PORQUE DESCONHECEMOS A HISTÓRIA DE GRACE HOPPER?

PorExpresso das Ilhas,31 mai 2014 12:51

Se perguntarmos quem foi Steve Jobs, é provável que toda a gente saiba a resposta: foi o homem que pôs os computadores em nossas casas e o iPhone nos nossos bolsos. Não só esteve anos e anos nos meios de comunicação social como abundam as biografias, os documentários, há um filme e um outro anunciado e em fase de pré-produção. Se recuarmos ainda mais uns anos na história da informática, é provável que também se conheça a história de Alan Turing, a quem também foram dedicados documentários, artigos de jornais e o EiTec também já publicou o seu perfil. E Grace Hopper? Este nome diz-lhe alguma coisa? Doutorada em matemática, contra-almirante da marinha norte-americana e inventora da linguagem de programação COBOL, Grace Murray Hopper (Nova Iorque, 1906 – Virgínia, 1992) foi uma das pessoas mais influentes da tecnologia moderna.

A verdade é que a sua história é desconhecida para grande parte dos leitores: não há livros, não há documentários, não há filmes. Em muitos órgãos de comunicação norte-americanos (e do resto do mundo) toda a sua presença é uma necrologia de dez linhas. Agora, a cineasta Melissa Pierce propôs-se mudar esta situação e filmar um documentário – Born With Curiosity [Nascida com Curiosidade] – financiado através de crowdfunding. Neste momento, a realizadora já conseguiu arrecadar 88 por cento do dinheiro necessário e o seu objectivo será explorar a vida e obra de Hopper. “Interessa-me muito o tema das mulheres e da tecnologia”, explica Pierce ao El País desde Chicago, onde também lidera a Chicago Women Developers, uma iniciativa que reúne programadoras, “e quero contar histórias que mostrem que há muitas mulheres a trabalhar na informática, e que estão nesse sector desde o seu início”.

A história tem tendência a esquecer as mães da tecnologia, e estas não são poucas. Foi durante a II Guerra Mundial que se construíram os primeiros computadores e o exército norte-americano contratou mulheres para realizar nas máquinas os cálculos matemáticos que antes realizavam à mão. À frente do ENIAC, o primeiro computador electrónico, estava Betty Synder, que dirigia uma equipa onde estavam mais cinco programadoras. Grace Hopper liderava a equipa do Harvard Mark I. Hopper, que se tinha doutorado em matemática em Yale e que trabalhava como professora universitária, empenhou-se em entrar para a marinha quando começou a II Guerra Mundial. Não cumpria os requisitos de idade nem físicos (tinha 34 anos e pesava menos de 50 quilos) mas o seu conhecimento matemático era importante. Obteve uma autorização especial, ingressou e o seu primeiro destino foi, precisamente, o “navio em terra”: a marinha utilizava o Harvard Mark I para calcular os ângulos de alinhamento da artilharia.

“Os humanos são alérgicos à mudança. Adoram dizer: ‘sempre o fizemos assim’. Eu luto contra isso”, costumava afirmar. Quando a guerra acabou, Hopper entrou na EEMC, a empresa que desenvolvia os computadores UNIVAC, que apenas entendiam a linguagem de zeros e uns (e por isso só podiam ser usados por matemáticos). Hopper compreendeu que se os computadores pudessem processar outras instruções seriam mais fáceis de usar. Desenvolveu compiladores que traduziam os símbolos matemáticos e palavras em inglês para linguagem binária e criou assim as bases do COBOL (Common Business Oriented Language): uma linguagem de programação que entende o inglês e que, apesar da sua antiguidade (tem mais de cinquenta anos), continua a ser usada em muitos bancos, empresas e administrações. Hopper começou a ser conhecida, então, como a fantástica, a fantástica Grace (em inglês Amazing Grace, que é também o título de um conhecido hino tradicional protestante, muito popular nos Estados Unidos da América).

“Hoje em dia, parece que se queres trabalhar em tecnologia precisas de ter aprendido a programar desde tenra idade. Ela começou mais tarde, depois dos 30, e foi a pessoa que disse: os computadores podem fazer mais coisas do que simples aritmética”, sublinha a realizadora Melissa Pierce, “é graças a ela que hoje temos máquinas de calcular e smartphones”.

Grace Hopper nasceu em 1906 e morreu em 1992, viveu o desenvolvimento do computador e a incorporação da mulher no mercado laboral. O documentário Born With Curiosity vai narrar a sua vida (mas muito mais fundo que os simples: ‘quem era?’ e ‘como era?’) através destas duas premissas. “Queremos contar a história da computação com a história da sua vida” explica a realizadora, ou seja, contar também a história desconhecida, e por vezes esquecida, do trabalho feminino na informática.

Houve cem mil mulheres a ingressarem na marinha durante a II Guerra Mundial. Recebiam um ordenado que era metade do dos homens. Como professora, Grace ganhava 800 dólares por ano, bastante menos do que os professores. “Ela sabia isso, ou pensava que ganhava o mesmo? Gostaríamos de revisitar as políticas laborais da época”, diz Pierce. “Nos anos 50, depois do fim da guerra, houve um movimento para voltar a pôr a mulher em casa, pô-las fora do mercado laboral porque os rapazes estavam de regresso”. Hopper continuou a trabalhar. “O que é interessante é que os trabalhos femininos eram temporários, mas Grace construiu uma carreira. De que forma pensava diferente a sua profissão? De maneira diferente ao resto das mulheres que contribuíram para a informática? Há dinâmicas curiosas, como tentar perceber se tinha um comportamento de líder, ou se as outras mulheres a seguiam ou não. Porque é que as mulheres que tiveram um papel determinante desde o início da informática não recebem qualquer crédito? Com a história de Grace podem desenterrar-se as histórias de outras mulheres”, acredita Melissa.

Grace Hopper doutorou-se em 1934, deixou o seu lugar de professora e alistou-se na marinha em 1941, divorciou-se em 1945 e continuou a sua carreira profissional entre a universidade, a empresa privada e o exército, muitas vezes combinando vários cargos e trabalhos, até se retirar com 79 anos e com o posto de contra-almirante. A sua história é sempre extraordinária. “Era um bocadinho showman” (ou, neste caso, showoman), reconhece Melissa Pierce. A realizadora dá como exemplo uma das anedotas mais repetidas e que a própria Hopper contou: quando era criança, a sua mãe encontrou-a a desmontar sete despertadores para entender como funcionava o relógio. “Em 1913 um despertador custava 2 dólares e o salário médio era de 800 dólares anuais, achas que alguém ia gastar tanto dinheiro para ter sete despertadores em casa?”, pergunta a realizadora, “é suspeito e quero saber se essa história é mesmo verdadeira”.

A verdade é que a sua história está muito branqueada e perdeu-se a parte pessoal. “Por exemplo”, diz Melissa, “divorciou-se mas nunca o contou e deixou que as pessoas pensassem que o marido tinha morrido na guerra. Porquê? Também há textos que dizem que chegou a trabalhar alccolizada e eu quero saber como funcionava. Era o seu alcoolismo real? Era um problema mental? Creio que é uma pessoa muito interessante e quase tudo o que sabemos, o que se conta e o que se publicou fica-se pelo ‘oh, vejam, esta mulher fantástica que inventou isto’, com o se fosse uma anomalia, quase um unicórnio. Há histórias que não se contam porque confrontam essa narrativa de menina extraordinária. E ela não era isso, era uma mulher normal, com muitas e boas ideias e que lutou por elas. O que a torna extraordinária é o facto de ter acreditado em tudo o que fazia”.

Apesar de na sua época ter sido uma mulher conhecida, do movimento que procura aumentar o papel das mulheres na tecnologia a homenagear desde 1994 com o Dia Grace Hopper e da informática não ser entendida sem a linguagem que criou, a verdade é que a história desta matemática se perdeu no tempo e ela deixou de ser famosa fora dos círculos dos programadores. Muitas vezes até dentro deste circuito. Porquê? A resposta é de Melissa Pierce: “uso sempre o exemplo de Steve Jobs, o seu trabalho era ser um showman, estar sob o olhar constante do público. Mas, quem faz os filmes e quem paga para que se façam filmes são homens, por isso é que não vemos muito cinema sobre personagens femininas que fizeram coisas incríveis. Não há filmes sobre Grace Hopper, nem sequer um documentário, foi por isso que pensei: preciso de fazer isto, saber mais sobre a sua vida, como era e tentar fazê-la mais humana”.

O objectivo de Born With Curiosity: The Grace Hopper Documentary, que tenta juntar os 45 mil dólares necessários para começar a produção, pagar direitos de copyright e os custos da investigação, é prestar um reconhecimento a esta personagem real e não ficar-se por uma biografia extraordinária e inalcançável. Pelo menos, é isso que diz Melissa Pierce no site Indiegogo. “Acreditamos que humanizar referências como Grace Hopper torna-os mais acessíveis a inspirarem outros. Se observarmos verdadeiramente as complexidades por trás da ascensão de Grace Hopper à fama, conseguimos eliminar o mito do ‘herói anómalo’ e assim dar a oportunidade a outras mulheres e raparigas para se verem no seu lugar”.

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Autoria:Expresso das Ilhas,31 mai 2014 12:51

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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