Na revista Science, um estudo de uma equipa de 14 investigadores de cinco países apresentou sexta-feira passada provas robustas de que os neandertais já pintavam grutas, de forma intencional, há cerca de 65 mil anos. Eram portanto artistas das grutas – uma confirmação que surgiu através da datação (com um método recente) de pinturas rupestres em três grutas em Espanha. O que isto tem de extraordinário – e tem muito, razão que levou uma revista científica de prestígio como a Science a escolher o assunto para a capa – é que os neandertais tinham capacidade de pensamento abstracto e simbólico, sublinha o jornal Público. Tal como nós temos.
Segundo a mesma fonte, desde a descoberta do primeiro esqueleto de um neandertal em meados do século XIX, no vale de Neander (na Alemanha) que estes humanos têm sido muito denegridos. Já os descreveram como brutamontes, com poucas capacidades cognitivas, incapazes de comportamentos simbólicos. Muitos desses retratos enviesados foram ficando para trás, com o avançar do conhecimento. Mas a questão que se manteve é se seriam capazes de ter realmente um pensamento simbólico como o exigido para fazer uma pintura numa gruta. Até agora, ainda se duvidava disso.
Acontece que a nossa espécie só chegou à Europa há cerca de 45 mil anos, então as pinturas rupestres com 65 mil anos nunca poderiam ter sido feitas por nós. Precedem a nossa chegada em 20 mil anos. Os autores dessa arte das grutas só podem ter sido os neandertais, os únicos humanos que então viviam na Europa. É este o raciocínio da equipa que fundamenta as suas conclusões na datação de amostras recolhidas em três grutas espanholas. Para tal, os cientistas usaram o novo método de datação por urânio-tório.
“Passam todas as provas”
Ao terem cerca de 65 mil anos, estas pinturas são agora as mais antigas em todo o mundo em grutas. Conduzem-nos às origens da arte e à essência do que é humano, que passa por uma linguagem complexa, por comportamentos complexos, por um pensamento simbólico. “A emergência da cultura material simbólica representa um patamar fundamental na evolução da humanidade. É um dos pilares principais do que nos torna humanos”, frisa precisamente um dos autores principais do trabalho, Dirk Hoffmann, do Instituto Max Planck para a Antropologia Evolutiva, em comunicado, citado pelo jornal Público. “Artefactos cujo valor funcional não reside tanto no seu uso prático mas simbólico são indicadores para aspectos fundamentais da cognição humana como a conhecemos.”
Falando de objectos simbólicos, os mais antigos remontam a 70 mil anos, encontrados em África e estão associados à nossa espécie. Na Europa, têm sido encontrados objectos de ornamentação corporal (jóias), figuras esculpidas e ferramentas em osso decoradas cuja idade recua até 40 mil anos, igualmente atribuídos à nossa espécie recém-chegada ao continente europeu.
Para João Zilhão, arqueólogo português e um dos 14 investigadores responsável pelo estudo, um segundo artigo que a equipa publica também esta sexta-feira, na revista Science Advances, resolve de vez este assunto. É sobre conchas perfuradas e pintadas com 115 mil e 120 mil anos, da Cueva de los Aviones (Cartagena, Múrcia), o que as torna, em termos de objectos simbólicos, 20 mil a 40 mil anos “mais antigas do que qualquer coisa conhecida entre os tais ‘homens modernos’ de África”. “Quando a isto se junta a demonstração de que a primeira arte paleolítica — mãos negativas e signos geométricos — tem mais de 65 mil anos e, portanto, só pode ter sido feita pelos neandertais, o resultado é simples: os neandertais passam com distinção todas as provas do exame sobre a existência de linguagem e de pensamento abstracto, simbólico, idêntico ao da humanidade actual. Dito de outra maneira: os neandertais também eram Homo sapiens.”
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 848 de 28 de Fevereiro de 2018.