A história do Terra Nova confunde-se com a história de Cabo Verde. O jornal defendeu a independência do arquipélago, lutou contra a ditadura, pôs-se ao lado da democracia e hoje, 40 anos depois da fundação, prepara-se para entrar numa nova fase, com um novo director. A história de frei Fidalgo de Barros, o homem até agora ao leme do projecto, confunde-se com a história do Terra Nova, jornal, como o próprio diz, que foi sempre uma extensão da maneira como vê a vida e a política.
Expresso das Ilhas — Terra Nova porquê? Para assumir, desde o início, o sonho independentista do país?
Frei Fidalgo de Barros — Eu voltei de Itália em Agosto de 74, em plena época de transição, com todo aquele ferver. Eu tinha vindo para ser ordenado e já estava a ser cozinhada a ideia de ter um jornal e como já sonhávamos com uma terra nova, veio-me à ideia esse nome, que é bíblico também, não é? A terra nova, a terra prometida, é um bocadinho isso que fez surgir o nome do jornal.
Disse-me que chega em plena efervescência revolucionária, como era Cabo Verde nessa altura?
Era muito diferente daquele país pacato, onde nada acontecia, onde as pessoas andavam todas cabisbaixas e onde a única saída era a emigração. O único movimento que se via era para a emigração. Dá-se o 25 de Abril e de repente o país começa a ferver, até estranhei como é que tudo isso tinha acontecido, onde estavam todos estes revolucionários? Havia gente que abraçou logo a causa, como havia outros que estavam de pé atrás, claro. A coisa não estava também toda direitinha, havia tensões. Nunca se chegou a violências, mas havia tensões fortes.
O próprio jornal tem uma evolução, digamos, curiosa. Começa por apoiar a independência…
É preciso compreender a minha própria história. Eu tomo consciência daquilo que eu era e do que era Cabo Verde depois de chegar a Itália, em 68. Os meus olhos abrem-se em Itália, não em Cabo Verde. Quis o destino que começasse a minha experiência com um moçambicano…
Que estaria próximo da FRELIMO?
Sim, próximo no sentido de também querer a independência do seu país. Depois, fui viver para uma cidade – Trento – que estava também em ebulição, Maio de 68 está a ver? Foi quando tomei noção da minha condição de colonizado e de viver num país que era uma colónia. Por isso, quando chego a Cabo Verde era já um aliado dessa causa da independência, um fervoroso defensor da independência de Cabo Verde e o Terra Nova exprimiu essa minha posição.
Até porque o jornal Terra Nova não pode ser dissociado do Frei Fidalgo.
Não. O jornal acompanhou-me sempre.
Entretanto, chega à conclusão que o país tinha a independência, mas não a democracia.
Essa foi uma consciência clara que tomei. Eu fui eleito deputado naquela primeira assembleia, que devia ser constituinte e não foi, depois, discutindo a Constituição, entro em choque com o famoso artigo 4º e intervim para dizer que não podíamos amarrar a Constituição a um partido. É claro que foi uma intervenção completamente fora de todas as outras e percebi que estava do outro lado. E o jornal volta a acompanhar-me nessa evolução. A partir daí percebi que a coisa já estava traçada e que não havia possibilidades de um pluralismo político.
Que na sua opinião seria fundamental? Com a independência devia vir também a democracia?
Devia haver um esforço de, depois do partido ter tomado sozinho as rédeas do poder, trabalhar no sentido do pluralismo. Mas, não houve um sinalzinho sequer nesse sentido. É isto que explica a minha posição de fazer do jornal um instrumento de reflexão, pouco a pouco. Aquilo não foi logo, mas aos poucos o jornal foi exprimindo essa dissociação do regime.
No Terra Nova sempre se disse que não tinham a intenção de ser o Quarto Poder, mas acaba por ter um papel activo no combate pela democracia.
Sim, havia o Partido Único e acaba por haver também o jornal único, que depois chegou a ser chamado de ‘jornalzinho da oposição’. Acabou por parecer ter esse papel, mas eu nunca me assumi como um opositor ao regime, não era essa a minha intenção, nem de levar o jornal a ser um jornal da oposição. Quis sim que tivesse um papel de ajudar as pessoas a reflectirem com consciência, a perderem o medo de falar, porque havia realmente este ambiente de controlo do pensamento das pessoas. Quando se queria dizer alguma coisa, tinha de se olhar para a esquerda e para a direita para ver se ninguém estava a ouvir. Havia controlo por toda a parte, era preciso saber o que se dizia e com quem se falava.
E como foi trabalhar num jornal que era contra um regime totalitário? Sofreram muitas pressões?
Era uma coisa muito estranha, porque dentro de um regime que não previa isto havia esta realidade chamada jornal Terra Nova, que dizia coisas proibidas. Mas, como disse, isto foi feito aos poucos. Era preciso testar o regime e não ir muito depressa. Mas, também quando começámos pensámos: o pouco que se dizia era suficiente? E isso deu-nos uma espécie de coragem para dizer muito mais.
Ou seja, iam dando um passo de cada vez, testando limites e ultrapassando-os mais um pouco?
Exactamente. Para ver onde podíamos chegar. Até ao momento em que se começou a dizer, de uma forma clara, que isto assim não podia continuar. Que nenhum grupo, como dizia o Papa João Paulo II que nós citávamos sempre, pode manipular a opinião de toda a gente e arvorar-se em guia único. E nós aproveitávamos para mostrar que não éramos nós quem dizia isso, era o Papa. Já era uma fase de conversa clara.
Isso é curioso. Porque apesar de haver um partido único com uma inclinação marxista continuava a haver um certo respeito pela igreja católica.
Foi isso que fez com que o jornal não fosse suspenso logo que começou a dar sinais de ser um jornal do contra, uma persona non grata, digamos. De qualquer forma, embora não sendo a voz da igreja católica, que não éramos, nem porta-voz dos capuchinhos, não deixávamos de ter uma matriz cristã/católica, não havia por onde separar isso tudo. Isto fez com que tivesse havido um certo receio de fechar o jornal, apesar de que a intenção era chegar a isso de alguma forma. Analisando as coisas como foram acontecendo, percebia-se que havia um projecto nesse sentido: ou de mudar por completo o jornal, ou então acabar com ele. Era preciso ver a história de 85 a 90 para perceber isso.
E qual é essa história?
Era tudo feito, sobretudo, pelos outros dois jornais, um oficioso e outro do partido, o Voz di Povo e o Tribuna, e era através deles que vinha a pressão e o combate. E depois aproveitou-se duas coisas; uma carta publicada em 85, de um leitor, que levou o jornal a tribunal e um editorial que duvidou de um discurso do Presidente da República. Isso provocou uma onda de contestação contra o jornal, com a recolha de assinaturas por todo o lado, em ambientes paroquiais, uma recolha incentivada pelas estruturas do partido. O que se pretendia com isso? Por isso é que eu digo que havia essa intenção de fechar o jornal.
Mas, também nessa altura recebem um forte apoio popular.
Curiosamente o povo reagiu de uma forma muito interessante. Quando fui a tribunal, lembro-me que fui acompanhado, tanto no dia do julgamento, como no da leitura da sentença, pelas pessoas. Não cabiam sequer no tribunal, tiveram de ficar na rua. E levaram-me quase como se fosse um herói (risos) até casa. No dia da sentença foi a mesma coisa, começámos com uma missa e fui surpreendido pela… (pausa). Ainda hoje me comovo quando recordo a presença de todas aquelas pessoas. Na altura, por sorte, tinha alguém ao lado que continuou a eucaristia, porque a comoção tomou conta de mim. E depois, as manifestações de apoio que houve, principalmente na ilha do Fogo, quando houve essa recolha de assinaturas contra o jornal. Houve as cartas assinadas pelos cristãos.
Ou seja, todo um movimento que lhes continuou a dar coragem.
Isso foi importante. Sentia que não estava só e que havia leitores que estavam com o jornal.
Isso acaba por não impedir ser sentenciado.
A sentença foi dois anos de cadeia, pena suspensa. Portanto, dois anos caladinho. Mas, depois da sentença nada mudou. Tivemos ainda o caso Teófilo, que contribuiu para fazer crescer ainda mais o jornal, por causa da coragem que ele tinha a escrever, e acabou por pagar por isso porque perdeu o lugar no banco. E nós continuámos na mesma linha. Não podíamos retroceder. Seria muito feio retroceder. Com cuidado, claro, mas continuámos nessa linha. Aliás, ao editorial ‘nós duvidamos’ seguiu-se um outro ‘nós duvidamos’, devia ter posto um 2, não é? (risos) Porque não se podia duvidar e nós duvidámos, mesmo depois de todo aquele temporal.
O Terra Nova tinha outra particularidade, permitia os textos anónimos ou escritos sob pseudónimo. Como surgiu essa decisão?
A nós bastava que a pessoa se identificasse perante o jornal.
O jornal sabia quem escrevia?
O jornal sabia. Se alguém tivesse de pagar alguma coisa era o jornal, o director, como foi o caso da carta escrita em 85. Também havia artigos de gente que se opunha e que escrevia, mas exigíamos sempre que se identificassem ao jornal.
Nunca foram procurados pelas autoridades para revelar quem escrevia esses artigos e cartas?
Não, mesmo quando foi do julgamento quem foi acusado fui eu. Nunca iria revelar quem escrevia, a responsabilidade seria sempre assumida por mim.
E acabam por ser artigos importantes nessa luta pela democracia?
Como eu digo sempre, ajudámos a expulsar o medo que é o maior inimigo de uma sociedade. Não é o poder, é o medo que incute nas pessoas. Combatendo o medo, passávamos a coragem aos outros.
Acha que hoje temos uma geração formada politicamente pelo Terra Nova?
(pausa) Acho que o Terra Nova ajudou, ou melhor, foi um factor de construção da alternância. Era preciso haver alguém a pensar que era preciso mudar. Em 91 havia já uma população preparada. Havia também partidos a trabalhar, claro, mas já havia um caminho aberto. Daí para a frente construiu-se sobre aquilo que existia, porque não havia nada feito. E hoje há as novas gerações que não conhecem o passado, nem têm interesse em conhecê-lo, e isso é muito mau, porque há também os que tentam dizer que esse passado, afinal, até foi um bom passado. Tudo isto faz com que hoje não haja pessoas com capacidade de ver onde está o bem e onde está o mal e agir em consciência.
Acha que se está a branquear o passado?
Eu costumo dizer que existe essa tentativa. E isso é mau. Porque acaba por se empobrecer a história. A história é bonita se as páginas todas se abrem e nós podemos lê-las, tanto as boas como as menos boas. Isso é que faz a beleza de qualquer país. Tentar branquear, ou esconder, não ajuda ninguém. E nós precisamos de alguém que faça uma história objectiva e corajosa. Mas, talvez ainda tenhamos uma história muito recente.
Até porque não é um fenómeno local, em Portugal ouvem-se, de vez em quando, apelos ao regresso de um Salazar, ou ainda recentemente no Brasil as pessoas saíram à rua para pedirem aos militares que voltassem ao poder, onde é que se falhou?
Onde falhámos, é isso. Há qualquer coisa que não está bem. Esta onda de contestação que vivemos em Cabo Verde é boa, mas há sempre um aspecto que é menos bom e o Presidente da República fez questão de chamar a atenção que não podemos desrespeitar os políticos. Tem de se saber contestar, saber reflectir.
Voltando ao Terra Nova, e por falar em reflectir, como é que um jornal privado, com sede em São Vicente, consegue ter tanta força na caminhada para a democracia?
Também me pergunto a mesma coisa (risos). Acho que o facto de termos sido a única voz deu-nos esta força. Se houvesse outras vozes a trabalhar no mesmo sentido, se calhar, não teríamos ficado tanto para a história. Fomos uma forma de respirar algum ar livre.
Tudo para defender a liberdade e a dignidade humana?
Hoje, quando olhamos para esses tempos, só posso dizer que valeu a pena. O esforço que se fez, com muitas dificuldades, com muitas carências – e quem vê essas edições dá conta que havia muitas vezes um jornal feito sobre os joelhos (risos) – mas, valeu a pena.
A partir da abertura, continuam a ser vigilantes em relação ao poder?
(risos) É sempre a história das minhas posições. Eu tive dificuldade em pensar que já estava tudo feito, isso explica porque é que o jornal deu a impressão de estar ao lado dos que estavam então no poder. Eu receava que a democracia caísse e pareceu-me que o meu dever seria apoiá-los. Quando o governo torna a mudar [2001 com a vitória do PAICV] o jornal deu novamente a impressão que não gostou. Mas, o povo tinha escolhido e isso é democracia. Mas, reflectia sempre a minha posição. Para contestar o poder nos anos 90, já havia outros que o faziam.
Ou seja, luta para que haja a democracia, quando esta chega pensa que teria de a defender.
Sim, até onde fosse possível. Mas, as páginas dos jornais sempre estiveram abertas para todos. Chegou a haver gente que achou que já não era preciso que o Terra Nova continuasse, que podia fechar as portas porque tinha cumprido a sua missão.
Curiosamente, a partir dessa altura o Terra Nova começa a perder leitores, como explica isso?
Eu compreendo o que aconteceu. Para já, havia o pluralismo e já não era necessário esse ‘porto seguro’. Depois, também não tivemos a capacidade financeira. Eu nunca quis dar grandes saltos porque tinha receio. Aliás, se foi possível preservar o jornal até à altura deveu-se muito ao facto de não me ter aventurado. Confesso que era necessário melhorar, mas também sabia os custos que isso implicava e eu, pessoalmente, não quis avançar nesse sentido. Não digo que foi a melhor decisão, mas não tive coragem. Muita gente me procurou para investir, mas ponderei e nunca quis.
Até porque o Terra Nova sempre disse que não era um projecto comercial.
E daí também a sua dificuldade, que continua a ter.
No entanto, o jornal prepara-se para sair com um rosto novo. Qual será o futuro do Terra Nova?
Isso agora é com o novo director (risos). O meu sonho é que não desapareça. O essencial, para mim, é que continue vivo e por muitos anos.
Actualidade política e justiça social devem continuar a ser as apostas editoriais mais fortes?
Seria bom preservar uma certa linha sem continuar o Terra Nova dirigido por mim. Tem de ser diferente, mas preservando uma certa característica de jornal interventivo. Nada do que existe neste mundo, relacionado com o homem, deve ser estranho a um jornal e à própria religião, no fundo é isso.
Ser o único jornal sedeado em São Vicente também marca a diferença?
Marca a diferença, mas também penaliza um pouco o jornal. Capital é capital. Agora o director está na Praia o que lhe dá uma certa força que eu não tinha, e isso é muito bom. Mas, estar em São Vicente, mais uma vez, teve a ver com a minha condição de membro de uma congregação religiosa, sujeito a transferências, portanto, o jornal acompanhou-me nos meus vários destinos.