
Na década de 40 do século XX, quando a igreja católica, na altura ligada ao regime colonial, introduziu algumas reformas, nomeadamente, na celebração das missas e nos costumes religiosos, houve quem não ficou satisfeito e rebelou-se, isolando-se da sociedade, passando a celebrar, na clandestinidade, os antigos hábitos. A esses, que se rebelaram, e que nós conhecemos como Rabelados, reconheceu-se a grande capacidade de resistência e independência em relação ao poder da igreja católica e do poder político.
Actualmente, tal como décadas atrás, os actos religiosos continuam a ser celebrados aos sábados e domingos, mas com uma grande diferença: "os jovens já não estão muito interessados", revela um dos membros da comunidade dos Rabelados de Espinho Branco que, questionada sobre o seu nome, rápido respondeu: "Rabelado". Para esta senhora, que parece estar já conformada com as mudanças que têm havido, "hoje em dia as coisas já não são iguais. O próprio Fernando já dizia que as coisas iam mudar. Tudo o que previu que ia acontecer, tem acontecido", acrescenta.
A senhora, que se tornou Rabelado logo depois da independência nacional, em 1975, quando tinha 16 anos de idade, conta ainda que faz parte dos últimos grupos de pessoas que se "rabelaram", sendo que, a partir daí, mais ninguém tornou-se membro daquela comunidade, a não ser aqueles que dentro dela nasceram. Confrontada com a possibilidade de o novo líder, de seu nome Moisés Lopes Pereira, também conhecido por Tchetcho, ser, muitas vezes, criticado pelos mais velhos por causa de algumas posições que têm tomado, a resposta foi simples: "é um bom líder, mas os que nascem agora não tem tanto conhecimento como os de antigamente".
Um outro membro da comunidade, com bastante conhecimento da vivência actual e dos tempos passados, é a senhora Flipa, parteira há mais de 30 anos. Segundo conta, para curar o "bico", ainda se utiliza o "tabaco" e o "barro". Contudo, acrescenta que os jovens "não querem aprender" para dar continuidade a esta prática.
Em conversas com Mariana Mendes Gomes, presidente da Associação para o Desenvolvimento Comunitário - Agro Espinho Branco, esta revelou-nos a sua visão de hoje, relativamente aos Rabelados de Espinho Branco, comparando com o "antigamente". Maria Mendes, que não é membro da comunidade dos Rabelados, mas que sempre viveu naquela localidade, salienta que "o desenvolvimento também trouxe consequências negativas". O pouco interesse que se verifica por parte dos jovens em dar continuidade àquilo que são os costumes dos Rabelados é uma delas. E, "se tivessem mais vontade em aprender e dar continuidade a esses hábitos, isto também seria mais uma forma de desenvolvimento, mas ainda a juventude tem de cultivar, em si, a vontade de servir o país", esclarece.
Mariana, que defende a existência de uma relação "familiar" entre os Rabelados e o resto da população de Espinho Branco, assegura, igualmente, que muitas coisas mudaram no que toca ao modo de vida dos Rabelados. "Tenho 50 anos de idade e, desta minha vida, tenho muitas histórias. Posso dizer que dantes eram mais fechados. Por exemplo, antigamente não iam aos hospitais, mas agora, embora com alguma reserva, já lá vão. Hoje em dia se um Rabelado for para a cidade da Praia não se consegue destrinçá-lo de um cidadão da capital. Antigamente as mulheres vestiam saias compridas, que ficavam por debaixo dos joelhos, tinham que usar blusas com mangas, mas hoje as jovens vestem-nas curtas (mini-saias)", exemplifica.
Se é verdade que os Rabelados são um símbolo (da) na cultura cabo-verdiana, verdade é, também, que este mesmo símbolo parece, agora, condenado ao desaparecimento. Como diz o ditado popular: "tudu ta passa, tudu ta kaba". E o passar do tempo parecer estar a levar consigo as memórias, os interesses e as tradições de outros tempos. Como fez saber Mariana Mendes, "os hábitos já não são aquilo que eram antes, porque os jovens vivem numa nova era". E a era é de desenvolvimento, com toda a sua força e adversidades.
Outro dos aspectos que muito caracteriza os Rabelados, é o facto de eles sempre viverem em "funcos" construídos com palhas e outros materiais. Mas hoje "cerca de 80 porcento deles não quer viver nos funcos porque tornou-se difícil encontrar os materiais para construí-los. Além disso, agora há a necessidade de, pelo menos, de dois em dois anos refazê-los, porque ficam velhos e sem condições de habitabilidade", desabafa a presidente da Associação para o Desenvolvimento Comunitário. Esta dirigente associativo, que nos transmite as suas ideias baseadas numa visão de quem vive de fora da comunidade, por não pertencê-la, mas ao mesmo com base em uma visão de quem vive por dentro, por ter levado toda uma vida de convivência "familiar" com os Rabelados, deixa saber, ainda, que esta mudança de opção, no que concerne à habitação, muito tem a ver, também, com a distância que eles têm de percorrer, a pé, para encontrarem os materiais para a construção dos seus funcos. "Costumam demorar, praticamente, um dia de caminho, e sempre carregam esses materiais sobre a cabeça", afirmou.
Antigamente, com apenas 14 ou 15 anos de idade, as raparigas saíam de casa para irem viver com os rapazes de quem gostam. E era para toda a vida, mas agora "já não é bem assim", até porque os pais dos rapazes correm o risco de ter problemas com a justiça, se aceitarem, em casa, uma rapariga que seja "menor de idade".
Hoje em dia já fazem o registo de nascimento dos filhos, sendo que uma grande percentagem de jovens e crianças têm o registo feito, coisa que, há décadas, não acontecia.
Se, por um lado, a nova geração encara as mudanças com naturalidade e, como sendo sinais de desenvolvimento e evolução, por outro lado, os mais crentes vêem com desconfiança essas mudanças que se têm registado nesta comunidade, pois antevêem o fim de um símbolo, de uma memória, de toda uma geração que sempre acreditou e lutou pelos ideias de liberdade e autonomia, alimentados por uma "fé em Deus" inquebrantável e inquestionável.