A tecnologia ao serviço da guerra

PorExpresso das Ilhas,15 nov 2013 11:31

A evolução tecnológica permite hoje que potencias militares como os Estados Unidos da América realizem missões de guerra sem risco de perderem vidas humanas. Os aviões não tripulados têm sido usados nos cenários de guerra do Iraque e do Afeganistão para combater “ameaças terroristas”. No entanto, houve algo que os responsáveis militares americanos não previram, os pilotos destes aviões não tripulados também sofrem de stress pós-traumático. Um estudo revela que, desta elite de pilotos, 42% sofrem daquela doença e desse total 20% possuem “perturbações mentais graves”.

 

Ele na verdade foi uma experiência, era um dos primeiros recrutas a participar numa nova forma de fazer guerra. Uma guerra em que homens e máquinas se fundem num só. Voou inúmeras missões, lançou bombas no Iraque, atacou talibans no Afeganistão. Nunca foi a nenhum desses países, fê-lo sem nunca ter deixado o seu país, tudo através de um computador.

Líderes terroristas da Al-qaeda? “Sim. Foram vários, mas também salvei muitas vidas” mas sempre à distância. Sempre através de um computador.

Estes são os novos guerreiros, os novos membros da máquina de guerra das Forças Armadas dos Estados Unidos da América. Pilotos de drones.

Deserto do Nevada. Estados Unidos da América. Um barracão negro destaca-se no meio do deserto. Lá dentro nos ecrãs dos computadores vêem-se três homens a percorrer uma estrada de terra no Afeganistão. Faz frio dentro deste armazém. A única luz vem dos monitores dos computadores. A escuridão engole tudo o resto. Cheira a transpiração e a fumo de cigarros. Na sua consola, a imagem mostra uma paisagem invernal da província de Kunar no Afeganistão. Uma palete de castanhos e cinzentos, florestas que cobrem as encostas rochosas das montanhas.

A câmara faz zoom e aproxima a imagem daqueles três homens, suspeitos de serem rebeldes talibãs, cada um deles veste o tradicional shalwar kameez, camisas compridas e calças largas. Ele não sabe mais nada sobre eles, não sabe os seus nomes, não imagina no que pensam, não faz ideia dos mais mundanos detalhes das suas vidas.

Sabe apenas uma coisa. Sabe que lhe disseram que aqueles homens são perigosos, que transportam armas. Armas que não hesitaram em usar contra os seus camaradas que ainda combatem no terreno. Mas para ele, aqueles objectos compridos que transportam às costas podem ser apenas simples cajados de pastor. Ainda assim, a directiva vinda de um lugar bem acima do seu na cadeia de comando, é clara: “armas confirmadas”, aqueles três homens devem morrer.

A imagem muda. Dos castanhos e cinzentos passa para uma imagem altamente contrastada típica da visão por infravermelhos, os três homens parecem agora fantasmas. Corpos brancos contra o fundo negro que é agora o chão que pisam. Um oficial de segurança insinua-se atrás dele para se certificar que o lançamento dos mísseis corre conforme mandam as regras. O laser que vai guiar os misseis fixa-se nos dois homens que seguem à frente.

Contagem decrescente. “Três, dois, um… míssil lançado”. A 12 mil quilómetros de distância um míssil Hellfire atinge uma velocidade supersónica de forma quase instantânea.

A sala continua escura, mas agora o silêncio é ainda maior. Mais pesado. Ouvem-se apenas os ventiladores dos computadores.

Ele mantem o guia laser fixo naqueles dois homens que seguem à frente. Olha de tal forma fixa para a imagem à sua frente que quase consegue distinguir os pixeis que a formam.

Na imagem, o terceiro homem parece ter ouvido alguma coisa e começa a correr em direcção aos seus companheiros.

 

UM FLASH BRANCO PREENCHE O MONITOR…

O piloto-aviador de primeira classe Brandon Bryant assistiu a esta cena sem pestanejar. Todo aquele branco não lhe fez proteger a vista. A cena ficou-lhe gravada na memória, para sempre, como se de um negativo fotográfico se tratasse.

“Quando o fumo levanta, vêem-se pedaços dos dois homens que seguiam à frente espalhados pelo chão. O terceiro está um pouco mais atrás, falta-lhe um bocado da perna direita do joelho para baixo. Está vivo, agarrado ao que lhe resta da perna rebola no chão, o sangue esguicha e ele bate com uma das mãos no chão, está quente. O sangue dele é quente. Mas quando cai no chão arrefece, as poças de sangue arrefecem depressa. Demorou um bom bocado até morrer. Fiquei a olhar para ele. Limitei-me a vê-lo morrer. Vi-o ficar da cor do chão. Preto. Sinal que todo o calor se tinha esvaído do seu corpo. Estava morto.”

Aquela foi a primeira operação em que Brandon participou. Estávamos em 2007, a poucas semanas do seu 21º aniversário. Brandon é um “sensor”, um piloto de drones que pilotava estes aviões não tripulados pelos céus do Iraque e do Afeganistão. Começou em 2006, trabalhou num barracão de metal sem janelas na base da Força Aérea dos EUA de Nellis, uma vasta tira dealcatrão e hangares de manutenção às portas de Las Vegas.

 

Trabalhavam às escuras por uma razão simples, manterem-se focados no controlo dos seus drones que pairavam a 3 quilómetros de altitude nos céus do Afeganistão. Como sensor, a missão de Bryant era trabalhar em conjunto com o piloto que se sentava na cadeira ao seu lado. Enquanto o piloto controlava as operações de voo, Bryant tinha a função de ‘olheiro’. Utilizando um vasto arsenal de câmaras presentes a bordo detectava inimigos no solo. Para os mísseis Hellfire serem disparados era preciso um trabalho de equipa. O piloto disparava e depois de um curto período de voo, o míssil era orientado via laser pelos sensor, neste caso Bryant, que conduzia a ogiva altamente explosiva até ao alvo.

 

A VIDA DE BRYANT

 

Foi um acaso que o levou a entrar para a Força aérea dos Estados Unidos da América. Pobre, criado pela mãe solteira numa pequena localidade do estado de Montana, Bryant teve de lutar arduamente para conseguir uma bolsa de estudo na Universidade de Montana.

No verão de 2005 resolveu acompanhar um amigo ao centro de recrutamento. Vagueou até aos escritórios da Força Aérea enquanto o seu amigo se dirigia para os do Exército. À última da hora o amigo de Bryant mudou de ideias e desistiu, mas quando isso aconteceu já ele tinha assinado o contrato que o ligava à Força Aérea.

Em breve estava a fazer a recruta na base de Lackland e mais depressa ainda foi inserido no programa secreto de pilotos de drones na base de Creech onde lhe disseram que seria “como aqueles tipos que dão todas as informações ao James Bond e que lhe permitem concluir as missões”.

O seu curso de sensor durou 10 semanas e no final estava a dizer aos pilotos quais os alvos que eles podiam atacar numa cidade fantasma, construída de propósito para treino, no deserto do Nevada. “Era como jogar Dungeons and Dragons”, diz Bryant, “rolávamos um dado e víamos se acertávamos no alvo”.

Em poucos meses “estava” na guerra participando em missões nos céus do Iraque no clímax da intervenção norte-americana naquele país. Na época em que a guerra estava no seu período mais sangrento. No entanto, Bryant nunca deixou o Nevada.

O ritmo de trabalho baralhava-lhe o senso de tempo. Fazia turnos de 12 horas, muitos deles durante a noite e durante seis dias por semana. Na altura a guerra não estava a correr bem para as forças americanas, tanto no Iraque como no Afeganistão e a Força Aérea virou-se ainda mais para a sua frota de drones. Um Predator podia ficar no ar durante 18 horas e os pilotos e os sensors eram pressionados a ter a mesma capacidade de resistência que as máquinas que pilotavam. Bryant reclama que durante os seus primeiros quatro anos de serviço não lhe foi permitido ter uma única folga.

Enquanto esteve no programa de drones, Bryant viu-se obrigado a encontrar alguns, poucos, subterfúgios para se distrair. As missões eram, na sua maioria, monótonas e intermináveis vigilâncias de potenciais alvos. Dedicou-se à leitura. Primeiro leu Ender’s Game, um livro sobre crianças que estão convencidas que as batalhas em que participam são apenas um jogo, mas que afinal tudo o que ali se passa é bem real. Depois veio Asimov. Isaac Asimov e as suas Três Leis da Robótica, “um robot não pode jamais magoar um humano”, leu a certa altura no livro.

Em 2011, Bryant já tinha acumulado mais de 6000 horas de voo, participado em centenas de missões e alvejado centenas de inimigos. Estava “num estado de fuga mental”, afirma. À entrada do seu local de trabalho, agora na base aérea de Clovis, no Novo México, estava um placard com várias fotografias de diversos dos seus inimigos. “Que filho da p… vai morrer hoje”, questionava-se Bryant, no início de cada turno.

Bryant parecia ter desenvolvido um alterego sombrio, maquiavélico. “Sabia que tinha de sair dali”, afirma.

Na primavera de 2011 o Aviador Brandon Bryant abandonou a Força Aérea. Recusou um bónus de 109 mil dólares para continuar a voar. Como recompensa deram-lhe um quadro com os números alcançados em todas as missões em que o seu esquadrão participou. “Inimigos mortos, inimigos capturados, coisas desse género”, afirmou. “Houve, no entanto, um número que me deu vontade de vomitar. Total de inimigos mortos em acção 1626”.

 

STRESS PÓS-TRAUMÁTICO

Desde que o começou a falar sobre as suas missões com drones que Bryant se sente um alvo marcado.

“Depois daquele primeiro míssil rebentar, não falei com ninguém durante semanas”, conta Bryant. Ainda hoje aquela cena se repete na sua cabeça num loop contínuo. “Não fazia ideia do que era matar alguém. Imaginas quanto custa ver depois os resultados, ver alguém sangrar até à morte por causa de uma coisa que eu fiz?”

Bryant chora. Chora quase todas as noites. Nos períodos de maior aflição telefona à mãe, “ela diz-me que tudo vai ficar bem, respondo-lhe dizendo que matei alguém, matei pessoas e não me sinto bem com isso, ela responde-me ‘ainda bem, é assim mesmo que te deves sentir, para que nunca mais tenhas necessidade de o sentir outra vez’” Outros membros do seu esquadrão tiveram diferentes reacções ao trabalho. Um outro sensor de cada vez que matava alguém ia para casa e refugiava-se numa garrafa de whiky. Uma operadora sua colega depois do seu primeiro disparo recusou-se a voltar a disparar, mesmo depois de ser ameaçada com tribunal marcial. Um piloto passou a ter pesadelos recorrentes depois de ver dois corpos, decapitados por uma explosão, a flutuar à deriva no rio Tigre, no Iraque. Bryant tinha sonhos bizarros em que as personagens do seu jogo favorito, World of Warcraft, lhe apareciam como se ele os estivesse a ver num monitor de infra-vermelhos.

Em meados de 2011 Bryant esta de volta à sua cidade natal, Missoula, no estado de Montana. Sente-se zangado, isolado, deprimido. Um dia ao comprar um jogo de vídeo mostra o seu cartão de identificação militar juntamente com o seu cartão de crédito. Atrás dele ouve um adolescente dizer com voz de brincadeira “Oh ele está nas forças armadas. O meu irmão é marine, já matou para aí uns 36 tipos, está sempre a falar-me nisso”. A reacção de Bryant não se fez esperar. Violenta. “Se algum dia voltas a falar comigo dessa forma, com esse ar de gozo, esfaqueio-te. Nunca mais voltes a desrespeitar a morte de pessoas dessa forma”.

A conselho de um veterano da guerra do Vietname, Bryant começou a fazer terapia na associação de veteranos local. Um dia disse à psiquiatra que o tratava “queria ser um herói, mas nunca me senti como tal. Sempre quis fazer algo de bom, mas o que sinto é que desperdicei seis anos da minha vida”. Ela diagnosticou-lhe stress pós-traumático.

Em 2011, os psicólogos da Força Aérea realizaram um estudo com 600 opradores de voo dos drones. 42% deles acusaram níveis elevados de stress e a 20% foi-lhes diagnosticada exaustão mental. Os autores deste estudo, classificaram os resultados, em parte, a um conflito existencial destes homens e mulheres. Mas os sintomas podem ainda ser piores e um novo estudo relatou casos de stress pós-traumático, alcoolismo, níveis elevados de depressão e tendências suicidas, à semelhança do que acontece com os pilotos de combate que participam de foma activa nas missões de combate.

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Autoria:Expresso das Ilhas,15 nov 2013 11:31

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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