Uma história de empreendedorismo na ilha de Monte Cara

PorJorge Montezinho,14 jul 2018 7:18

Amílcar Lopes
Amílcar Lopes

​Não é fácil ser empresário em Cabo Verde. Quando não são os problemas de financiamento, ou de acesso à energia e água, são os bloqueios burocráticos. E quando não é um nem outro, vem a natureza e dificulta ainda mais a vida de quem quer investir. Mas nenhum destes escolhos assusta Amílcar Lopes, o empreendedor por trás da agro-indústria Gota D’Água em São Vicente.

A meio caminho entre o Mindelo e o Calhau, zona árida de terra vermelha, ergue-se um oásis de dez hectares. O Gota D’Água é o resultado do trabalho, e da teimosia, de um homem: Amílcar Lopes, antigo emigrante nos Estados Unidos da América que resolveu investir no agro-negócio na ilha de Monte Cara.

“Disseram-me que a fruta não dava em São Vicente”, diz o empreendedor ao Expresso das Ilhas, “mostrei-lhes que estavam errados”, completa com um sorriso. Amílcar Lopes é afável e bem-disposto, de gargalhada fácil e bom conversador. Mesmo quando enumera as dificuldades, a que chama desafios, fá-lo sem qualquer nota de pessimismo na voz. Em ilha de marinheiros, enfrenta as tempestades em terra como os velhos lobos no mar, a ondulação é encarada de dentes cerrados, mãos no leme e olhar sempre em frente.

Em 1993, Amílcar Lopes regressou dos Estados Unidos da América e criou uma indústria em São Vicente. Uma fábrica, instalada no Mindelo, de confecções, serigrafia, tipografia e embalagens. O negócio funcionou, e funciona, pelo que o investidor resolveu arranjar um colaborador e passou para uma área que tinha experimentado na juventude: a agricultura.

Esta segunda aventura começou em 2000. Escrevemos aventura, mas Amílcar prefere chamar-lhe “experiência”. Aliás, a palavra “experiência” é recorrente neste mindelense. “Porquê a agricultura? Porque vi que São Vicente tinha grande possibilidade no sector. Os governantes sempre disseram que esta não é uma zona agrícola, mas São Vicente é a melhor zona agrícola que há em Cabo Verde, porque aqui há muita água, só falta saber aproveitar essa água. Sempre soube que havia potencial”.

O terreno foi adquirido ao Estado. “Vi uma oportunidade de negócio. Podemos produzir tudo o que é fruta, morango, banana, papaia, maracujá, quiabo, mangueira, coqueiro, temos tudo. Estas são plantas que podemos produzir em São Vicente”.

Mas o início não se deu com as frutas, começou pela pecuária. Vacas e cabras cujo leite era vendido para os produtores de queijo. “Cada um faz aquilo que sabe. É assim que se faz bem”, diz a rir. Houve uma outra experiência com animais, neste caso com aves, aves especiais e que não se vêem em Cabo Verde: avestruzes. Deu prejuízo. E dos grandes.

Os animais foram comprados no Brasil. Encomendou doze. Do país de Vera Cruz até ao Sal a viagem decorreu sem problemas, durante a madrugada. Com o crónico problema de transportes que existe em Cabo Verde, Amílcar Lopes só as conseguiu tirar do Sal no dia seguinte, também de madrugada. O excesso de viagens foi fatal para a maior ave do planeta e com uma resistência que lhe permite viver nos mais áridos dos ambientes. Só não aguentou a falta de ligação entre ilhas. Só quatro chegaram vivas a São Vicente. Cada avestruz custa cerca de 500 contos, é só multiplicar por oito e contabilizar as perdas. “Se uma pessoa não é forte, desanima com o prejuízo”, diz Amílcar Lopes, “mas foi bom para ganhar experiência”.

Mas a história das avestruzes não acaba aqui. Com um ano e dois meses, as sobreviventes puseram os primeiros ovos, facto que surpreendeu os brasileiros uma vez que a ave costuma demorar mais de dois anos para atingir a idade fértil. Mais uma vez a fatalidade, aliada aos problemas crónicos com que se debate o arquipélago, uniram-se para criar a tempestade perfeita. Os ovos, que precisam de calor nos primeiros dias, não resistiram a um corte de luz da Electra numa altura em que Amílcar Lopes estava ausente da quinta.

“Foi uma boa experiência”, repete o empresário. “Estou a recuperar e vou recomeçar porque aqui é o melhor lugar para criar avestruzes, porque aqui não chove e as avestruzes não gostam de muita chuva, gostam do deserto”.

“A criação de avestruzes devia ser bem aproveitada por Cabo Verde”, continua, “pode aproveitar-se a carne, os ovos e os ossos podem ser usados para fins medicinais. É preciso é investimento. Uma avestruz não custa a sustentar, o problema é trazê-las”. E há dados que corroboram este interesse: por exemplo, o couro do avestruz é o 2º mais caro do mundo, ficando atrás apenas do couro de crocodilo, a estimativa de vida da avestruz é de 70 anos, a prole chega a ser de 30 a 60 crias por ano e 1 ovo de avestruz equivale aproximadamente a 25 ovos de galinha.

Encerrado, para já, o capítulo avícola, concentremo-nos na outra “experiência”, que começou há apenas três anos: fruta. De 2015 a esta parte, tudo o que foi plantado pegou. Ah, e é tudo o mais natural possível. “Só abri o buraco, reguei e adubei, mais nada”, e o adubo é apenas o estrume dos animais que ainda vivem na propriedade, as treze vacas e cinquenta cabras que passeiam indolentes e indiferentes ao calor do dia. “Quando comprei este terreno baldio, um terreno vermelho, toda a gente dizia que aqui não ia dar nada e eu disse que aqui ia dar tudo o que eu queria pôr”.

Diariamente, a Gota D’Água produz cem quilos de papaia (durante todo o ano), trinta quilos de morangos (entre Dezembro e Julho), trinta quilos de maracujá (entre Outubro e Maio) e cem quilos de banana de dois em dois dias. A banana é, aliás, a “experiência” mais recente, o bananal é recente, mas, como os anteriores, começou a produzir assim que foi plantado. “As próprias plantas vão-se adaptando, é algo que tenho dado conta de ano para ano. Se tivesse água, produzia muito mais, mas no próximo ano já estaremos a produzir mais”.

Num local isolado e ermo, conseguir água é um dos desafios. A propriedade tem cerca de quatro toneladas por dia, mas a solução já está a ser executada (contamos já de seguida). Para já, não há pé de planta que fique sem a sua gota de água diária.

O mercado de venda da produção é a própria ilha de São Vicente e o escoamento é de 100 por cento. No próximo ano, a empresa deverá ter o seu próprio selo de qualidade e então, talvez, se pensem noutros mercados. “Nunca pensei vender para fora de São Vicente porque é um bom mercado e tem muita procura. Os outros estão a pôr pesticidas e nós não, o nosso produto biológico tem muita procura. Vende-se a preços maiores por causa disso, mesmo assim com muita procura”.

Amílcar Lopes gosta de partilhar as suas “experiências”. Sempre que cria plantas, manda para os outros agricultores, de borla, já ofereceu morangos, papaias, bananas, plantas de coco. “Dou aos agricultores aqui à volta para os incentivar. Com uns funciona, outros desanimam logo ao primeiro impasse. Um quilo de morango biológico é vendido por 800$00, o maracujá a 350$, mas o pessoal à primeira contrariedade desiste. Eu estou bem, mas já estive mal. Para ganharmos experiência temos de passar por dificuldades”, diz enquanto verifica uma bananeira carregada de cachos.

Amílcar Lopes passa todo o tempo na propriedade, do nascer do dia até ao cair da noite. Segue tudo o que se passa, experimenta, pensa em soluções, filosofa. Foi assim que decidiu como poderia acabar com o problema da água: construir lagos artificiais. Pensou e agiu. Numa das pontas da quinta há dois, um quase terminado, o outro bem encaminhado.

“Esta é a solução para Cabo Verde, não são as barragens, são os lagos. É só cavar um buraco, pôr uma tela, e recolher a água da chuva. Não quero que a água da chuva escorra para o mar, quero protegê-la”. E quando chover conseguirá juntar dez mil toneladas de água. “Gastaram-se milhões de contos em barragens e podemos fazer esta obra com centenas”.

Curiosamente, a construção dos lagos artificiais chamou, pela primeira vez, a atenção das autoridades para o projecto do empresário. “Uma pessoa chegou aqui e disse-me, você não tem medo que lhe embargue a obra?”, ironiza Amílcar Lopes. “Em vez de me perguntar se precisava de um incentivo, não, vem com ameaças. Às vezes é desanimador, eu estou a fazer isto para o bem. E ainda me vêm dizer uma coisa destas? Estou só a tentar segurar a água. Pelo menos as pessoas aprendam. Se fizerem isto em todas as ilhas conseguem uma água limpa, basta chover e fica aqui. É uma experiência que estou a fazer, Deus queira que todos tiremos partido dela”.

E como é optimista por natureza, já está a pensar na próxima exploração. “Será da babosa, para fins medicinais. Já está montada a zona onde vai ser plantada, será construída uma pequena indústria para transformar a babosa e se tudo correr bem no próximo ano começará a produção”.

E os financiamentos, onde vai buscá-los? “Financiamentos? É muito complicado, muita burocracia, prefiro usar o meu dinheiro. É um sacrifício, mas é melhor”.

E não querendo fazer piadas com as avestruzes, há outros problemas bicudos a enfrentar todos os dias, a falta de veterinários, de agrónomos que ensinem como plantar, de energia, a escassez de pessoal qualificado (neste momento, há nove pessoas a trabalhar desde a apanha da fruta, até ao embalamento e ao tratamento dos animais), a própria natureza. Mesmo assim, Amílcar Lopes diz que vale a pena. “É uma aventura, mas é algo que gosto porque é algo que faço com paixão”.

“Sabe o que mais nos falta?”, remata em jeito de despedida, “pessoas que acreditem nelas mesmas. Se elas acreditarem que conseguem, fazem. As pessoas têm de acreditar. Temos de mostrar às pessoas que elas podem fazer o que quiserem, podem construir”. Depois sorri, acena um adeus rápido e volta a descer para o meio onde se sente melhor, para as suas experiências.

GOTA D’ÁGUA
GOTA D’ÁGUA

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.

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Autoria:Jorge Montezinho,14 jul 2018 7:18

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  16 jul 2018 7:30

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