Falar de página negra de uma ditadura é um eufemismo, afinal qualquer ditadura é uma página negra na história de um país. Mas há momentos que marcam mais do que outros. Relatos que se distinguem, e nem sempre pelos melhores motivos. O 31 de Agosto de 1981 é uma dessas datas que não se esquecem. Em 2015 Cabo Verde assinala quatro décadas de independência e os 34 anos dos acontecimentos que ainda hoje são recordados em Santo Antão. Esta não é a crónica do 31 de Agosto, é a narrativa daqueles que o viveram.
Arnaldo Miranda Manuel Ferreira Epifânio Ferreira Joãozinho de Marco
AS PRISÕES
34 anos depois, Manuel Ferreira ainda tem no corpo as marcas das torturas que sofreu. Apesar das sevícias praticadas pelo Partido Único, que lhe destruíram um rim, nem por uma vez eleva a voz quando me conta a história, nem solta um queixume quando a posição lhe causa algum desconforto.
Manuel Ferreira sempre foi um apoiante da independência do país. Ainda adolescente já acompanhava os mais velhos que se opunham ao regime colonial português. Na altura, não foi preso por pouco quando a PIDE foi a Chã de Arroz para levar antifascistas Lineu Miranda, Carlos Tavares, Jaime Schoffield, ou Beto Fonseca. Estes, quando viram a patrulha, mandaram-no esconder-se para que não fosse incomodado. Depois da independência torna-se militante do PAIGC, ajuda o partido, que via com agrado o jovem agressivo nas discussões políticas. Torna-se responsável do sector de Coculi, aldeia onde vivia, e dos arredores.
Em 1976, um ano depois da independência, começa a verificar situações que não estavam dentro da sua óptica política.
– Comecei a notar que não era nada daquilo que andavam a propagandear: democracia, liberdade. Vi que não havia liberdade nenhuma – diz-me.
Começam os choques com o partido. Quanto mais criticava, mais era posto de lado, subtilmente. Em 1977, o então professor de instrução primária é chamado a uma reunião onde os funcionários do PAIGC lhe dizem que como militante do partido deixava muito a desejar. A partir desse dia começa a receber ameaças indirectas.
– É como eles trabalham. São ratos. A partir daí moveram tudo quanto podiam para me prejudicar.
A transformação de militante em protestante começou quando a independência não significou democracia, mas houve outras situações que lhe causaram desconforto: elementos do partido começaram a ter atitudes indevidas e a ameaçar e amedrontar pessoas.
– Militantes do PAIGC foram ao sítio de Cova, na Corda, fazer uma vigilância e havia lá um senhor que tinha umas cabrinhas. Resolveram roubar uma cabrinha ao homem, um pobre camponês, e foram fazer uma paródia. Quando soube fiquei doido, fui directamente à sede do partido dizer o que estava a passar-se. Mas, depois camuflaram as coisas – recorda.
Manuel Ferreira e o partido já não estavam apenas em choque, começam a afastar-se definitivamente. É neste contexto que o anteprojecto da reforma agrária chega a Santo Antão e é altura de fazer um parêntesis. Depois do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, na Guiné-Bissau, os dirigentes cabo-verdianos encontram nessa ruptura uma fonte privilegiada de exaltação do patriotismo islenho e de louvação do peso específico da participação dos nacionalistas ilhéus na saga libertária da Guiné-Bissau, como escreve José Luís Hopffer C. Almada intitulado no ensaio: Das tragédias históricas do povo cabo-verdiano e da saga da sua constituição e da sua consolidação como nação crioula soberana. Nesse contexto, acelera-se o processo de procura de uma nova localização, exclusivamente cabo-verdiana, das fontes de legitimação do poder dos dirigentes do regime de partido único e assiste-se a uma aceleração do “processo revolucionário em curso”.
A implementação da reforma agrária foi entendida como essencial para a emergência da justiça social nos campos do Sahel insular e para a superação definitiva dos entraves socioeconómicos ao desenvolvimento agrário de Cabo Verde bem como ao florescimento de uma democracia social e económica.
O objectivo programatico de Reforma Agrária, várias vezes antes adiado, foi assim retomado para conseguir o apoio da população rural. Olívio Pires declara que “a Reforma Agrária é um acto eminentemente político” e continua,“vamos confirmar a total identificação do Partido e Governo com as massas e vamos também provar quem são os verdadeiros amigos do nosso povo, os defensores dos seus interesses mais profundos” . “Reforma Agrária situa-se na luta de classes..” (Voz di povo 5/8/81, citado por Humberto Cardoso no livro: O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à Esperança).
O certo é que a reforma agrária não foi bem recebida em Santo Antão. Fosse por desconhecimento dos laços estreitos que uniam proprietários e agricultores, fosse pelo objectivo político, tentou impor-se uma ideia que não se coadunava com aquilo que os santantonenses tinham em comum: as relações com a terra. No fundo, o meeiro, como era chamado quem trabalhava a terra do proprietário, era quem mandava na terra.
– Tentaram incutir na mente das pessoas que eram exploradas, roubadas, quando isso não acontecia. Havia convivência, laços, a maioria dos padrinhos dos filhos eram os donos das terras para apertar mais a amizade existente entre o proprietário e o lavrador – conta Manuel Ferreira.
Muitos trabalhadores rurais entregam as terras aos donos, dizendo que não queriam saber da história da reforma agrária. Sentiam que iam ser prejudicados e que podiam perder um compadre e um amigo. Estes sentimentos começaram a fervilhar e acabaram por desembocar no 31 de Agosto.
No dia anterior, 30, houve uma reunião do partido em Figueiral onde surge uma manifestação que gritava contra o partido. Essas pessoas foram presas. O dia 31 começa bem cedo para Manuel Ferreira, juntamente com outros descontentes vão a todos os sítios possíveis chamar pessoas para fazerem outra manifestação com a intenção de pedir a libertação desses homens.
– Quando estávamos a preparar-nos para ir à vila [Ribeira Grande], deparou-se-nos os militares, dezenas, com carros, à nossa frente, em Boca de Figueiral. Barraram-nos o caminho, armados até aos dentes. O povo não arredou o pé. Ficaram lá a gritar: “não à reforma agrária”, “libertação dos presos”. Até que dispararam, mataram o Adriano Santos e feriram outros.
Nessa mesma noite, à 1h15 da madrugada, os soldados vão prender Manuel Ferreira. Rebentam-lhe com a porta e encontram-no na cama com a mulher. No quarto ao lado havia três crianças, uma de 4 anos e um casal de gémeos de 1 ano. Levam-no, mesmo em roupa interior. Quando estão quase a sair da casa, a esposa atira-lhe um par de calças. Conforme se abaixa para as vestir começa a ser espancado, coronhadas, pontapés, murros. Agressões praticadas sem uma única palavra. Sem uma única explicação. Um vizinho – o Bigode – é também preso e ambos são atirados para dentro dos jipes.
Em Santo Antão encontro João Nascimento Rocha, vizinho de Manuel Ferreira (vivia numa zona mais acima) que me confirma a história.
– Vi um carro de tropa. O carro parou no meio da Ribeira, as tropas saíram, entraram no meio das bananeiras. Quando chegaram à porta bateram forte, depois deram um pontapé e deitaram a porta dentro. Apanharam-no e começaram a dar-lhe pontapés, pescoçadas, até chegar no carro. Quando chegaram ao carro pegaram-no nas calças e atiraram-no.
Epifânio Ferreira, irmão de Manuel Ferreira, foi outro que recebeu a independência com entusiasmo. Os combatentes que vinham da Guiné eram recebidos com aplausos e euforia. Na altura dono de uma carrinha com que fazia fretes, muitas vezes deixou as cargas no chão para levar os dirigentes do partido a reuniões. Tal como o irmão foi um militante de base do PAIGC, chegou a ser deputado suplente, mas com o tempo começou a ver que o partido não era o que se pensava.
As críticas às actuações de alguns funcionários do PAIGC eram mal aceites. Durante a preparação da lei de base da reforma agrária começam a surgir as insinuações que que havia dentro do partido alguns reaccionários. Ficam marcados. Até que surgiu o 31 de Agosto.
– Desembarcaram um contingente que só visto. Era um exército de invasão. O João Pereira da Silva comandava as forças. Chamou todos os funcionários e disse que daí em diante assumia o controlo desta ilha – diz.
Epifânio Ferreira também estava em Boca de Figueiral, a participar na manifestação que queria exigir a libertação dos presos do dia anterior. Quando estavam a concentrar-se apareceram os camiões e cercaram o caminho.
– Foi quando aconteceu a coisa mais feia, houve um tiroteio como não há memória, casas ficaram com balas nas paredes. Havia crianças, mulheres grávidas.
Num raio de uns dez metros Epifânio Ferreira enche um boné com invólucros de bala. Mostra-o aos responsáveis e diz que não era preciso disparar daquela maneira para o povo. Nessa noite começam as prisões. Epifânio não foi preso nesse dia. Passado uma semana vai a São Vicente, onde o irmão estava preso. Disseram-lhe que os presos não podiam receber visitas porque estavam isolados. Volta a São Vicente um mês depois e vai ao Comando Naval pedir autorização para finalmente visitar o irmão. Mandam-no sentar. Chegam três agentes da segurança e dizem que têm de ter uma conversa. Começa o interrogatório.
– Estás condenado, os teus companheiros falaram – dizem-lhe.
– Deve ter sido dito sob coacção – responde-lhes Epifânio.
– Ah, já sabes essas coisas? Estás muito bem informado – gozam.
Às 20h levam-no para Morro Branco onde é fechado em isolamento numa cela húmida e bolorenta. O único contacto com o exterior é feito pelos cinco buracos minúsculos na porta de ferro. Fica 19 dias sem ver a luz do sol.
Arnaldo Gomes Miranda foi preso dez dias depois do 31 de Agosto. Não participou na manifestação de Boca de Figueiral, mas tinha andado a escrever nos muros da Ribeira Grande, juntamente com o amigo Bigode, frases contra a reforma agrária, frases contra o comunismo e frases contestatárias como: “Abaixo Pedro Pires” e “Abaixo Aristides Pereira”. Foi apanhado porque um dos presos falou o seu nome sob tortura. O serviço de segurança telefona para a Ribeira Grande e o chefe da polícia vai à loja onde trabalhava para o prender.
João Gabriel, Joãozinho de Marques como é mais conhecido, também não esteve na manifestação de Boca de Figueiral (nesse dia estava em Ponta de Sol), mas foi apontado como um dos cabecilhas. Às duas horas da madrugada do dia 1 de Setembro a casa é invadida por militares e civis, de metralhadora e pistola.
– Empurraram a minha porta, entraram dentro da minha casa, foram ao meu quarto. Eles brincaram inclusivamente com a dignidade da minha mulher, nem isso tiveram respeito. Prenderam-me.
É levado perante as perguntas desesperadas da esposa que tentava saber o que tinha feito.
Quem não foi preso – na manifestação de Boca de Figueiral estariam entre três mil a cinco mil pessoas, dependendo das fontes – vivia sob o espectro de um dia ter os verdugos a arrombarem-lhe a porta. Como me diz Joaquim Filomena Medina:
– Sofri sem ter sofrido. Porque vi os outros a sofrer. O 31 de Agosto foi horrendo e depois estive à espera de ser preso, porque na altura prendia-se um indivíduo sem nada ter feito e sem nada ter dito.
E depois acrescenta:
– Comparado com a tortura do PAICV, antes tivéssemos debaixo do regime salazarista.
Digo-lhe que não acredito, mas ele reitera.
– Na altura do Salazar só não se podia dizer mal dele, mais nada. Salazar nunca abriu bala aqui, nunca matou ninguém. No tempo do PAICV bastava que alguém inventasse que tinha dito qualquer coisa, iam logo busca-lo a casa de noite a pontapé. Não havia presumíveis inocentes. Toda a gente era culpada.
AS TORTURAS
Os prisioneiros são todos levados para o Externato de Ribeira Grande onde continuam a ser espancados.
– Escreva o que vou dizer – pede-me Manuel Ferreira – Ali estava o bandido do João Pereira da Silva, bandido e assassino, mas cobarde porque nunca deu a cara, ficava escondido num piso que havia em cima e o Jota Jota, que era um depravado, comandava toda a pancadaria.
Eram na altura 21 presos, muitos não tinham estado na manifestação, como o Osvaldo Rocha [que acabou por morrer devido às agressões]. Se caiam no chão, devido às agressões, eram pisados pelos militares. Nessa noite sofrem maus tratos durante duas horas: murros na cara, na boca, na cabeça, pontapés, coronhadas. Depois trouxeram camiões, Volvos altos, onde era preciso dar um salto para se conseguir agarrar a borda. Os militares fizeram duas filas, os prisioneiros passavam no meio e continuaram a ser castigados com pontapés e coronhadas.
– Foi quando deram cabo do Osvaldo [Rocha] – conta Manuel Ferreira – ele era franzino e não conseguiu agarrar-se, nem subir. Deram-lhe então várias coronhadas e destruíram-lhe os rins.
São transportados para o Porto Novo, acocorados em cima de lascas de pedras cortantes. EM Porto Novo são atirados para cima do cais e metidos no rebocador Damão. Um tubo é ligado do escape do barco para o salão onde estavam os prisioneiros, que começa a encher-se com o fumo do motor. Quase todos começam a vomitar, outros caiem, sem forças.
– Andaram connosco horas no mar e iam dizendo: agora é para a Guiné, lá é que há valas – recorda Manuel Ferreira.
Mesmo naquele estado tentavam arranjar piadas para manter a moral mais elevada. Epifânio Ferreira lembra-se de dizer aos colegas:
– Parece que voltámos ao tempo das roças de São Tomé, carregados num porão.
Quando finalmente chegam a São Vicente recebem o mesmo tratamento, sair do Damão em fila indiana, passando por entre os soldados. As agressões continuaram. São postos em celas com pavimento de cimento, os colchões eram areia de vulcão e o travesseiro era uma pedra. As necessidades eram feitas dentro do cubículo, num canto. De noite os militares passavam junto às portas e disparavam rajadas para impedir que os presos dormissem. Seguiram-se os interrogatórios. Diários.
– Sabe porque está preso?
– Não!
– Você não sabe que está a lutar contra o nosso governo?
– Lutar como e com quê?
– Você tem de falar!
– Falar do quê, senhores?
– Enquanto não falar, fica cá.
Passavam mais de doze horas de pé, num calor insuportável e isso quando tinham sorte. Quando eram postos de joelhos dois militares batiam nas solas dos pés. Por horas e horas e horas. Foi um mês de interrogatórios seguidos, de dia e de noite, sem hora marcada.
– Era quando lhes desse na cabeça – diz-me Manuel Ferreira.
Os interrogadores, cansados, eram substituídos. Um dia começam os choques eléctricos, em João Ribeiro. Manuel Ferreira é assim torturado por duas vezes, o flagelo durava horas, dependendo do interrogador. Se tivessem pressa era durante uma hora a duas horas. Os outros levavam mais tempo. Faziam perguntas, se não tinham a resposta davam um choque. Sentavam os prisioneiros encostados à parede, assim que punham a máquina a funcionar a cabeça e o corpo batiam no betão.
– Não sei como ninguém morreu naquilo – conta Manuel Ferreira – Não se pode explicar, a coisa é de tal ordem que uma pessoa perde a noção. Naquela situação só pedia a Deus para morrer depressa, nada mais do que isso.
Joãozinho de Marques também sofreu torturas físicas. Durante os inquéritos foi várias vezes espancado e uma noite foram busca-lo à cela, vendaram-lhe os olhos, algemaram-no e atiraram-no para um carro. Como conhecia São Vicente como a palma das mãos foi fazendo o percurso mentalmente, depois da zona conhecida como curva nota que viravam para a cidade e ao passar na Praça Estrela deu conta que viravam à direita, para Ribeira Julião, onde estava a máquina dos choques. Há um odor que não esquece.
– O cheiro a bolachas quando passámos na Fabrica Favorita.
Sempre algemado e vendado tem eléctrodos ligados aos dedos do pé. Começam os choques eléctricos.
– Eu a bater com a cabeça na parede e eles ainda gozavam: “este é forte”, e felizmente tinha um bocadinho de força senão morria, porque a intenção era matar-me.
Epifânio Ferreira nunca passou pelas torturas físicas, mas não esquece as outras que sofreu. As psicológicas.
– A minha mulher ia visitar-me, mas não a deixavam ver-me. A minha filha levava-me um chocolate e diziam que o pai tinha tudo lá, até chocolate, não era preciso levar-lhe. A minha mulher ia à segurança pedir autorização para ver-me e eles diziam: tu és bonita, o que tinhas na cabeça para casar com um bandido daqueles, um reaccionário contra a nação.
A cela de Osvaldo Rocha ficava ao lado da de Joãozinho de Marques e este assistiu ao que chama de “morte lenta” do companheiro. Reparou que colava os olhos quase ao papel quando escrevia alguma carta para a mulher [Osvaldo Rocha cegou pouco antes de morrer], não conseguia dar dois passos sem parar para descansar. Quando finalmente é evacuado para Portugal – por insistência da família – os médicos perguntaram se não havia cemitérios em Cabo Verde. Morreu dois dias depois de ter entrado no hospital.
– Um rapaz incrível, um amigo extraordinário – recorda Joãozinho de Marques – O que chegou a Portugal foi já um cadáver, em coma, cego.
O JULGAMENTO
O julgamento acontece três meses depois das prisões, em tribunal militar. Frei Fidalgo escreve no jornal Terra Nova que estava a decorrer “um novo acto carnavalesco na Ponta do Sol”. Silvestre Évora, advogado de defesa, quando tem direito à palavra na abertura da audiência, põe-se de pé e diz: “meus senhores e minhas senhoras, é de bradar aos céus como esses homens foram torturados”. O juiz suspende a audiência de imediato. Évora é chamado a outra sala e avisam-no que tinha de ter cuidado com o que dizia.
Manuel Ferreira é condenado a sete anos de prisão.
– A sentença é a coisa mais nojenta que pode haver saída da mão e da cabeça de indivíduos que diziam ser juristas. Uma vergonha autêntica. Gostaria de perguntar a esses carrascos e bandidos porque fui preso, torturado e julgado. Gostaria que me dissessem isso – diz-me.
Cumpre dois anos e meio da pena porque entretanto a Cruz Vermelha Internacional e elementos dos Direitos Humanos visitam a cadeia da Ribeirinha. Depois de ouvirem as histórias dos detidos dirigem-se à Praia e dizem ao governo que não havia razão para os manter presos.
– Foi então que passaram a arranjar indultos e todo o tipo de malabarismo para nos pôr fora da prisão e assim passavam a imagem de ser tão bonzinhos – sublinha Manuel Ferreira – Mas, aquilo foi por medo. O problema é que eles tinham medo, porque são cobardes, e sempre tiveram medo. Através do medo que têm querem amedrontar os outros para que as pessoas não reajam contra eles. E alguém tinha de servir de exemplo.
Joãozinho de Marques é condenado à segunda pena mais pesada: 9 anos de cadeia. Arnaldo Miranda é condenado a dois anos, um a ser pago em dinheiro o outro para cumprir.
Epifânio Ferreira é condenado a três anos de prisão. Cumpre um ano e meio.
– Às vezes, finjo que nada se passou. Quero esquecer, mas não consigo. Quando vejo os saudosistas a dizerem que o 31 de Agosto foi uma farsa. Fico doente – diz-me.
E depois continua de um fôlego.
– O meu primeiro filho tinha sete anos e desistiu de ir à escola com medo. Como ele outros meninos ficaram com medo de ir à escola. Os militares percorriam o vale de toda a maneira, intimidando as pessoas. Muitas das nossas mulheres foram maltratadas e marginalizadas. É uma ferida que nunca mais cicatriza. Sempre que nos lembramos ficamos doentes. Foi um ambiente terrível. E ainda há gente que gostaria de estar naquele regime, que dizem que apanhámos porque merecemos.
As libertações não significaram o fim das pressões e das perseguições. Manuel Ferreira recebe avisos indirectos, à esposa e à sogra é dito que se não calasse a boca alguém lha calaria definitivamente. Resolve sair de Cabo Verde, principalmente porque quer que os filhos cresçam num ambiente democrático. Em Maio de 85 embarca para os Estados Unidos da América, onde fica como exilado político. Regressa pela primeira vez a Cabo Verde em 1995 e actualmente regressou para ficar a Santo Antão. Na nossa última conversa pede-me que escreva um pedido pessoal.
– Que nenhum partido tire proveito destas entrevistas. Que nenhum partido as use para fazer as suas campanhas. Exijo isso. O 31 de Agosto é uma data da ilha de Santo Antão. É uma história nossa.