduzo que seja devido ao facto de esta Dama ter lá já parado duas vezes e de ter estado quatro ou cinco vezes vagueando nessa coluna. Acordando do meu devaneio ainda levantei a cara para a tela gigante para conferir se tinha realmente feito aquela asneira e deparei com o Marco a ver para a mesma tela e saindo depois disparado em direcção ao tabuleiro para também certificar-se do sucedido. Mal chegou ao tabuleiro, começou a rir de alegria acompanhado de um grunhido, comparado a uma criança que acaba de receber um playstation da última geração. Fez o seu lance esbarrando um pouco na mesa, quase derrubando as peças. Nem sequer sentou-se na cadeira que estava mesmo à frente). 34.Qd8# 1-0
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020.