Amiro Faria: “O Porto Grande é um potencial de facturação que não está a ser aproveitado”

PorJorge Montezinho,2 ago 2013 11:16

O ex-presidente da FIC falou com o Expresso das Ilhas sobre a realidade actual e o futuro de São Vicente. Para o engenheiro, já aposentado, não há outro caminho senão o que tem por direcção o mar. Recuperar a tradição marítima será o único futuro para a ilha de Monte Cara, caso contrário, brinca, “mais vale substituir a câmara municipal por uma comissão liquidatária”.

 

Expresso das Ilhas – Que análise faz da situação de São Vicente?

Amiro Faria – Eu não sinto a miséria. Eu não sinto o desespero. Eu não sinto a fome. Mas, é evidente que vejo a produção que existe para o que se consome e tenho de chegar à conclusão que se produz muito pouco. A grande compensação é a remessa dos emigrantes. Eu não digo que isso seja vergonhoso, mas é deprimente que se esteja a viver de dádivas de quem trabalha. Isso não é solução para povo nenhum. Além disso, a emigração tende a desaparecer, porque os países que os recebem estão cada vez mais com problemas de emprego, cada vez mais superlotados e cada vez mais a rejeitar emigrantes. É de se esperar que cheguemos a um dia que não haja para onde ir.

 

Qual será a solução?

Eu vejo em São Vicente algumas possibilidades. Para mim, o Porto Grande é ainda um manancial de facturação, digamos assim, que não está a ser aproveitado. Não é apenas a questão de cargas e descargas, mas também na venda de outros serviços – ship chandler [fornecimento de navios], reparações navais, bunkering [abastecimento de navios], até serviços funerários – todos os serviços que o porto pode oferecer à navegação devem ser bem estudados.

 

O bunkering nunca chegou a parar.

Só que não se deu importância. Os interesses das empresas não são os interesses nacionais, isso é que é preciso saber. Aparentemente, as empresas de bunkering poderão ter todo o interesse em facturar mais, mas é preciso que se saiba que elas não estão isoladas, localizam-se noutros sítios e quando fogem de São Vicente podem cair num porto onde já estejam. Ou seja, para eles não há diminuição de facturação pelo facto de São Vicente ser preterido. Temos de ter a nossa própria visão e a nossa própria política de bunkering.

 

Que seja atractiva em relação às Canárias e a Dakar, por exemplo.

Exactamente. É ver quais são as vantagens comparativas que nós temos e não vão ser só o preço. Já trabalhei nos petróleos há muitos anos, eventualmente poderei estar desactualizado, mas parece-me que tanto Dakar como Las Palmas têm condições para serem competitivos no preço. A nossa grande vantagem é poder abastecer ao largo, ao contrário dos portos que citei onde o abastecimento é feito no cais, o que dá outros problemas aos navios. Mas, houve uma degradação do porto de São Vicente em termos de bunkering desde 1971, quando a Shell retirou a frota do porto de São Vicente. Depois, houve o encerramento do telégrafo inglês, que permitia comunicações fáceis com Londres naquele tempo [fechado em 1973, passando os telegramas a seguir a via Praia – Lisboa – Londres]. Depois, houve a desconfiança dada pelos países europeus à independência. Mais tarde, houve o encerramento da própria Casa Millers, que abalou também a confiança europeia.

 

Quase se pode dizer que foram os passos em direcção à crise?

Exactamente. E não houve uma reacção do governo, por falta de sensibilidade. Na Praia não se tem sensibilidade a determinados problemas. É preciso estar no local. Esse, para mim, é o primeiro passo da regionalização.

 

Por falar em regionalização, concorda com ela?

Eu digo que a regionalização será uma boa coisa, mas há um pormenor essencial, ela só será eficiente se houver boa fé, e presumo que haverá. Boa fé do Poder Central. Porque se for para andar com manifestações ou artigos nos jornais, não se chega a parte nenhuma. Só com diálogo é que se consegue. Quem está no poder, se quiser, pode torpedear o processo. Mas, também é evidente que só numa fase mais avançada é que se poderá falar em órgãos eleitos democraticamente.

 

Falei com alguns empresários de São Vicente, recentemente, e um dos pedidos feitos por todos é poder e rapidez de decisão. A regionalização deverá ir nesse sentido?

Já numa outra entrevista que dei ao Expresso das Ilhas me referia ao quadrilátero que era: problema – análise – solução – decisão, é isso é que tem de estar junto no mesmo sítio.

 

Recuperar a  tradição marítima

 

Tem estudado bastante as questões do desenvolvimento ligadas ao mar. Essa será a solução para São Vicente, recuperar essa tradição marítima?

Sim. A vida de um país não é estática. Mas, acredito que o mar trará bastante a São Vicente, que é o mesmo que dizer a Cabo Verde. Quando penso em São Vicente, penso no pedaço de Cabo Verde que me está perto. A Baía de Porto Grande, no fundo, não foi procurada pela beleza, foi porque tem Santo Antão em frente que lhe dá boa protecção contra as calemas [fortes rebentamentos das ondas do mar]. É dessa vantagem comparativa que se deve partir e não creio que em qualquer outro porto de Cabo Verde seja possível fazer obras tão protegidas como no de São Vicente. É claro que não é qualquer localização dentro da Baía do Porto Grande que tem essas virtudes, mas de certeza que se encontrarão áreas protegidas que dão uma simplicidade às obras. Portanto, num ordenamento e planeamento do território eu acho que a vocação a atribuir a São Vicente será a marítima, de todas as formas.

 

Ainda tem uma visão optimista para o futuro de São Vicente?

(sorriso) Bom, hei-de morrer com ela, penso eu. É preciso é uma administração adequada e voltada para o mar.

 

O governo tem falado nos clusters. O do mar pode ser uma solução?

Claro que sim. Entendendo por cluster do mar o conjunto das actividades marítimas, é claro que acho que sim. Aliás, se não for isso, e eu costumo dizer isto a brincar, se não encontrarmos uma solução, então teremos de substituir a câmara municipal por uma comissão liquidatária. Não vale a pena estar a perder tempo, porque não vamos ter futuro nenhum. É uma ilha que não produz absolutamente nada, pode ter umas hortas para apoio ao fornecimento à navegação, para consumo local, mas nunca será um pólo de desenvolvimento agrícola. É uma ilha com uma orografia muito especial, que não permite a retenção de água, tem um solo bastante salino e por isso mesmo a água potável das chuvas torna-se salobra muito depressa. Ou seja, não tem outro recurso. Terá de ser o porto, o turismo, claro, mas não creio que tenha uma expressão assim tão grande.

 

Alguns empresários ligados ao sector turístico disseram que São Vicente precisava de cinco mil camas para poder dar o salto no sector.

É verdade. Agora, o turismo que até hoje se desenvolveu em Cabo Verde é o de praia. São Vicente tem umas praias, mas não são pólos de atracção turística como é no Sal, na Boa Vista, ou no Maio. Ao mesmo tempo, recomendo que haja uma agência de desenvolvimento turístico para São Vicente que não seja a mesma que trata do Sal e da Boa Vista.

 

Foi outro tema que os empresários abordaram. Além do poder de decisão, São Vicente precisará de mais promoção.

Evidentemente. São Vicente tem de ser apresentado também como alternativa de investimento.

 

A indústria possível

 

Há em São Vicente picos de consumo – fim de ano, Baía das Gatas e Carnaval – agora com o Festival da Cavala, voltou a falar-se numa iniciativa de sucesso. Isto prova que as ideias inovadoras também podem mexer com a economia da ilha. Será necessário transformar estes picos em algo mais constante?

Está demonstrado que sim. Antigamente só havia o Carnaval. Depois surgiu a Baía [das Gatas] e a passagem do ano. Sem dúvida que isso é importante. No entanto, isso sai já um pouco fora da minha área. Eu sou um homem da indústria, por isso vejo mais as reparações navais, gostava mais de ver o nosso operário a trabalhar na metalurgia. Não quero com isto criticar quem se dedica às actividades mais culturais, pelo contrário, acho que funcionam.

 

Então falando de indústria, que já existiu em São Vicente e depois decaiu, esta poderá ter futuro novamente?

Bem, primeiro tem de haver um funcionamento da Organização Internacional do Trabalho igual para todos os países do mundo, e todos os operários de todo o mundo devem unir-se sim mas para exigir a observância dos preceitos da OIT, porque aqueles países onde o operário trabalha de sol a sol e faz um descanso de quinze em quinze dias são uma concorrência desleal. Enquanto isso acontecer, não estou a ver o povo de São Vicente a ter qualquer hipótese na indústria. Neste momento, estou a trabalhar num projecto nas vertentes da micromecânica e microelectrónica, não tenho quaisquer ambições pessoais por isso estou totalmente às ordens para se as minhas ideias tiverem valor de as passar a quem tenha energias de jovem e as leve avante. Estou a pensar em indústrias de alto valor acrescentado, e não só para São Vicente, funciona onde houver habilidade manual, seja qual for a ilha.

 

Explique-me melhor esse projecto.

Na Suiça os relógios são feitos quase manualmente e são produtos de alto valor acrescentado. (sorriso) É só para ver que há modelos que podem servir de inspiração. Não quer dizer que vamos começar a fazer relógios para competir com a Suiça, claro que não, mas eu sou um defensor que “small is beautiful” [o pequeno é belo], portanto, o que for pequeno e de qualidade vende-se sempre. Eu vejo pessoas a produzir na sua casa, mas sem grande organização e a indústria como eu a penso vai nessa direcção, produtos feitos em pequenas oficinas, talvez a trabalhar para uma organização maior, com tudo orientado para o mercado e com controlo de qualidade.

 

 

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Autoria:Jorge Montezinho,2 ago 2013 11:16

Editado porAntónio Monteiro  em  2 ago 2013 16:20

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