Faz parte da nossa natureza (e terá várias explicações), não se pode pôr um dispositivo de imagens nas mãos dos seres humanos sem que estes não desatem a fotografar-se ou a filmar-se sem roupa (e quem nunca o fez, que atire o primeiro smartphone). Se a estes ingredientes juntarmos selfies íntimos, famosos e internet, temos aquilo a que o Courrier Internacional chamou de “Far West da vida privada”.
Entre a madrugada de domingo e esta segunda-feira foi um corrupio nas redes sociais, fotografias de estrelas do cinema e da música começaram a aparecer em catadupa por causa de uma falha de segurança no iCloud, o armazenamento em nuvem da Apple. Nas imagens aparecem actrizes oscarizadas como Jennifer Lawrence, cantoras como Rhianna, passado por Avril Lavigne, Amber Heard, Gabrielle Union, Hayden Panettiere e Hope Solo. E a lista continua: Hillary Duff, Jenny McCarthy, Kaley Cuoco, Kate Upton, Kate Bosworth, etc., etc., etc., O El País traz uma lista com mais de cem nomes de A a Y. Lawrence, que aparece em bikini, em roupa interior e sem qualquer roupa foi a primeira a anunciar que iria adoptar medidas legais contra quem mostrasse as imagens.
Entre a madrugada de domingo e segunda-feira, o Twitter converteu-se no difusor perfeito tanto para fotos roubadas como para montagens e rumores. Kate Upton confirmou através do seu advogado, ao Daily Mirror, que as suas fotos eram reais: “isto é obviamente uma violação escandalosa da privacidade da nossa cliente Kate Upton. Temos a intenção de perseguir qualquer um que difunda ou reproduza estas imagens obtidas de forma ilegal”. No outro extremo ficou Ariana Grande, actriz e cantora, assim como a interprete Victoria Justice que afirmaram que as imagens que circulam nas redes sociais não são suas.
Entre confirmações e desmentidos, Mary Winstead, musa do cinema de terror (The Thing 2), reconheceu no Twitter que era uma das ‘vítimas’ do ataque informático: “para aqueles que estão agora a ver as fotografias que tirei com o meu marido, há anos, na intimidade de nossa casa, espero que se sintam muito bem”, escreve na sua conta, e continua: “sabendo que estas fotos foram apagadas há muito tempo, apenas posso imaginar o esforço louco que tiveram para as recuperar”.
Sem o saber, Winstead descobriu uma das chaves do roubo, a antiguidade das imagens. Jaime Blasco, director da empresa espanhola sedeada em Silicon Valley Alienvault, explica ao El País, “o perigo do iCloud é que guarda tudo de maneira automática, mesmo que se apague a foto do telemóvel, esta continua na nuvem”. Na sua tese, este especialista pensa que os hackers terão violado as passwords dos artistas usando esta falha e muita paciência.
Juan Garrido, também espanhol e que este ano apresentou uma investigação durante a BlackHat, a conferência de Hackers mais importante que decorreu em Las Vegas no passado mês de Agosto, aponta outra falha de segurança da Apple “o Find My iPhone (uma forma de encontrar e bloquear um telemóvel perdido) pode ter sido a causa já que através deste serviço é possível realizar ataques informáticos brutais. Uma técnica velha é utilizar um pretenso utilizador com uma lista de possíveis passwords contra utilizadores conhecidos. O atacante só precisa do email das vítimas e de um bom arquivo de passwords. Se a vítima tiver uma password fraca, o passo seguinte é entrar na iCloud e descarregar todo o material que desejar”. Garrido explica ainda que apesar do serviço ter sido corrigido, a falha esteve exposta durante dias no GitHub, um armazém de software compartilhado.
Como sempre, os especialistas voltam a falar da importância de não colocar conteúdos íntimos na internet, da necessidade de mudança de chaves de acesso com frequência e do valor de não repetir passwords nos diversos serviços a que se acede. Ángel Prado, da equipa de segurança da Salesforce, considera que o que aconteceu poderia ter sido evitado usando um “segundo factor de identidade”, um serviço cada vez mais utilizado e que permite o acesso ao correio electrónico apenas mediante uma password e um código.
A verdade é que quando se filtra a imagem de uma famosa nua, a imagem percorre a Internet como pólvora. Há milhares de pessoas a partilhá-la e centenas de páginas que a carregam. Há quem, assim que conhece a sua existência, a procura e quem simplesmente a descobre ao abrir o Twitter. Não se pode eliminar. Não há margem para reagir. No momento em que essa imagem existe no espaço virtual já é demasiado tarde. Por vezes encontra-se o culpado, mas, de que adianta? O mal já está feito. Milhões de pessoas violaram a intimidade da protagonista da foto.
E até aqui estamos a falar a um nível meramente técnico. Em planos mais abstractos, cada nova foto ajuda a criar um novo ritual cibernético. O público ouve falar do roubo infame, assimila-o como parte de um género de notícias parecidas que têm surgido nos últimos anos e reage como bem entende: uns juntam-se ao circo público dos indignados, outros correm para casa com o objectivo de encontrar as imagens. Estamos na era da normalização das violações de intimidade. Por trás desta uniformização está a coisificação dos artistas e confirma-se que no mercado de nus as menos protegidas são as mulheres (não há nenhum homem na lista conhecida dos nomes dos que foram pirateados). Enfim, o mundo fica ainda um pouco pior.
O caso mais recente assume contornos de espectacularidade devido ao tamanho da fuga e conta-se rapidamente. Um único hacker acedeu a centenas de telemóveis de celebridades. No domingo à tarde, o pirata começou a postar dezenas de fotos privadas no fórum 4chan. Entre elas estavam as das actrizes Jennifer Lawrence e Kirsten Dunst e da cantora Ariana Grande. O anónimo pedia bitcoins para ir largando mais imagens, o que foi fazendo seguindo essas ofertas.
A cadeia viral expandiu-se graças à correia de transmissão do Imgur e daí saltou para o Reddit e à medida que o 4chan ia apagando os links para as fotos os utilizadores das outras páginas iam-se encarregando de que as imagens não se perdessem. No site Forocoches começaram a repicar os sinos de cada vez que saia uma foto e ao final do dia o clamor era tão grande que o link do Twitter que acompanhava o incidente explodiu. Uma hora mais tarde, um utilizador que dizia ser da TMZ apareceu no fórum para comprar as imagens, mas os outros utilizadores propuseram que as imagens fossem difundidas apenas através do 4chan. Organizou-se um crowdfunding que rapidamente se juntaram os 50 mil dólares pedidos pelo hacker.
No Reddit iam-se apagando as imagens mais comprometedoras, mas no 4chan começaram a saltar as imagens de Jennifer Lawrence como veio ao mundo. Surgiram também as primeiras declarações. O celebgate (como já é conhecido) converteu Jennifer Lawrence no tópico da moda a nível global e na segunda-feira o assunto fazia manchetes nos jornais de meio mundo. No 4chan, há pouco minutos, o link do celebgate já tinha mais de seis milhões de comentários.
A protagonista de Jogos da Fome (Lawrence) é, provavelmente, a mais prejudicada pela fuga já que as suas imagens, tiradas há anos, foram as mais compartilhadas e comentadas. O hacker afirmou ainda que tem um vídeo explícito da actriz e mais meia centena de imagens que ainda não publicou. O mesmo hacker difundiu ainda uma lista (a célebre lista) com os nomes de todas as famosas afectadas pela pirataria informática.
Seguiram-se as reacções dos representantes das visadas, umas, como já foi dito, confirmaram que eram elas, outras negaram a autenticidade das imagens. Prometeram-se processos e garantiu-se que as autoridades foram contactadas. Mas, sentir culpa ou obrigar os utilizadores a sentirem-se culpados nunca foi solução para nada. Aqui a questão não se põe em proibir o visionamento das fotos, ou de impor e censurar a conduta do público que nada teve a ver com o roubo. A questão principal é entender este mundo que vai nascendo a cada clic e a cada fuga de informação.
Em 2012, o hacker Christopher Chaney foi condenado a dez anos de prisão por roubar imagens privadas de Scarlett Johansson e Mila Kunis. Quando as imagens caíram na net, foi dos assuntos mais falados. Hoje, é uma anedota, mais um passo no caminho.
E não é um problema apenas de famosos, é um problema de princípios. Em 2012 Johansson afirmou, “só porque sou actriz e faço filmes não quer dizer que não tenha direito à minha própria privacidade”. Mas, num mundo onde já se percebe até onde pode chegar a espionagem da NSA, num mundo que foi manipulado pelo Facebook e num mundo em que cedemos o controlo dos dispositivos que usamos, o lema, em breve, será: “só porque sou internauta e faço fotos não quer dizer que não tenha direito à minha própria intimidade”.
A verdade é que cada vez que se rouba uma foto de uma famosa nua, o valor da nossa própria imagem perde-se mais um bocadinho.