A máquina mais complexa de todas, provavelmente, é o corpo humano. Um adulto, em média, tem 100 triliões de células e 1.500 triliões de micróbios. Ou seja, na melhor das hipóteses, somos pouco mais de 10 por cento humanos. Há uma velha piada entre cientistas que diz: “não passamos de placas de Petri com sapatos”.
A partir de hoje, ninguém o vai considerar maluco se começar a referir-se a si próprio na primeira pessoa do plural – usar o ‘nós’ em vez do ‘eu’. A verdade é que somos mais um superorganismo do que exactamente um ser humano único. Neste momento, as mais recentes experiências laboratoriais estão a virar-se para o mapeamento do nosso microbioma, isto é, já não se fala do mapa genético humano mas sim dos genes dos triliões de bactérias que partilham o nosso corpo. Que todos os dias nascem, vivem e morrem na nossa pele, na língua ou nos recônditos dos intestinos. No fundo, que nos chamam de “casa”.
Justin Sonnenburg, um microbiólogo de Stanford, disse ao New York Times que devemos começar a olhar para o corpo humano como um “recipiente elaborado e optimizado pelo crescimento e dispersão dos nossos microscópicos habitantes”. Esta nova maneira de olharmos para nós mesmo tem várias implicações para a saúde dos humanos e dos micróbios, que afinal está inextrincavelmente ligada .
Desordens no nosso “ecossistema interno”, como a perda de diversidade ou a proliferação do género errado de micróbios, podem predispor-nos para a obesidade e para toda uma série de doenças crónicas ou de infecções. Já se sabe há uns anos que ratos obesos perderam peso quando foram transplantados com micróbios dos intestinos de ratos magros, não se descobriu ainda é como funciona o processo. Uma experiência semelhante foi feita recentemente em seres humanos, na Holanda, com a transferência de microbiota saudável (microbiota é a palavra usada pelos cientistas quando se referem a uma comunidade de micróbios) para um paciente com síndroma metabólico e a verdade é que de alguma forma, que os cientistas ainda não descobriram, os micróbios ‘saudáveis’ influenciaram o metabolismo do paciente de forma positiva.
A nossa comunidade de micróbios (microbiota) também parece ter um papel chave no treino e na modelação do nosso sistema imunitário, ajudando-o a melhorar as suas capacidades de discernimento entre amigos, inimigos, potenciais causadores de alergias, etc. Há mesmo investigadores a acreditar que o aumento alarmante de doenças auto imunes no ocidente deve-se a uma quebra na relação ancestral entre os nossos corpos e os seus ‘velhos amigos’ – os micróbios com quem evoluímos e com quem vivemos.
Estas afirmações podem soar um tanto ou quanto extravagantes, e os próprios investigadores têm tido o cuidado de não ter o mesmo discurso que os seus colegas tiveram há uma década atrás, quando se começou a descodificar o genoma humano e a prometer a cura para todas as doenças. Para já, estamos mais num momento de ‘esperar para ver’, mas as descobertas mais recentes, as implicações do que tem sido descoberto, são ainda difíceis de compreender. Num artigo recente, um grupo de cientistas escreveu que a saúde humana deve agora ser vista como “uma propriedade colectiva entre seres humanos e a microbiota associada”. Há mesmo quem se refira à necessidade de restaurar a ecologia, não da floresta tropical ou das pradarias mas do nosso próprio interior.
Ron Knight é um cientista neozelandês que trabalha actualmente nos Estados Unidos da América e que tem estudado a comunidade de micróbios do ser humano, usando como cobaia a si próprio, a mulher e a filha de 16 meses. Analisando as fraldas da filha, Knight conseguiu seguir o processo de colonização dos intestinos de um bebé. Este começa praticamente logo a seguir ao nascimento, quando uma comunidade juvenil de micróbios começa a juntar-se. A introdução de alimentos sólidos, os micróbios começam a modificar-se e aos três anos de idade a comunidade de micróbios no intestino de uma criança começa a assemelhar-se ao de um ser humano adulto.
O estudo dos bebés tem-se revelado crucial. Uma das primeiras pistas sobre a complexidade do nosso microbioma surgiu com um mistério à volta do leite materno. Durante anos, os nutricionistas deram voltas à cabeça para descobrir a razão da presença de um carboidrato complexo no leite materno – o oligosacárido. Tudo porque os bebés não têm a enzima necessário à sua digestão. A Teoria Evolucionista sempre argumentou que todos os componentes do leite materno tinham valor para o desenvolvimento da criança, se assim não fosse, seriam descartados pela selecção natural uma vez que eram uma perda de recursos preciosos.
Descobriu-se agora que o oligosacárido não está lá para nutrir o bebé mas sim uma bactéria dos intestinos em particular – a bifidobactéria [uns dos maiores grupos de bactéria que compõe a flora intestinal; residem no cólon e promovem benefícios para a saúde de seus hospedeiros]. Quando tudo corre bem, a bifidobactéria prolifera e domina, ajudando a manter o bebé saudável. Outra característica, talvez a mais importante, é que estas bactérias sustentam a integridade do epitélio que reveste os intestinos, que tem um papel fundamental na prevenção de infecções e inflamações.
A maior parte dos micróbios que formam o microbioma dos intestinos do bebé é adquirida durante o nascimento, um processo que expõe a criança aos micróbios da mãe. Bebés que nascem de cesariana, um procedimento muito mais esterilizado logo sem contacto com os micróbios vaginais e intestinais da mãe, têm um microbioma menos próprio. Mais facilmente poderão desenvolver doenças alérgicas, ou asma, uma vez que o seu sistema imunitário pode não desenvolver-se da maneira apropriada.
Os cientistas ainda não sabem dizer com confiança e exactidão como é que um microbioma ‘saudável’ deve ser. Mas há ligações, algumas intrigantes, que começam a surgir. Mais diversidade, provavelmente, é melhor do que menos diversidade, até porque um ecossistema diversificado é geralmente mais resiliente – e a diversidade nos da flora intestinal nos países ocidentais é menor do que a das pessoas que vivem em países menos industrializados. Por exemplo, a flora intestinal encontrada nas zonas ruais da África Ocidental é mais próxima dos ameríndios da Venezuela do que dos norte-americanos ou dos europeus.
Porque existem estas diferenças? Pode ser da dieta, que nas zonas rurais é rica em grão, fibras e pouca carne. Já a pouca biodiversidade ocidental poderá ser explicada pelo uso exagerado de antibióticos (tanto nos medicamentos como nos alimentos) e pela nossa dieta de comida processada (limpa de bactérias, tanto as boas como as más). Tudo isto pode ajudar a perceber porque é que nas zonas rurais há uma maior exposição às doenças infecciosas, mas ao mesmo tempo há menos desordens crónicas como a asma, as alergias, a diabetes tipo 2 ou problemas cardiovasculares.
Comparando com a floresta tropical ou com as pradarias, o nosso ecossistema interior não é ainda tão bem compreendido, mas os princípios da ecologia estão a ajudar a descobrir algumas respostas preliminares e a avançar hipóteses. A nossa comunidade de micróbios parace estabilizar pelos três anos. Mas isso não significa que não possa mudar a partir daí. Pode, mas não tão facilmente. Uma mudança de dieta, ou o consumo de antibióticos, pode fazer variar a população das espécies residentes, fazendo com que algumas bactérias floresçam e outras morram.
Adquirimos a maior parte dos nossos micróbios iniciais através dos nossos pais, outros chegam-nos através do ambiente. “O mundo está coberto por uma fina patina de fezes”, como costuma dizer o microbiólogo Stanley Falkow aos seus alunosem Stanford. Eos estudos recentes confirmam-no. O pó da casa, por exemplo, pode conter uma quantidade considerável de partículas de fezes. Outras investigações demonstraram também que cada vez que se puxa o autoclismo há partículas que se espalham pelo ar. “Todos devem manter a sua escova de dentes pelo menos a dois metros da sanita”, afirma Falkow.
Alguns investigadores pediram emprestado à ecologia o termo “serviços do ecossistema” para catalogarem o que os nossos micróbios fazem por nós e para nós. Resistir a invasões é um deles. Mas, as nossas bactérias também têm um papel central na manufactura de substâncias como neurotransmissores (incluindo a serotonina), enzimas e vitaminas (principalmente as B e a K) e outros nutrientes essenciais. Além disso, são fundamentais para os sistemas imunitário e metabólico. Alguns destes compostos regulam, por exemplo, os níveis de stress e até o nosso temperamento. Quando se transplantaram micróbios da flora intestinal de ratos com boa onda para outros ratos mais tímidos, estes tornaram-se mais aventureiros. Provavelmente, a expressão “mexe-me com as tripas” é capaz de ser mais verdadeira do que pensávamos.
Mater o sistema imunitário engajado de forma produtiva com os nossos micróbios é outro ecossistema importante e que pode mesmo revelar-se crítico para os nossos corpos. “Costumávamos pensar que o nosso sistema imunitário tinha o seu trabalho certinho”, explica Michael Fischbach, bioquímico da Universidade da Califórnia, “que se limitava a reconhecer as bactérias e a lidar com elas. Afinal este trabalho é muito mais complexo do que imaginávamos, porque tem também de lidar com o nosso mutualismo – as bactérias que residem dentro de nós”.
Então, porque não desenvolvemos o nosso próprio sistema para operar estas funções críticas, preferindo dar este trabalho em outsourcing a uma data de micróbios? Uma teoria explica que é porque os micróbios evoluem muito mais depressa do que nós (em alguns casos, uma nova geração a cada 20 minutos), conseguindo assim responder às alterações ambientais – tanto às ameaças como às oportunidades – de forma mais rápida do que “nós”. Reactivas e adaptáveis, as bactérias podem trocar genes e peças de ADN entre elas. Esta versatilidade é especialmente útil para lidar, por exemplo, com uma nova toxina que surja no ambiente. A nossa microbiota pode logo arranjar o gene certo para lutar com esta mudança, ou para a comer. Testes recentes mostraram que a flora intestinal dos japoneses adquiriu um gene de uma bactéria marinha que lhes permite digerir as algas, algo que o resto de nós não é capaz de fazer.
Esta plasticidade serve para esticar o nosso, comparativamente, rígido genoma, dando-nos assim acesso a um grande saco de truques bioquímicos. “As bactérias dentro de nós estão permanentemente a ler o ambiente e a responder-lhe”, como refere Joel Kimmons, um nutricionista de Atlanta, “são um espelho microbiótico de um mundoem mudança. Ecomo conseguem evoluir de forma tão rápida, ajudam os nossos corpos a responder às mudanças ambientais”.