[ #ELASnaTech ] Ciência sem fronteiras sociais: o percurso inspirador de Sónia Semedo

PorWomen in Tech,14 ago 2023 7:12

​Sim, hoje podemos dizer que sou docente e investigadora na Uni-CV com várias conquistas. No entanto, isto não aconteceu por acaso, nem de um dia para outro ou sem quedas e desafios.

Sendo uma menina nascida na década de oitenta em Pilão Cão, no Concelho de São Miguel, interior da ilha de Santiago, as oportunidades eram escassas e pouco ambiciosas, as óbvias eram agricultura de subsistência e emigração como os meus pais. Naquela altura a escolaridade obrigatória era até ao 6º ano e a partir daí as estatísticas documentam um declínio da população estudantil, conforme se pode verificar no gráfico abaixo, pelo que havia uma elevada probabilidade não chegar aos estudos secundários. Então, ambicionar mais do que isso para a maioria de nós era apenas um sonho.

Tive a sorte de, desde muito cedo, ter acesso a livros, uns oferecidos pelos meus pais, que apostavam na educação dos seus filhos, outros por empréstimos numa biblioteca móvel que de tempos em tempos passava pela aldeia. Este acesso expandiu os meus conhecimentos e mostrou que existia uma imensidão de oportunidades e que para as aceder devia apostar nos estudos. Para concluir o ensino secundário passei por três liceus em três municípios diferentes (Tarrafal, São Miguel e Santa Catarina), a efetuar viagens diárias de e para Pilão Cão muitas vezes em situações bastantes precárias. Muitos colegas ficaram pelo caminho. Após o secundário fui para Portugal para frequentar a universidade.

Na universidade escolhi o curso de Física, porque a Física sempre foi uma área que me despertara interesse. Para concluir o curso foi preciso muita tenacidade para vencer os desafios socioeconómicos. Fui mãe 20 dias antes de concluir o curso, mas isso não me impediu de avançar para o mestrado, graças ao apoio do meu marido, dos meus pais e dos meus irmãos.

Após o mestrado, eu já dominava conteúdos da Física, robótica e programação. A aquisição destas competências deu-me uma liberdade de escolha e confiança inimagináveis. De seguida, ganhei uma bolsa de investigação para programar microcontroladores para um fluxómetro laser Doppler no Centro de Instrumentação em Coimbra.

Estando neste centro, rodeada de estudantes de doutoramento, fez disparar em mim a vontade de continuar os estudos, mas já não seria assim tão fácil, pois tinha uma criança para cuidar. De uma forma ou de outra lá conseguimos gerir e no 2º ano consegui uma bolsa de doutoramento.

Com a conclusão do meu doutoramento, concluí a minha estadia em Portugal. Foi hora de voltar para Cabo Verde, uma década depois da partida. Concorri ao concurso de Recrutamento de Docentes da Uni-CV e consegui um lugar na instituição onde queria estar. Então, agora era tempo de crescer.

Eu adoro partilhar os meus conhecimentos com os estudantes e contribuir para o crescimento e sucesso deles dentro e fora da sala de aula. Porém, Cabo Verde é um país com parcos recursos. Como forma de driblar a falta de recursos estabeleci colaborações com colegas fora do país, onde sempre podíamos adquirir pequenos equipamentos para aumentar as valências dos estudantes na eletrónica e na instrumentação. Nesta esteira de partilha de conhecimento, criei um curso de instrumentação para o programa WebLab para incentivar os alunos do secundário a optarem pelas áreas STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics).

Ainda, nesta saga de melhoria de condições dos nossos laboratórios, comecei a apostar em candidaturas a projetos nacionais e internacionais. Depois de vários “não”, os “sim” começaram a aparecer. Daí ser bolseira e investigadora principal nos três programas supramencionados. Neste preciso momento temos quase meio milhão de euros para investigação, possibilitando melhoria das infraestruturas e financiamento para estudantes de mestrado e doutoramento. O meu lema é “crescer, mas crescer juntos”, então esperamos que no final dos projetos possamos ter uma equipa de referência em Internet das Coisas, Rede de Sensores Sem Fios, Inteligência Artificial e suas aplicações.

A par do ensino e da investigação, também dedico a causas sociais que me tocam ao coração. A educação para mim é uma das causas mais nobres que existem, sempre que posso contribuo pontualmente para incentivar meninos e meninas a seguirem carreiras STEM, abro as portas dos laboratórios aos estudantes com clara discriminação positiva para meninas. Atualmente, como Presidente da UFPLP, a nossa missão foca-se na divulgação da Física e reforço do seu ensino na CPLP, pois a Física é fundamental para quem segue as áreas STEM.

Eu sou apologista em apostar na eliminação de barreiras estruturais e divulgação de bons exemplos para mitigar a diferença entre número de meninos e de meninas que optam pelas áreas STEM. Na divulgação acho que nós, as mulheres STEM, devemos ser modelos, juntar esforços e tentar estruturar ações impactantes. É um assunto que deve estar na ordem do dia e a educação é uma das chaves para mitigar esta diferença nas próximas gerações.

Parece que tudo se alinhou para estar onde estou, mas na realidade o meu percurso teve muitas quedas, muitos sacrifícios e escolhas difíceis. No entanto, com a resiliência típica de uma cabo-verdiana, soube apreciar os dias bons e aprender com os dias menos bons, transformando as quedas em oportunidades. E isso permite-me deixar um conselho aos que ambicionam seguir uma carreira STEM: sejam persistentes; não se deixem limitar pelas adversidades pois elas sempre existirão; saibam pedir e aceitar ajuda; adquiram competências transversais, pois isto aumenta o vosso leque de opções e partilhem o que sabem com os outros que o retorno é espantoso.

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Sónia Semedo

Docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV)

Bolseira do African Research Initiative for Scientific Excellence (ARISE)

Bolseira Início de Carreira Académica no programa Artificial Intelligence for Development Africa (AI4D Africa)

Investigadora Principal no programa de Artificial Intelligence for Agriculture and Food Systems (AI4AFS)

Presidente da União dos Físicos dos Países de Língua Portuguesa (UFPLP)

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1132 de 9 de Agosto de 2023.

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Autoria:Women in Tech,14 ago 2023 7:12

Editado porSara Almeida  em  14 ago 2023 7:12

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