Vera Duarte “Estou a viver um momento virado para a literatura”

PorNuno Andrade Ferreira,3 nov 2013 0:00

Magistrada, activista dos direitos humanos, antiga governante e escritora, mulher de convicções fortes, e uma referência na luta pela emancipação feminina. Na semana em que lança um novo livro, Vera Duarte foi a convidada do programa Primeira Pessoa, da Rádio Morabeza.

 

 

Recordo o que Ondina Ferreira escreveu a seu respeito aqui há alguns anos, quando a descreveu como “uma mulher dividida entre a moral cristã e uma mulher revolucionária”. Sente-se assim nestas palavras?

Na verdade a Ondina fez o prefácio ao meu primeiro livro de poemas. Lindíssimo, o prefácio, como é a escrita da Ondina. Acho que ela se baseou um pouco em alguns poemas meus em que eu digo que me sinto dividida entre essas duas linhas. Eu, como qualquer ser humano, sou fruto das diferentes vertentes que existem dentro de mim, mas é sempre possível tirar a linha de equilíbrio. Procuro sempre ter um equilíbrio, tanto gosto da disciplina da norma, como gosto da catarse.

 

Costuma referir um episódio da sua infância, quando brincava na Pracinha da Igreja (São Vicente) e era visitada por Jorge Barbosa. O que é que recorda desses encontros?

É incrível como estas coisas acontecem e depois quando se vai ver, mesmo que de forma inconsciente, escavamos o passado e chegamos à conclusão que a influência ficou lá. Quando era criança, morávamos na rua da Luz e a igreja ficava lá perto. Costumávamos ir todas as noites brincar na pracinha e quando o Jorge Barbosa vinha para São Vicente, ficava alojado lá perto e gostava muito de ir ver as crianças brincar. Não só se sentava a ver-nos, como brincava connosco. Quando comecei a ler a escrita dos nossos escritores, senti-me extremamente próxima da escrita de Jorge Barbosa. Quando completo um livro, a primeira pessoa que me aparece para citar é Jorge Barbosa. E acredite que agora que criámos a Academia Cabo-Verdiana de Letras, vou ocupar a cadeira do Jorge Barbosa.

 

É uma coincidência?

Eu escolhi, houve outros que também escolheram, mas tive a sorte de ficar com ela.

 

A Vera Duarte, enquanto criança, costumava escrever e guardar na gaveta?

Eu escrevia. Sabe que frequentava a Igreja do Nazareno e acho que por aí comecei muito cedo a gostar de dizer poeminhas. Mas na verdade tinha vergonha e rasgava. Lembro-me que tinha um guarda-fatos imenso lá em casa, para o qual eu entrava e escrevia lá dentro.

 

Foi em Lisboa que acabou o liceu. Como é que foi vivida essa mudança?

Foi interessante, mas até um certo ponto. Como não tinha família directa, acabei por ficar interna num colégio. Na verdade, já estava com 15 para 16 anos. Sempre li muito, já tinha lido Eça de Queiroz, Júlio Diniz, entre outros. Tudo isso acabou por fazer com que a transição não fosse tão marcante. Mas sem dúvida que me ajudou a abrir horizontes, também intelectuais, de uma forma mais precoce.

 

Olhando para aquilo que tem sido a sua vida adulta e fazendo uma retrospectiva, faz todo o sentido que tenha estudado Direito. Essa opção foi causa ou consequência das suas convicções?

Não sei qual foi a causa e qual foi a consequência, mas foi uma opção tomada extremamente cedo e nunca me arrependi. O Direito foi uma ferramenta para a pessoa que eu era e que fui sendo cada vez mais. Acho que nunca poderia ter feito outro curso que não fosse esse.

 

Ora, estudou Direito no início dos anos 70, numa altura em que a academia fervilhava com os movimentos estudantis. Participou nesses movimentos?

Para mim o grande momento de alumbramento de Portugal foi quando fui para a Faculdade de Direito e tomei contacto com aquele mundo que naquele ano, em 70, era um mundo de uma efervescência tal. Em 70, a faculdade de direito estava no seu auge. Apanhei gente como Saldanha Sanchez e Maria José Morgado. Fiz uma vida académica extremamente activa. Alinhei no movimento estudantil e estávamos todos por um Portugal e antigas colónias diferentes, pela democracia e pela liberdade. Alinhei muito, sobretudo com o MRPP, devo dizer.

 

Teve problemas com a PIDE?

Não tive, porque aqueles foram os anos mais precoces e eu também não estava na linha da frente. Agora, tive convites para ir para a luta, para sair de Portugal e ir para a clandestinidade. Mas vivia dentro de uma família e estava a fazer aquilo que entendia ser a minha luta.

 

A Violência com Base no Género (VBG) terá sido a sua primeira causa. Refere-se muitas vezes ao caso da sua tia que era vítima de violência domestica.

Acho que a VBG foi algo que me acompanhou desde sempre. Nunca consegui compreender como é que um homem podia bater na sua mulher, simplesmente por esta ser a sua mulher. A VBG acompanhou-me sempre e foi despoletadora. Quando hoje vejo que aumentou o número de casos de VBG nos tribunais, sinto satisfação. Não quer dizer que haja mais casos, o que eu acho é que finalmente se ganhou visibilidade.

 

O desenvolvimento da sociedade cabo-verdiana no pós-independência deu à mulher o lugar que ela merece?

Acho que a mulher conquistou esse lugar. Tivemos sempre desde o primeiro momento uma discussão muito grande à volta das quotas. Num primeiro momento não era muito favorável. Nunca cheguei a defender oficialmente  outra posição, mas poderia defender dizendo que facilitaria. Mas até agora, em boa verdade, a mulher foi conquistando todos os domínios em que entrou.

 

As quotas fazem sentido numa primeira instância?

Sim, talvez seja por aí.

 

Temos uma sociedade que, na prática, em muitos aspectos, obedece a uma organização matriarcal.

Vimos de uma sociedade escravocrata, uma sociedade do senhor e do servo. Mas a mulher, devido ao facto da fraqueza económica do nosso país, sempre ocupou um papel de relevo. Contudo, nunca deixou de ser o homem o chefe de família. Acho que o processo de emancipação da mulher está a ser mais rápido e consistente pelo papel muito relevante da mãe enquanto provedora do sustento da família.

 

Fala-se hoje em dia de desestruturação familiar. Isto é algo que a preocupa?

Entendo que temos vários tipos de família. Sabemos que o tipo ideal de família seria mãe, pai e filhos. Essa é a família que todos gostaríamos de ter, porque é a família em que podes encontrar equilíbrio, sustento, amor. Mas isto é um desejo. A família cabo-verdiana, na sua maioria, não é assim formatada. O importante é trabalhar no sentido de que a família, mesmo que falte algum elemento, possa ser uma família onde se possa encontrar o amor para se poder desenvolver plenamente a personalidade.

 

Quando falamos de Vera Duarte associamo-la sempre à defesa dos direitos humanos. Esta é a esfera da sua vida que lhe merece maior atenção?

Eu acho interessante como a vida nos proporciona coisas diferentes. Tive oportunidade, enquanto magistrada, de levar mais longe aquilo em que acredito em matéria de defesa dos direitos humanos. A causa dos direitos humanos é uma causa que sempre empunhei com muito carinho e dedicação. Mas se quiser que lhe diga, neste momento, estou a viver um outro momento. Um momento que encontrei, sem procurar. Estou neste momento a viver um momento muito virado para a literatura.

 

Em todo o caso a questão dos direitos humanos acaba por ser transversal a muito do que tem feito na sua vida. É a tal linha de coerência?

Há pessoas que dizem que ao longo da vida escreves um livro. Acho que talvez o denominador comum sejam os direitos humanos. Das maiores satisfações que tive quando fui ministra da Educação foi assinar uma revisão curricular em que os direitos humanos e a educação para a cidadania passaram a ter lugar como disciplina.

 

Em 1976 ganhou uma menção honrosa num concurso literário e ficou atrás de nomes sonantes das letras nacionais, como Arménio Vieira, agora Prémio Camões. Mereceu também grandes elogios de outros nomes sonantes das letras em língua portuguesa. Recorda-se dessa experiência?

Foi maravilhoso. Quando resolvi ir para aquele concurso, nunca imaginei o que é que me viria a acontecer. Foi ousadia, até porque não havia mais mulheres e quando tive a menção honrosa foi extraordinário. Depois disso é que vieram as grandes compensações. Por exemplo, recebi uma carta do Luandino Vieira que me incentivou a continuar. Aquele estímulo foi maravilhoso.

 

A Vera Duarte chegou primeiro numa série de áreas. Foi mero acaso?

É uma coincidência histórica. Sou uma pessoa que gosta de viver de forma empenhada. A geração da minha mãe foi uma geração de transição. Eles começaram a sentir de forma mais forte o poderem vir para a rua. Na minha geração isso já era um facto. Acho que vivi intensamente o meu tempo histórico. Continuo a fazer com que a voz da mulher seja ouvida nos vários domínios. Eu e outras.

 

Está também na génese da Academia Cabo-Verdiana de Letras. Há em Cabo Verde um espaço por explorar na literatura e palavra escrita?

Há um espaço imenso e posso dizer que essas são as ambições da Academia. Queremos, por exemplo, que a literatura cabo-verdiana tenha trânsito nas instituições académicas. Queremos que os nossos estudantes possam conviver com a escrita de fora e sobretudo com os autores cabo-verdianos. É assim que se começa.

 

Crónicas de intervenção no novo livro de Vera Duarte


Foi lançada esta segunda-feira a nova obra da escritora Vera Duarte. A Palavra e os Dias reúne crónicas que têm em comum o compromisso que a autora tem com a construção de uma sociedade mais justa.  


Lançou segunda-feira A Palavra e os Dias.
Trata-se de um livro de crónicas. São crónicas diversas. Há muita crónica de caracter social, de carácter político, educativo, literário. E resultam de algo que acho muito interessante que é um juntamont entre eu e uma brasileira. Uma professora brasileira, Cristina Ramalho, que organizou as crónicas e assina o prefácio.

A literatura é uma forma de pôr as pessoas a pensar?
Encaro a minha experiencia literária em duas vertentes. Uma, acho que é absolutamente fundamental que a pessoa conviva com o que é belo. Procuro que a minha escrita seja uma escrita bela. E, por outro lado, procuro que seja algo que tenha uma mensagem, que no meu caso é essa luta pelo avanço do ser humano, pela justiça e pelo triunfo de uma sociedade justa, que tenha como valor essencial o amor.

Escolheu para apresentar este livro o poeta Corsino Fortes.
Convidei o poeta Corsino Fortes porque temos estado em aventuras literárias muito próximas. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,3 nov 2013 0:00

Editado porDulcina Mendes  em  2 nov 2013 19:24

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