Teófilo Figueiredo: “Não faz sentido que se gastem milhões em obras que não servem para nada”

PorAntónio Monteiro,31 out 2015 6:00

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Construir barragens que não retêm água, vias circulares onde só há vacas a pastar ou passa um carro por mês ou construir casas em que milhares vão ficar vazias é um problema sério que os governantes deviam dar a devida atenção, ao invés de criar o discurso ‘nós já fizemos a nossa parte, façam vocês a vossa parte’. Essas são algumas críticas dirigidas ao governo pelo antigo ministro das Infraestruras e Transportes Teófilo Figueiredo que questiona: “para quê é que precisamos de políticos se eles não são responsáveis pelas acções que mandam executar? 

 

Expresso das Ilhas – Como engenheiro como avalia o sector da construção e obras públicas em Cabo Verde? 

Teófilo Figueiredo – Como engenheiro há que reconhecer o grande salto que Cabo Verde conseguiu dar nos 40 anos de independência. Quando comecei a trabalhar aqui na Praia ainda no tempo colonial, não havia praticamente as mínimas condições infraestruturais, nomeadamente falta de redes de água e de esgoto, falta de energia. A Central Eléctrica da Praia funcionava entre as 6 e as 9 horas da noite; em São Vicente era um pouco mais, mas a rede de esgotos só existia na Rua de Lisboa. De modo que quando lanço um olhar retrospectivo para o desenvolvimento nesses sectores básicos da sociedade e da criação de condições para uma melhor qualidade de vida e para que a economia se desenvolva, acho que é louvável o que conseguimos atingir nestes anos após a independência.

 

Como analisa as obras construídas durante os 40 anos?

Esse salto que demos é fundamentalmente reflexo das obras que nós temos, muitas delas extraordinárias, bem-feitas, bem conseguidas. Mas não podemos deixar de reconhecer que começa a haver um grande número de falhas nas nossas execuções e isto preocupa-me seriamente. Nós estamos numa fase em que ficamos sem saber se são erros de quem concebeu, se são erros de quem executou, se são erros que quem fiscalizou. Não faz sentido que se gastem milhões em obras que não servem para nada, ou têm objectivos megalomanos de criar elefantes brancos porque, como alguns defendem, a infraestrutura é suficiente para ser o motor do desenvolvimento. Eu não defendo que a infraestrutura consiga resolver por si só o problema do desenvolvimento. Nós não temos grandes recursos, portanto eles devem ser utilizados com muita parcimónia. Tem-se que fazer uma triagem rigorosa, tem que se analisar das vantagens e desvantagens desse ou daquele empreendimento e só depois lançarmos o concurso para realizar a obra. Mas se qualquer coisa correr mal durante as obras o que pode acontecer numa obra de engenharia, há que apurar responsabilidades, não se pode deixar no vazio. Se correr mal e a obra não funcionou, arranja-se uma desculpa: é uma barragem que não recebe água e não se sabe porquê. Há disparates que começam a perturbar o cidadão comum. Depois há outros projectos que a gente fica a perguntar ‘mas para quê nesta fase?’. Pode ser uma coisa muito bonita, mas com que finalidade é que se faz, por exemplo, uma auto-estrada num sítio onde uma simples estrada com duas vias resolvia o problema? E que não precisa de toda a extensão como, por exemplo, a Circular da Praia onde seria suficiente a ligação do aeroporto a Monte Vaca permitindo a conexão directa ao interior. Com que finalidade se faz uma barragem num sítio que não retém água? Repugna-me que em Cabo Verde estejamos a entrar nessa ideia de que não há responsáveis e não se responsabiliza ninguém. Esse processo começou há muito. Há muito que vêm aparecendo obras com falhas graves em vários domínios e não se consegue apurar das responsabilidades. Isso é um problema sério que os governantes deviam dar a devida atenção, ao invés de criar esse discurso ‘nós já fizemos a nossa parte, façam vocês a vossa parte’. É o quê? Pagar? Todos nós iremos pagar: nós, os nossos filhos, netos e bisnetos. Mas, de facto, é preciso travar esse processo.

 

Como é que explica que temos obras feitas antes da independência com menos equipamentos e recursos que são ainda apontadas como referência?

Temos aqui na Praia parte do edifício onde está agora instalado o ministério da Finanças, temos o edifício onde está hoje o Banco de Cabo Verde. Como é que naquele tempo era possível construir com reduzidos meios e só com cabo-verdianos, é bom que se diga. Desde o projectista, a parte da arquitectura, a parte da estrutura e o executante. Não foi necessário mandar vir nenhum especialista. É usual dizer que as nossas empresas não têm experiência, não têm capacidade técnica e portanto entrega-se tudo a experts estrangeiros. O mais interessante é que são esses experts é que estão a falhar. Como exemplo de outras obras, eu citaria o Liceu Gil Eanes, em  São Vicente, o edifício do Comando Naval, na Av. Marginal, os silos da MOAVE… Em São Nicolau há estradas que eram concebidas naquele tempo fundamentalmente para sustentar a população nos anos de carência, mas ainda há troços daquele tempo que são verdadeiras obras de engenharia e de arte executados com meios absolutamente reduzidos que estão ainda em utilização. Falo, por exemplo, do troço de Estância de Braz até Salto, um troço de estrada que é do tempo colonial e que terá sido sujeito a muito pouca manutenção no pós-independência. É uma coisa extraordinária que está lá para provar que nós sabíamos fazer. Claro que eram poucas obras e as possibilidades de cometer erros eram menores e, como disse, essas obras eram concebidas mais como formas de subsistência nos anos de crise. Por exemplo, a primeira barragem que eu conheci, e que no meu tempo se chamava um dique grande, deve estar ainda lá em São Nicolau. A obra tinha 10 a 12 metros de altura, e hoje, o mínimo que se diria é que é uma barragem. Fica no tanque principal da Ribeira de João que evoluiu para um super-dique e que irrigava toda a Ribeira de João até à Cancela. Há uma galeria relativamente extensa com quase dois quilómetros que atravessa o Monte Gordo para trazer a água para a zona do Cachaço e para Ribeira Brava. Para citar outra obra hidráulica de grande porte, há uma captação de água na ilha Brava que é qualquer coisa de excepcional. Portanto, nós temos obras hidráulicas daquele tempo, feitas fundamentalmente por cabo-verdianos (obras dos Engs. Mota e Renato Figueiredo) que continuam a ter a sua utilidade intacta.

 

A ADAD homenageou a semana passada engenheiros e técnicos que contribuíram para edificar obras hidráulicas em Santo Antão até o ano 2000. O que acha desse gesto?

Eu acho óptimo que se consiga recuperar essa memória. Há um patrício nosso que dizia,  com razão, que um dos problemas de Cabo Verde é que nós sofremos de uma amnesia institucional muito grave. Se há este gesto em relação a Santo Antão, valeria a pena talvez estendê-lo a todo o país. Porquê? Porque no meu tempo de antanho os serviços de Obras Públicas tinham gente muito capaz embora com preparação académica aparentemente reduzida. Lembro-me do Sr. Freire um indivíduo que fazia topografia, fazia os levantamentos, as implantações e fazia lá os seus cálculos de betão e as obras que ele dirigiu, que fez ou executou ainda estão cá. Havia alguns mestres de carpintaria excepcionais como o Sr. Nené Danton, Cadete e outros e podia-se talvez fazer um exercício de recolha desses nomes e dos processos que deixaram…. Quando passei pelo antigo ministério das Obras Públicas [Teófilo Figueiredo foi ministro das Infraestruturas e Transportes entre 1991 e 1996] mandei organizar o arquivo de alguns desses dossiês e espero que os tenham mantido. O que me chamava a tenção era o facto desses projectos antigos estarem abandonados aos Deus dará. Essa parte é importante para nós sabermos o que é que foi feito, que estudos é que existem e porquê é que se fez dessa e não daquela maneira. Infelizmente nós temos muita dificuldade em manter os arquivos necessários para a transmissão dessas informações históricas importantes.

 

Então podia falar da evolução histórica do sector da Construção e Obras Públicas na parte que lhe toca que começa em 1962 quando regressa a Cabo Verde até os nossos dias?

Quando regressei a Cabo Verde, no princípio dos anos 60, havia poucos investimentos privados. Havia pessoas que faziam uma casinha aqui, outra ali, mas coisas de pequena monta. Nos finais dos anos 60 e até à independência houve uma preocupação maior da parte de Portugal em relação à criação de infraestruturas em Cabo Verde. Desenvolveram-se várias obras nomeadamente o Liceu Gil Eanes, em São Vicente, o Comando Naval, os edifícios dos Correios em todas as ilhas. Portanto, começou a haver um volume de trabalho feito com a prata da casa, obras que ainda estão cá para mostrar o que era possível fazer naquele tempo. O Serviço das Obras Públicas, como se chamava então, iniciou naquela altura o processo de passar para a actividade privada essas construções que antes eram todas por abjudicação directa. Antigamente eram os administradores e os presidentes de câmara que executavam as obras e faziam o que bem entendessem, mas prestavam contas rigorosamente, porque qualquer falhazinha nas contas implicava deportação para Angola. Muitos foram lá parar. Nessa altura foi publicada uma portaria que fazia uma primeira regulação do sector e o Serviço de Obras Públicas começou a emitir alvarás e a lançar concursos para execução de obras e assim abriu-se as portas para a actividade privada. Com a independência parou tudo. Primeiro, não havia recursos, depois a opção política não era para a actividade privada. De modo que o Estado assumiu tudo o que havia para fazer, a ponto de criar uma empresa estatal [EMEC, Empresa Estatal de Construções] que estatutariamente tinha como objecto a execução de todas as obras públicas e de particulares do país. Hoje, quando se ouve falar numa empresa desse género a vontade é dar uma gargalhada. A EMEC teve vida efémera e veio a falecer nos finais de 1980, de morte matada por iniciativa do governo de então, deixando um buraco financeiro para nós todos pagarmos. Nos finais de 1978 começou a haver algum sinal de aceitação do sector privado e só nos finais de 80 é que se decidiu pela implementação do sector privado, mas muito timidamente, porque continuava a não ser permitido o sector privado nas infraestruturas de base. Temos alguns muito maus exemplos dessa época: começava-se a fazer uma estrada que nunca mais terminava. Temos casos de três quilómetros de estrada que demoraram 5 anos a concluir; temos o caso de uma obra de arte em Santo Antão que levou 14 anos. Em São Nicolau lembro-me de uma pequena passagem hidráulica que levou também 5 anos a executar. São disparates que não passam hoje pela cabeça de ninguém. Nessa época construíram-se coisas absolutamente aberrantes. Descobriu-se que era possível fazer uma pista para um aeródromo em São Filipe, na ilha do Fogo, com terra carregada numas latinhas de leite à cabeça de mulheres: foi-se despejando terra durante vários anos o que levou o aeródromo a ficar inoperacional durante 10 anos. E veja que fizeram-se aterros de 10 metros com esse método e achou-se que estava bem, porque não havia preocupação com o cumprimento dos prazos nem com a qualidade. A infraestrutura era para manter alguns postos de trabalho e não para criar condições de desenvolvimento. Este novo conceito só foi posto em prática a partir de 1991. Com a mudança de regime, o Estado transferiu para o sector privado a execução de todas as obras públicas.  O Estado passou apenas a regular e fiscalizar o sector. Isso funcionou bem e o sector começou a crescer e passou-se a conseguir obras executadas de forma mais económica e em prazos aceitáveis. Mas ultimamente parece que se pretende  eliminar as empresas cabo-verdianas no sector . Por opção política? Não sei. Mas não faz sentido que se favoreça a eliminação de um conjunto de empresas num sector absolutamente indispensável para o desenvolvimento do país. A necessidade de infraestruturas vai crescendo à medida que o país se desenvolve. O governo afirma que pretende apostar no sector privado como o motor da economia. Dizem, mas a prática não é essa. Muitas empresas nacionais de construção civil estão a desaparecer. Há uma série de empresas com problemas sérios…Abriu-se muito a medo uma janelinha de oportunidade no projecto “Casa Para Todos”, mas infelizmente encaixando as empresas cabo-verdianas de uma forma pouco consistente, o que levou a que muitas dessas empresas piorassem as condições de sobrevivência em que estavam.

 

Qual foi a política das obras públicas nos anos 90?

Nos anos 90, como disse, o Estado assumiu o papel de regulador e fiscalizador do sector e desenvolveu políticas que fizessem esse sector desenvolver. Os recursos eram escassos e isso obrigava, e devia obrigar ainda hoje, a que cada projecto fosse analisado e avaliado em relação à sua viabilidade e impacto económico e social. Nenhum projecto era financiado sem que se tivesse a garantia de que tinha o mínimo de rentabilidade. De facto, as obras que se executaram tiveram esse impacto. A muitos anos de distância, pode-se criticar que o porto foi construído na Boa Vista nos anos 90 é um portinho, que não serve para nada. A questão é que, quando se fez o porto, Boa Vista tinha apenas 3 mil pessoas. A descarga era feita a cerca de cinco milhas da costa, porque o mar é raso. Mas Boa Vista não arrancaria se não tivesse sido construído um porto mínimo. Hoje, depois de o porto ter cumprido os seus objectivos, Boa Vista precisa de um porto diferente. Talvez não da aberração que fizeram por aí, porque já duplicou os custos o que é claramente uma anormalidade. É um sinal que não se estudou conveniente a obra que devia ser feita para ser ajustada e estudada em projecto para que não acontecesse o que se veio a verificar. Lembro-me que foi muito difícil convencer os técnicos do Banco Mundial de que era absolutamente indispensável um mini porto na Boa Vista. Levei os senhores do Banco Mundial e disse-lhe que uma ilha com aquela dimensão necessitava de um porto para se abastecer e poder se desenvolver. Lembro-me de a senhora chefe da missão dizer ‘vou escrever no relatório que a ilha tem menos que três mil pessoas e não se justifica a construção de um porto’. Ao que respondi ‘então está a dizer que Cabo Verde também não se justifica, pelas mesmas razões: pela meia dúzia de pessoas que nós somos, faça-se um bom prédio em Washington, perto do Banco Mundial, transfere-se para lá toda a população e deixamos as ilhas desertas’. Lá abriram uma possibilidade e consegui encaixar o porto. Foi difícil convencer os financiadores, mas o porto conseguiu prestar um grande serviço a Boa Vista. Infelizmente, o mesmo processo que desenvolvemos para a ilha do Maio tinha um objectivo um pouco diferente. No Maio havia a perspectiva de se exportar sal e cimento. Assim, iniciamos numa primeira fase com a construção de um cais para servir a ilha e talvez antes de tempo, ou sem ter assegurado a instalação da fábrica de cimento prevista para a ilha, passou-se para uma segunda fase que é o que existe ainda hoje e que serviria a exportação. Infelizmente nenhum desses projectos foram para frente: não houve cimento, não houve sal e o cais não tem condições para ancorar um barco roll on rol off, porque não foi feito para servir o transporte de passageiros. Devo recordar que em 1992 foi assinado pela primeira vez com o Banco Mundial o programa de infraestruturas e transportes. Pela primeira vez, Cabo Verde dispôs de um programa integrado para financiar as suas infraestrutras de transporte. E o pacote global para todas as ilhas do país era de 80 milhões de dólares. Este montante representa apenas a segunda fase da ampliação do Porto da Praia. Isto para comparar com os recursos que estiveram disponíveis nos anos 2001 em diante até os dias de hoje. Portanto estamos a falar da capacidade de alocar recursos completamente diferente. Por isso, e porque não tínhamos também um grande número de recursos técnicos, preferimos, nos anos 90, concentrar esses recursos num mesmo departamento do Estado para fazer todo o controlo e a supervisão dos projectos, o MIT. Isso facilitou a coordenação e a fiscalização das obras.

 

Qual foi a essência das obras públicas nos anos 90?

Reformulamos a rede de estradas que estava em péssimas condições, fizemos de novo os portos da Boa Vista e Maio, alargamos a rede de escolas e os centros de saúde, os liceus por todo o território nacional e não há dúvida nenhuma que essas obras tiveram grande impacto no desenvolvimento económico e social. A rede de estradas estava em muito péssimas condições: não havia pavimentos e estávamos como no tempo colonial em que a estrada calcetada para ir ao interior terminava no bairro da Vila Nova: o resto era tudo um pandemónio. Em 1991, por exemplo, a ligação de Vila Nova à Achada São Filipe era ainda em terra batida. Portanto, foram criadas infra-estruturas fundamentais para que o desenvolvimento se fizesse, para que as pessoas pudessem movimentar-se e para que o comércio fluísse.

 

Qual foi o impacto das obras de infra-estruturação do país no período 2001/2015?

Em 2001 tínhamos entrado numa nova fase, havia meios e muitas dessas obras terão sido pensadas com o mesmo objectivo: potenciar o desenvolvimento do país. De facto, algumas obras responderam a isso, só que um bom número delas tenha sido feitas de mera fantasia, sem estudos do seu impacto. Vê-se que são obras lindas, algumas faraónicas, mas que não servem para nada. Por exemplo, uma obra para servir o turismo, onde não há turismo, ou onde passa um carrinho de vez em quando e gastou-se milhões a fazer essa obra, parece-me que é de todo indesejável. Uma obra com quatro vias, uma auto-estrada, onde só vejo vacas a pastar. Claro que eu não posso concordar com coisas dessas; uma barragem que não satisfaz o efeito esperado também não serve, ou uma estação de tratamento de águas residuais como a de Santa Maria ou um aterro sanitário como o de Santiago que leva anos para funcionar. Portanto, gastou-se o dinheiro e não se criaram condições para que a sociedade pudesse tirar proveito desses investimentos. Na minha opinião é um péssimo investimento. Ficou a faltar a capacidade de fazer triagem, priorizar e de analisar económica e socialmente quais as vantagens dessa ou daquela opção. Na minha opinião foi o que aconteceu. Pergunto: quantas gerações vão ter que pagar os elefantes brancos que este governo criou?

 

Na sua opinião essas obras só endividaram o país?

Há quem diga que essas obras endividaram o país para além do limite.  Não sou especialista nessa área mas sinto que há muito mais dificuldades económicas. O sector privado está ressentir-se dessa situação muito embora o discurso dos responsáveis seja no sentido de que o motor da economia é o sector privado. Mas como assim, se se está a criar condições para que o sector privado desapareça? A burocracia a funcionar no país é tão grande que não deixa que as empresas se consolidem e desenvolvam. 

 

Como perspectiva o futuro das obras públicas tendo em conta a dívida que o país tem neste momento?

O país não conseguirá avançar se não continuar a desenvolver as suas infra-estruturas. Agora, é preciso que sejam infra-estruturas que tenham retorno económico e social, que sejam construídas no tempo certo e não antes de tempo, que resultem de uma escolha criteriosa entre diferentes opções de investimento, que resolvam de facto e por fim, os problemas do país. E muitos dos projectos já realizados não vão ter retorno, podem-se considerar como investimentos perdidos para o momento em que foram feitos. Porque, repare, todas as obras têm um período de vida útil e precisam de manutenção ao fim de alguns anos e quando se chegar a ter o retorno desejado vai ser preciso reinvestir para poder ter o correspondente retorno.  

 

Por exemplo?

Quando se faz uma barragem e leva-se anos para criar condições para que essa água seja aproveitada convenientemente, estamos a fazer um mau investimento. Por exemplo, faz-se a Circular da Praia que não tem movimento e não vai ter durante muitos anos, ao invés de utilizar esse financiamento para ajudar a capital a infraestruturar-se e a melhorar as vias de ligação entre os bairros, e a investir na rede de saneamento, porque há ainda problemas sérios em qualquer dessas áreas na Praia. É preciso que haja circulação entre os vários bairros da cidade que deixa muito a desejar. Em contrapartida, nós vemos quilómetros e mais quilómetros de alcatrão para as vacas passearem. Acha que eu posso estar satisfeito com uma coisa dessas? Tomemos o programa “Casa Para Todos”. Em princípio é uma coisa formidável, mas hoje não tenho dúvidas que é um programa mal concebido e extremamente mal realizado. Nas casas que eram para ajudar as camadas mais desfavorecidas, só uma pequena parte poderá conseguir aceder a elas. Entretanto os cidadãos que podem comprar, não querem aquelas casas. Como resolver este paradoxo? E contava-se com o financiamento destes, as classes B e C para financiar os da classe A. O que é que vamos fazer com os milhares de casas que vão ficar vazias? Ou que vão ser oferecidas através do sistema de renda resolúvel. Vai-se ter capacidade de gerir mais de 6.000 inquilinos e os seus eventuais incumprimentos? Enfim… parece-me que arranjámos um problema sério e que vai ter consequências muito negativas para o país, para todos nós ou talvez melhor classificada como uma dor de cabeça para todos.

 

A construção civil costuma ser o motor da economia de um país. Em Cabo Verde tem esse efeito multiplicador? O programa Casa Para Todos vai ter esse efeito multiplicador?

Antes pelo contrário, teve um efeito pernicioso, porque vai fazer falir muitas empresas nacionais. Não só as de médio porte, mas também o pequeno operador que ficou sem mercado. Os operadores que vinham construindo uma casinha aqui, outra acolá ficou sem mercado. Da forma como está concebido, o projecto “Casa Para Todos” vai criar sérias dificuldades. Não vai conseguir realizar o retorno do investimento feito; como eu disse, foi criada uma janela para os operadores nacionais, mas dependentes dos operadores estrangeiros que agora vão-se embora, porque não há dinheiro para pagar. Já ouvimos n vezes que o problema vai ficar resolvido dentro de dias. Mas parece que vai durar todo este ano. Já vamos no décimo mês e como é que as empresas pagam o pessoal? Como é que ficam os pequenos operadores que faziam blocos, carregavam areia, transportavam pedras, faziam cofragens e colocavam ferro? Veja só o número de trabalhadores e o número de postos de trabalho que estavam envolvidos no projecto e que estão no desemprego. É que ao mesmo tempo que essas obras pararam, não há outras obras também do Estado. Utilizámos todos os recursos e mais alguns e agora? Quem vai suportar o desemprego?

 

Passando às barragens. O que é que falhou na barragem de Banca Furada? Mas antes disso, o que é que significa Banca Furada?

Furada, em São Nicolau diz-se ‘frod’ o que me faria pressupor, ou pelo menos, devíamos duvidar de alguma coisa. Mas, como disse, parece que padecemos em Cabo Verde de amnésia institucional. Nos primórdios da independência foi construída uma galeria para captar a água de Fajã. Depois de estudos muito bem-feitos por uma equipa francesa que esteve cá durante muitos anos ficou-se a saber que naquela zona da Fajã havia um ribeiro subterrâneo que vinha desaguar na Água dos Anjos que fica junto da Estância de Braz e desaguava numa catarata a cerca de 30 metros do mar. Tinha um caudal significativo e essa galeria foi feita para captar esse ribeiro subterrâneo a montante e não era um ribeiro qualquer. Essa galeria numa primeira fase teria um caudal de 700 a 800 metros cúbicos de água por dia. Nós chegamos na mesma ribeira e achamos que fazemos uma barragem para cima, sem saber o que está furado por baixo, embora o povo já tivesse dito que aquilo é furado. Portanto, essa falta de respeito pela população local, essa falta de respeito pelos estudos rigorosos, essa falta de transmissão de dados… Estou convencido de que o Estado tem elementos suficientes sobre a geologia e hidrologia de toda a localidade de Fajã que mostram que não se devia fazer a barragem nos moldes em que foi feita. Tinha-se que ir ao leito do ribeiro e não à parte de cima do ribeiro. E não tiveram isso em conta.

 

Temos a queda da Ponte de Ribeira na Boa Vista, temos problemas de fissuras nas barragens e outros percalços técnicos. O que está a falhar em algumas obras hidráulicas?

Para mim um dos problemas é estarmos exactamente a precipitarmo-nos a fazer obras de propaganda sem cuidar dum mínimo de estudo indispensável para se fazer uma obra de engenharia. Um investimento não pode avançar enquanto não tivermos um mínimo de estudo sobre o local e a forma como vamos desenvolver o projecto de engenharia. Na minha opinião, um erro que se cometeu, foi dispersar os recursos técnicos nacionais por vários departamentos de Estado. Hoje é uma obra de estrada a cargo de um Instituto [de Estradas], é a construção de um edifício que é um de outro departamento governamental, é uma barragem acompanhada por outro ministério [do Desenvolvimento Rural], “Casa Para Todos”, gerido pela IFH. Ou seja, diferentes entidades a coordenar investimentos públicos de engenharia. Antes era só o ministério das Infra-estruturas que cuidava de todas as obras públicas. Acabamos por dispersar os nossos recursos por vários ministérios e institutos e aí ficamos sem capacidade de dominar todos os projectos que estão em execução. Penso que é exactamente isso o que está a acontecer com esses projectos além da falta de estudo prévio e durante a execução a inexistência de uma gestão apertada. Por exemplo, durante a execução da barragem de Banca Furada era relativamente fácil fazer uns furos e verificar até onde está o leito daquele ribeiro que se sabia que existia. E também teria de se fazer estudos geotécnicos que permitissem caracterizar tecnicamente o solo onde ia ficar a água para não vir se dizer agora que é um solo vulcânico, como se tivéssemos outros em Cabo Verde, e que “deverá” ter bastantes fissuras e ser bastante facturado. É de bradar aos céus… Não se fez os estudos necessários e agora como é que vamos resolver o problema? Não sei.

 

O engenheiro Nilton Correia sugeriu a utilização de geotêxtil.

Parece-me que uma solução dessas é de tal maneira cara que será dificilmente exequível. Não se pode ir para uma solução de engenharia que não seja economicamente viável. Acho que devemos perguntar primeiro porque ela não funciona e saber se é possível arranjar uma solução de engenharia que esteja ainda dentro de um investimento aceitável. Senão vai ficar como uma passagem, porque a barragem tem uma estrada em cima. Agora, fazer uma obra dessas só para fazer trinta metros de estrada é um absurdo. Estou convencido de que mais cedo ou mais tarde ter-se-á de fazer um estudo geológico e hidrológico da zona para se saber a que profundidade está o ribeiro subterrâneo. Quando digo que há um ribeiro subterrâneo quer dizer que há uma zona daquele ribeiro que tem isolamento suficiente. Se estiver a uma profundidade aceitável pode-se bloquear esse ribeiro.

 

Se não for possível teremos um elefante branco.

Já temos outros. Portanto, mais um, menos um, não faz muita diferença.   

 

Mas população de São Nicolau irá ver as suas expectativas defraudadas.

Bom, a população de São Nicolau vai carpir, vai reclamar, mas e depois? Ninguém ouve a população de São Nicolau. São Nicolau é uma ilha que está meio esquecida. Veja, no mesmo vale, um pouco mais acima, na zona de Canto, já tínhamos feito depósitos, um de mil metros cúbicos de água, financiados pelo MCA e que não conseguiram reter nenhuma água. Fizeram-se vários depósitos, mas parece que apenas o último é que conseguiu reter água. Portanto, é esta a situação.

 

Porque é que acha que a culpa tem morrido sempre solteira em termos de responsabilização?

Como eu digo, o problema da desresponsabilização vem de cima. Se os responsáveis do país não assumem a responsabilidade pelo que mandam fazer, os outros acham também que basta deitar areia nos olhos das pessoas que a gente acredita. Agora na questão da barragem de Banca Furada, dizem que há alguns anos que não choveu, por isso é que a água não ficou retida. Quer dizer, isto não lembra ao diabo, como se costuma dizer. Uma justificação dessas é tão peregrina que um técnico devia ter vergonha de fazer uma afirmação dessas. O ministro acha que está bem, que ele não teve culpa nenhuma. O governo idem aspas. Então para quê é que precisamos de políticos se eles não são responsáveis pelas acções que mandam executar?

 

Ao que parece as comissões parlamentares de inquérito não fazem tremer nenhum governante?

As comissões parlamentares transformaram-se numa perda de tempo. Não servem para nada, porque servem para cada partido ficar a defender a sua dama. E como os membros dessas comissões não são técnicos, são políticos, não conseguem para fazer uma análise técnica, ou pelo menos uma análise factual e tendo como objectivo a descoberta da verdade. Quando um governante diz ‘nós já fizemos a nossa parte, a estrada está lá, vocês é que não estão a utilizá-la’. Mas utilizar para quê? O que é que eu faço com a estrada que liga Calhau a Norte Baía das Gatas, o que é que eu faço com a Circular da Praia? A estrada é bonita, mas passa por lá um carro de mês a mês. Quer dizer, é muito dinheiro deitado fora e há falta de responsabilidade dos responsáveis. Aí a sociedade civil precisa começar, de facto, a questionar seriamente aqueles em que votaram para dirigir o país.

 

Qual é o estado actual das empresas de construção civil em Cabo Verde?

Sei que muitas empresas estão a passar por dificuldades a ponto de estarem mesmo em vias de fechar as portas. São detalhes de que não tenho pormenores, mas penso que a Associação de Empreiteiros terá dados muito mais claros sobre isso. Pelo que oiço dos responsáveis dessas empresas, todos dizem que estão muito mal.  

     

O que faz hoje o engenheiro Teófilo Figueiredo?

Eu acho que estou há já muito tempo na reforma. Entrei na reforma há muitos anos, já são tantos que eu me esqueci de que estou reformado. De modo que de vez em quando os mais novos vão-me utilizando como biblioteca falante: como a Empreitel já tem muitos anos, os engenheiros vêm-me perguntar ‘então, a tal coisa, onde é que está?’ Há outros que vêm-me pedir opinião, tenho uma boa relação com os jovens quadros que trabalham nos sectores onde eu estive. De resto leio uns livros e vou pensando em algumas coisas que podiam ser feitas de forma diferente e melhor para Cabo Verde.

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Autoria:António Monteiro,31 out 2015 6:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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