“O nosso maior desafio é melhorar a produtividade” - João Neves

PorAndre Amaral,1 jul 2019 7:15

Saído de uma crise económica profunda, de um resgate financeiro pela Troika e de uma situação de desemprego que não parava de crescer, Portugal é hoje apontado como exemplo de recuperação económica.

Nesta entrevista ao Expresso das Ilhas, João Neves, Secretário de Estado da Economia, explica como foi possível reverter um cenário negativo a todos os níveis e entrar numa fase de crescimento económico. No entanto, alerta, “quando nós crescemos torna-se cada vez mais difícil de sustentar o ritmo de crescimento”.

Portugal registou um crescimento do investimento. Esse crescimento é resultado da articulação entre políticas públicas e do investimento privado. Como é que se atinge esse ponto de equilíbrio? Como é que se consegue atrair investimento para o país, mas também manter o papel do Estado na economia?

A evolução que nós tivemos nestes últimos anos foi basicamente do lado do investimento empresarial. A queda do investimento empresarial tinha sido muito forte na sequência da crise económica. O ano de 2013 foi o ano mais fraco numa série muito longa. O investimento caiu, resultante de uma fortíssima queda da procura que se registou a nível global e que conduziu a uma diminuição do comércio global, coisa que ninguém esperava que pudesse acontecer após anos e anos em que o comércio foi crescendo mais ou menos, mas sempre na tendência de aumentar as trocas comerciais entre os países.Quando se inicia a recuperação da procura, as nossas empresas investiram, porque viram uma oportunidade para que pudessem ter maior capacidade concorrencial. Isso tem vindo a acontecer de forma consistente ao longo dos anos, e nós pudemos ter um percurso de recuperação económico que está ligeiramente acima da média da União Europeia e isso conduziu, não apenas, a uma melhoria da presença nos mercados de destino – nós aumentamos nos principais e mais sofisticados mercados, nomeadamente na União Europeia, as quotas de mercado – mas também para a criação de postos de trabalho de forma expressiva. Nós tivemos uma recuperação muito sensível de postos de trabalho que terminou numa baixa muito significativa da taxa de desemprego. Isto foi criado pelas empresas e isso é o mais importante, porque nós tivemos sistematicamente, ao longo de alguns anos, um esforço de investimento muito centrado em bens não transaccionáveis. O que não quer dizer que o investimento, nomeadamente em infra-estruturas, não seja muitíssimo importante. Obviamente que é. Mas se tivermos uma composição do investimento mais centrada do lado dos bens transaccionáveis, que são os bens produzidos pelas empresas, nós teremos um crescimento mais sólido e mais forte.

E qual deve ser o papel do Estado?

O papel do Estado são vários. Eu não sou, de todo, daqueles que pensa que o Estado não tem um papel na área económica. Tem, em primeiro lugar, um papel de regulação. Que é o papel de criação de condições do ponto de vista do enquadramento, do ambiente de negócios, dos aspectos regulamentares, no aspecto de facilitação do trabalho das empresas. É um trabalho muito decisivo desse ponto de vista.

Mas eu acho que o Estado tem também um papel de acelerador da dinâmica de crescimento dos países. Nós, desse ponto de vista, agimos com os instrumentos que tínhamos disponíveis. O que fizemos foi uma reorientação dos fundos comunitários, no sentido de facilitar o investimento das empresas e isso determinou um enorme aumento daquilo que têm sido os apoios, por um lado, dos fundos estruturais ao investimento empresarial. Nós temos quase 10 mil milhões de euros de investimento empresarial apoiado pelo Portugal 2020, nomeadamente através do IAPMEI que é a principal instituição nessa área. Há uma reorientação e criamos, simultaneamente, uma articulação entre o que eram os incentivos financeiros do Portugal 2020 com o sistema de garantia de crédito. Facilitámos o acesso ao crédito por parte das empresas, em condições mais vantajosas e que permitiam que os projectos de investimento se concretizassem de uma forma mais simples e mais rápida, porque nós precisamos de ter condições de aproveitar a dinâmica dos mercados, mesmo que as taxas de crescimento dos mercados não sejam tão elevadas. Por outro lado, fomos fazendo de forma paulatina um conjunto de incentivos de natureza fiscal. Nomeadamente os que estão direccionados para o reforço dos capitais das empresas e para o reinvestimento dos lucros que as empresas foram obtendo neste período de recuperação. Aliás, sistematicamente é muito desvalorizado aquilo que é esta dimensão do lado fiscal que foi feito. As pessoas preocupam-se com as taxas nominais do imposto quando, na verdade, o que interessa são as taxas efectivas de imposto. Há um estudo que foi feito no ano passado que indica que no que se refere aos apoios fiscais ao investimento, Portugal tem o segundo sistema mais favorável ao investimento empresarial. Portanto, há uma grande diferença entre taxas nominais e efectivas, porque nós temos um conjunto de benefícios fiscais que são dirigidos. No caso das empresas, temos um papel muito importante nos benefícios fiscais dirigidos à investigação e desenvolvimento que cresceram, neste período, de uma forma muito significativa, precisamente porque aproveitaram esta mudança no sentido da procura e a lógica de investimento do lado das empresas.

Como é que se conseguiu tornar Portugal num país atractivo quando tinha acabado de sair de um resgate do FMI, com um desemprego cada vez maior?

Nós, como povo, temos tendência para altos e baixos muito fortes. Em todos os aspectos da nossa vida, desde o futebol a todas as dimensões da nossa vida passamos de momentos de histeria a momentos de tristeza profunda. Não estou a desvalorizar aquilo que foi a crise económica, que foi fortíssima e que atingiu acima de tudo as pessoas mais desfavorecidas, que perderam o emprego, que perderam rendimentos, que tiveram de emigrar de forma muito mais expressiva do que aquilo que é a tendência natural. Houve um impacto muito forte. Com este governo, eu acho que invertemos duas coisas. Invertemos uma lógica de clima associado a instrumentos de governação, dando o sinal de que nós tínhamos de fazer, por um lado, recuperação de rendimentos que as pessoas perderam de forma muito forte. Essa recuperação tinha de ser paulatina, porque não havia condições do ponto de vista orçamental para o fazer de outra maneira no que se refere aos rendimentos das pessoas entregues do lado do Estado. Mas também do lado privado, aquilo que eram os sinais, nomeadamente do lado fiscal, tinham que ser sinais mas não podiam ser mudanças abruptas, porque não havia condições desse ponto de vista. Mas esses sinais são muito importantes para a confiança daquilo que são as pessoas individualmente e do consumo das famílias, a percepção que os outros fazem de nós. Portanto, essa dimensão do lado da actividade das pessoas, das famílias e mesmo do Estado era muito importante para quebrar um ciclo em que os efeitos da crise económica tinham sido muito profundos e que julgávamos que não podia haver se não a continuidade dessa dimensão. A acção política é um conjunto de sinais para a vida das pessoas e do país que não deve ser confundida com nenhum facilitismo. Muitas vezes acha-se que o virar a página da austeridade significa que se pode dar tudo a todos. Ninguém disse isso. O que se disse é que era preciso inverter uma lógica de empobrecimento e que só havia concorrência se nós baixássemos salários.

Fez-se as pessoas acreditar que era possível inverter o cenário.

Que havia outras dimensões da política que era possível explorar no contexto das limitações que nós tínhamos. E isto foi feito. E depois foi feito um conjunto de reorientações da política económica, quer do lado da área de intervenção do Ministério das Finanças, quer dos outros instrumentos de política pública, no sentido de ir dando sinais de que Portugal tinha algumas condições para investimento. Porquê? Porque temos uma juventude qualificada. Nós tendemos a dizer que é a mais qualificada de sempre e, na verdade, é. Com características muito particulares, porque tem muita capacidade em áreas onde os países, nomeadamente da Europa Central, têm muita dificuldade em ter mão-de-obra disponível como Engenharias, Tecnologias de Comunicação ou Sistemas de Informação. Havia qualificações que estavam disponíveis e que correspondiam ao défice do outro lado. Temos um país muito seguro e com boa qualidade de vida, algo que às vezes é muito mais perceptível pelos estrangeiros do que por nós próprios. Depois tivemos uma política muito dirigida à inovação e àquilo que é a transformação digital. Colocámos na agenda essa dimensão que correspondia ao que estava e continua a estar a fervilhar no mundo. Tudo isto permitiu ter uma mudança na orientação do investimento das empresas já sediadas em Portugal, permitiu ter um novo olhar para o país pelos estrangeiros. O turismo teve um papel muito importante nisso. O turismo determinou que passássemos a ter ligações muito mais próximas com um conjunto de povos que nos conheciam, mas que não nos conheciam tão bem assim. Os franceses quando começaram a ter ligações aéreas para Lisboa e para o Porto criou-se uma oferta que eles aproveitaram, porque era próximo, era relativamente barato para as diferenças no nível de vida e perceberam que afinal era um país interessante, diferente, uma experiência nova. Isso permitiu criar uma percepção no país que, na verdade, não correspondia ao que eles julgavam que era Portugal. Tivemos várias coisas ao mesmo tempo que agora é preciso sustentar.

Não sei se diga que o mais fácil é esta mudança, porque esta mudança foi difícil e conduziu a uma mudança de orientação do lado das políticas do governo, mas quando nós crescemos torna-se cada vez mais difícil de sustentar o ritmo de crescimento.

44% do PIB português vem das exportações. É a diplomacia economia a funcionar...

É diplomacia económica, mas sobretudo do lado das empresas. Eu volto a dizer que sou não dos que acha que o Estado não tem de ter um papel na economia, eu acho que tem. Tem de haver investimento público, sobretudo nas áreas que podem ser importantes para que o investimento empresarial seja mais bem feito e uma das dimensões que eu acho muito importante é termos investimento público nas áreas da investigação e desenvolvimento. E isso tem sido feito mas precisa de ser continuado, porque pode alavancar aquilo que é o valor que os produtos e serviços das empresas portuguesas pode ter.

Esta trajectória foi um pouco isso. Um terço das nossas exportações são à volta do sector automóvel. Fabricação e componentes automóveis do mais variado tipo: plásticos, têxteis, peças mecânicas. Esses 30% são integrações em cadeias de valor muito sofisticadas. Por isso temos de ter qualidade e para se fazer isso é preciso investimento e é preciso a incorporação da investigação e desenvolvimento. Esse foi o percurso feito. Do lado das indústrias mais tradicionais, aquelas para as quais olhamos e que achamos que são menos sofisticadas, nós tivemos uma mudança muito profunda, nomeadamente ao nível dos têxteis. Continuamos a ter o segmento do vestuário com uma forte presença, mas o crescimento maior veio dos têxteis técnicos, também associados ao automóvel e a outro tipo de vestuário, com outras funções, quer para bombeiros, quer para militares, equipamentos de segurança. Esses produtos têm muito maior valor acrescentado do que fazer camisolas, que era a visão que nós tínhamos como o único destino ao nível dos têxteis. As empresas vieram mostrar que é possível evoluir nos produtos tradicionais. Mesmo no calçado, nós fizemos um percurso de crescimento do valor.

Nas diferentes dimensões dos nossos sectores exportadores nós fomos incorporando maior qualidade e maior sofisticação. Foi isso que permitiu fazer esta mudança. Agora é preciso continuar este percurso e ser capaz de perceber as mudanças que estão a acontecer no sistema económico, porque estas coisas nunca estão acabadas. Estamos a ter uma grande mudança do ponto de vista de organização do sistema e temos de a acompanhar. Já não temos tanta mão-de-obra disponível, temos uma vocação exportadora forte, para nós continuarmos a crescer é preciso muita eficiência do ponto de vista daquilo que fazemos e que é uma mistura de boa organização, boa gestão, partilha dos resultados do crescimento com os trabalhadores, porque as carreiras das pessoas são essenciais e se elas não sentirem que o crescimento também é partilhado com elas perguntam porque se hão-de esforçar mais. Tem de haver uma equidade daquilo que são os ganhos deste crescimento, até porque temos problemas de equilíbrio na distribuição de rendimento e isso tem de ser percebido por todos, pelo Estado, pelas pessoas, pelos empresários. Essas dimensões têm de estar concentradas naquilo que julgo que é o nosso maior desafio e que é melhorar a produtividade.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 917 de 26 de Junho de 2019. 

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Autoria:Andre Amaral,1 jul 2019 7:15

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  1 jul 2019 20:42

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