A internet secreta, a deep web (rede profunda), não começou por ser um lugar onde estão dos conteúdos mais arrepiantes. O seu início foi ideológico e liberal. O problema é que começou também a fazer muito dinheiro e a atrair personagens menos simpáticas. O que principiou por ser um sonho de liberdade está agora a converter-se num feudo de reis piratas. A história de Ross Ulbricht é o exemplo perfeito dessa transformação.
A Hidden Wiki [um site que usa serviços ocultos disponíveis através da rede Tor] tem a chave para a internet secreta. Para lá chegar, precisamos de usar um browser especial – a rede Tor [acrónimo para The Onion Router, um software livre e de código aberto para proteger o anonimato pessoal ao navegar na Internet e nas actividades online]. Mas, mesmo este browser não é suficiente. Como na Isla de la Muerte, no filme Os Piratas das Caraíbas, o caminho pela internet secreta só é descoberto por aqueles que sabem onde ele está.
Sítios como o Hidden Wiki fornecem mapas nos quais não se pode confiar. Publicam listas de endereços especiais de sites onde se pode usar Bitcoins [dinheiro virtual] para comprar drogas ou números de cartões de crédito roubados, jogar jogos estranhos ou simplesmente falar de temas demasiado delicados para a internet de acesso aberto. Estas listas, na maior parte das vezes, não garantem o que prometem, tanto podem levar o utilizador para um ‘mercado’ de dados roubados como podem apenas conduzir o internauta para sites que lhe ficam com os Bitcoins sem dar nada em troca.
A internet escondida é o produto dos debates entre os tecno-obsessivos liberais dos anos 90. Estes radicais esperavam combinar criptografia e internet num solvente universal que conduzisse ao fim do que chamavam de tirania governamental. De um lado, moedas novas. Do outro, uma mistura de redes virtuais onde a identidade de todos ficasse escondida por múltiplas camadas de encriptação, que permitiriam às pessoas falar e fazer negócios sem que os governos fossem capazes de ver o que estava a ser feito.
Os planos de novas moedas levaram à invenção dos Bitcoins, enquanto que a mistura de redes virtuais culminou na rede Tor. Ambas as tecnologias manifestam diferentes aspectos do sonho comum – a utópica aspiração a um mundo onde qualquer um pode falar ou fazer negócios sem ter de se preocupar com a intervenção do Estado – e na verdade, cresceram juntas. Durante muito tempo, a maneira mais fácil de gastar Bitcoins era no arquipélago da rede Tor e nos seus sites obscuros.
Mas, tal como as repúblicas piratas do século XVIII, este mundo virtual junta liberdade e vícios. As autoridades e os grupos de cidadãos dão ênfase aos aspectos mais sórdidos da rede Tor – venda de drogas, armas ou pornografia infantil. E no entanto, os esforços que levaram à criação de internet secreta tiveram tanto de ideológico como de avareza. E a rede é tão usada por dissidentes como por vendedores de droga. Para quem vive sob um regime ditatorial, a rede Tor fornece tecnologia para fugir ao controlo governamental. Mesmo alguns dos serviços mais sórdidos têm por trás um certo idealismo. Os liberais acreditam que as pessoas devem poder vender e comprar drogas sem interferências do governo e esperam criar mercados sem violência ou sem controlo dos traficantes.
A anonimidade garantida pela rede Tor ajuda os criminosos, porque dificulta a sua identificação. Mas, ironia das ironias, também dificulta a capacidade de confiarem uns nos outros, por uma razão simples: ninguém pode ter a certeza sobre quem está do outro lado. Para fazer dinheiro nos mercados escondidos é necessária confiança, só assim se compra e se vende.
Para o conseguir, os empreendedores consideraram fundamental criar e manter comunidades, com leis, com punições para os que quebram a lei, onde, em última instância, exercem violência sobre os incumpridores. No fundo, criaram pequenas versões dos governos de quem tentam fugir. Como refere o sociólogo Charles Tilly, à revista Aeon, os estados modernos surgiram sob o signo da protecção, protecção contra os de fora e protecção dos próprios cidadãos nacionais. Esta á a lógica actual da internet escondida, com pequenos barões e reis piratas a lutar para conseguirem policiar os seus domínios, enquanto se preocupam igualmente em defender-se de incursões hostis.
Nenhum empreendedor foi tão bem sucedido como o texano Ross Ulbricht. Sob o pseudónimo de Dread Pirate Roberts fundou e geriu um mercado notável de drogas e outros contrabandos. E é o exemplo perfeito de como o sonho liberal de liberdade do Estado se tornou amargo.
Ulbricht construiu o seu mercado do nada, perseguindo tanto sonhos políticos como os seus próprios interesses. No entanto, ao fazer este mercado viu que estava a construir um micro-estado, com níveis de burocracia cada vez mais elevados, com leis e, por fim, ameaçando com violência quem não obedecia. Tornou-se na coisa de que estava a tentar escapar, mas isso não pode ser visto como uma grande surpresa.
No seu livro de memórias Men of Dishonor [Homens sem Honra, 1993], o antigo mafioso Antonino Calderone descrevia a Mafia como um grupo de criminosos que passavam o tempo todo a vigiar-se uns aos outros à procura da mais ínfima possibilidade de traição. Como escreveu o sociólogo da Mafia, Diego Gambetta, todos estavam “constantemente com medo de ser enganados enquanto, ao mesmo tempo, estavam ocupados a enganar os outros”.
Uma paranóia semelhante é endémica à internet secreta, onde as interacções sociais são feitas sob a capa do anonimato. Os padrinhos mafiosos, pelo menos, lidam uns com os outros, conhecem-se e podem retaliar. Na internet secreta, por contraste, ninguém conhece a identidade de quem compra ou vende. Ou como referia um dos empreendedores da net escondida: “quero fazer imensos negócios, mas não quero ser enganado. Quem me dera que as pessoas fossem patifes honestos”.
E isto cria problemas para todas as partes. Os compradores não sabem se podem confiar nos seus vendedores para entregarem os produtos ou se conseguirã manter as informações seguras. Se um vendedor os enganar não será fácil retaliar, uma vez que não sabem quem ele é. E também não é um mundo fácil para os vendedores. Aliás, a teoria do jogo diz que sem a possibilidade de retaliar nenhum comprador entra no circuito, uma vez que pensam sempre que serão enganados. Ou seja, sem compradores não há mercado e os vendedores não terão a quem vender.
Há muitos criminosos da internet secreta a queixarem-se repetidamente que são enganados e isso criou um mercado de nichos para intermediários, que se transformam em empreendedores de confiança, fazendo a ponte entre vendedores e compradores que de outra maneira nunca confiariam uns nos outros.
Quando Ulbricht começou a cultivar cogumelos alucinogénios, e a vendê-los na Internet em 2010, parecia um entusiasta do pensador liberal Murray Rothbard [economista norte-americano da Escola Austríaca que ajudou a definir o conceito moderno de liberalismo e fundou uma vertente de anarquismo baseada no livre mercado, denominada “anarco-capitalismo”]. No seu perfil no LinkedIn, Ulbricht declarou a sua intenção de usar “as teorias económicas como meio para abolir o uso da coerção e da agressão entre os seres humanos” e de construir um “simulador económico” que permitisse às pessoas ver como seria viver num mundo sem o “uso sistémico da força”. E é claro, pretendia também obter lucros com a sua actividade.
Ulbricht não era, segundo as suas próprias palavras, um hacker particularmente habilidoso. As primeiras versões do seu site tinham falhas sérias de design e segurança. Mas, era excelente em fazer com que as pessoas confiassem nele. No início, era o próprio Ulbricht quem vendia as drogas pessoalmente, criando a reputação de que fornecia um bom serviço ao cliente. Controlava toda a transacção, não cobrando comissões, e fazendo a interacção entre vendedores e compradores. À sua maneira, cultivou toda uma rede de relações que poderia transformar-se num mercado plenamente desenvolvido.
Mas o site foi crescendo e, como é lógico, tornando-se mais burocrático. Antes de ter começado, Ulbricht foi avisado que teria de estabelecer critérios de confiabilidade. Assim que pode introduziu um sistema automático que permitia aos vendedores de confiança estabelecer uma reputação de negócio justo. Ulbricht criou igualmente um fórum de discussão onde os utilizadores podiam falar livremente das suas experiências com vendedores e clientes. Os pagamentos eram feitos através de um sistema de garantia automática, através do qual os compradores podiam alocar o pagamento ao site, mas recusavam que o dinheiro fosse movimentado até que a mercadoria chegasse. No entanto, vendedores de sólida reputação insistiam para que não se usasse esse sistema.
Os pseudónimos dos vendedores são um equivalente, um tanto ou quanto forçado, das marcas comerciais. Como explicou o economista David Kreps, um nome/marca com a reputação de ser honesto é um activo e o desejo de preservar o seu valor é um incentivo para a honestidade futura. E este valor pode continuar independente de quem é o actual dono da marca, esta pode ser vendida sem perder o seu poder.
Conforme Ulbricht foi transformando o seu mercado livre numa estrutura hierarquizada começou igualmente a policiar fortemente o sistema que tinha criado. Negociadores começaram a ser banidos por ofensas como fraude sobre os consumidores. No entanto, Ulbricht continuava a afirmar que havia diferenças entre a sua organização e um Estado. O seu site, disse em fóruns sob a identidade Dread Pirate Roberts, “era regulado pelas forças do mercado e não por um poder central”. Se os compradores e vendedores não gostavam das novas regras tinham boa solução, ir para outros bazares de droga da net secreta.
No entanto, um mercado competitivo não é garantia de honestidade. Muitas vezes, os negociantes quiseram construir uma reputação de justeza apenas para juntarem grandes quantidades de dinheiro antes de desaparecer. Como estamos no mundo das identidades falsas, os clientes enganados só podem fazer ameaças grandiloquentes nos fóruns, nada mais. A net secreta era também vulnerável a traições ainda mais profundas: os clientes tinham de dar os endereços de mail aos vendedores se queriam as drogas entregues. Segundo as regras do site de Ulbricht, os vendedores deveriam apagá-los assim que a transacção decorresse, no entanto, era impossível para Ulbricht saber se a regra era obedecida a não ser que os vendedores admitissem (como aconteceu uma vez) que mantinham os endereços dos compradores.
Isto criou uma vulnerabilidade óbvia. Na verdade, uma ameaça existencial ao negócio de Ulbricht. Se algum vendedor de algum sucesso libertasse os contactos os clientes fugiriam em massa e o site colapsaria. E houve um utilizador, com o pseudónimo de FriendlyChemist que ameaçou fazer exactamente isso. Ulbricht não invocou as regras internas, nem deixou que o mercado resolvesse o problema. Em vez disso, optou pelo argumento último dos reis: a violência física. Assim, pagou 15.000 dólares a alguém que ele acreditava ser um membro dos Hells Angels para matar o chantagista. Mais tarde, pagou mais 500.000 dólares para matar todos os que estivessem associados com o FriendlyChemist.
Não é claro que alguém chegou a ser morto. Inclusive, o mais provável é que tudo não tenha passado de um esquema no qual o FriendlyChemist e o suposto assassino estivessem associados, ou fossem até a mesma pessoa. Mas, marcou o estádio final de uma transformação extraordinária. Ulbricht começou como um idealista que quis construir um mercado verdadeiramente livre e acabou a pagar uma acção musculada para proteger o sistema burocrático que tinha criado. Ulbricht pode ter sido incompetente, mas é provável que se tenha encontrado numa situação da qual não via saída, a não ser recorrer a criminosos reais. Assim que o dinheiro começou a entrar na internet escondida, a cupidez seguiu o mesmo caminho. No início, Ulbricht via-se como alguém capaz de trazer “ordem e civilidade” para um mercado negro onde outros, como ele próprio, estavam ligados aos ideais liberais. No entanto, a ordem dos mercados actuais depende da violência – seja do Estado, seja dos chefes mafiosos – sem essa violência surgem os predadores. O negócio de Ulbricht só funcionaria se não atraísse a atenção. Mas, assim que começou a ganhar muito dinheiro a maldição começou.
Os diários de Ulbricht mostram que ele já estava a flutuar sobre outros criminosos, pagando centenas de milhares de dólares para que evitar ataques informáticos que lhe danificassem o site.
Ulbricht foi preso em Outubro de 2013. Alguns dos seus companheiros tentaram recriar o site. Quando o novo endereço ficou sob ataque, retaliaram contra aquele que consideravam responsável pela agressão, entrando no seu sistema e disponibilizando a lista dos clientes, criando assim o caos em todo o mercado. Muitos sites despareceram, levando milhões de dólares em Bitcoins e outros estão a retirar-se do jogo.
O mês passado, o júri do Tribunal de Manhattan demorou pouco mais de 3h a considerar Ross Ulbricht culpado dos sete crimes de que estava acusado, incluindo tráfico de droga e lavagem de dinheiro. O jovem empreendedor arrisca agora uma pena que pode ir dos trinta anos de cadeia até à prisão perpétua.