O dia 13 de Janeiro de 1991, instituído como feriado nacional, marca a charneira entre o regime do partido único e o regime democrático e pluralista. Numa viagem no tempo, na cápsula das edições do Voz di povo, viajamos até esse mês, até aos momentos que antecederam e sucederam o dia da primeira eleição multipartidária de Cabo Verde.
O ano de 1991 começou ventoso. Não no sentido literal. É que como já muitas vezes foi repetido, ventos de mudança assolavam todo o mundo, e Cabo Verde não era excepção. A palavra de ordem era Democracia, à qual se juntavam noutras paragens outros termos e movimentos: Perestroika (abertura económica), anti-aparheid…
No arquipélago vivia-se um período rico, vivo, intenso. A História estava a acontecer e, ao contrário do que por vezes acontece, a população estava ciente disso.
A campanha eleitoral, para aquelas que seriam as primeiras eleições livres e multipartidárias estava ao rubro e dominava as conversas sociais. Vivia-se a real esperança de que o futuro seria melhor.
Cabo Verde entrava pois, em muitos aspectos, no novo ano com o pé direito.
O próprio balanço da polícia dava conta de zero crimes (!) na passagem de ano. “Contrariamente ao que se tem verificado todos os fins-de-ano, 1990 terminou num clima de paz e tranquilidade em relação aos anos anteriores, designadamente na cidade da Praia e arredores. Fontes policiais informaram que não houve qualquer detenção tanto mais que não se verificaram roubos, agressões ou desvio de carteiras, também o movimento nas lojas decorreu na ordem”, lia-se no jornal Voz di Povo (VDP).
O Presidente da República recebia o novo ano na Brava, onde se encontrava no âmbito de um périplo por todos os concelhos do país – 13 na altura. Na sua mensagem de Ano Novo, como não podia deixar de ser, fala do “ processo em curso para uma democracia plural”, destacando não só a maturidade política dos cabo-verdianos, como a “pronta criação de mecanismos institucionais e legais que permitam enquadrar as forças políticas emergentes, definindo os parâmetros da convivência pluripartidária”.
“Criadas as condições para que as eleições se processem em clima de tranquilidade de nobreza, apelamos a que os cidadãos exerçam o seu direito de voto, consciente de que num regime de democracia pluripartidária as exigências e as responsabilidades da colectividade impõem uma real participação de todos,” acrescentava.
Antes ainda, a primeira edição do ano do jornal VDP, levava-nos logo até Santo Antão - onde Carlos Veiga, líder do MpD, defendia ter chegado a vez da mudança – e ao Fogo, onde Pedro Pires, secretário-geral do PAICV e Primeiro-ministro, apelava à estabilidade. Já lá vamos…
A vida de todos os dias
Mas nem só bons auspícios trazia o novo ano. Naquela altura, em que a União Europeia “era” ainda Comunidade Económica Europeia (CEE), a URSS agonizava, mas ainda resistia, e países como a Jugoslávia ainda existiam, a actualidade era dominada pelo conflito no Golfo Pérsico. Em Agosto de 90, o Iraque, invadiu o Kuwait. A ONU reagiu e deu um prazo até o início de Janeiro de 1991 para que o Iraque, sob o regime de Saddam Hussein desocupasse o país. No início do ano multiplicam-se as tentativas de resolver a contenda, essencialmente despoletada por razões económicas ligadas à guerra do Irão –Iraque e aos preços do petróleo. O mundo estava em suspenso.
Nem só de política e receio de uma guerra iminente vivia o país. A vida de todos os dias não parava. Iniciativas pontuais dirigidas aos mais pequenos, que se encontravam em férias lectivas, não eram esquecidas. O Centro Cultural Português anunciava, por exemplo uma sessão de cinema para a “criançada em férias.” “As aventuras do Tom e do Jerry – Filme de Desenhos animados com histórias divertidas do Gato malvado e do Rato esperto”, lia-se no anúncio.
Em 91, altura em que Maradona era o melhor jogador do mundo, no desporto, o destaque da primeira edição do VDP de 1991 ia para a IV Volta a Santiago, e a vitória do ciclista angolano Carlos César. No atletismo, noticiava-se que Manuel Moreno conquistara o troféu da prova de São Silvestre. Estes temas marcariam alguns números seguintes.
Naquela altura, viviam-se também os últimos momentos das chamadas milícias populares, organizações para-militares formadas por cidadãos e fortemente criticadas pela oposição.
A edição de 3 de Janeiro dava conta de uma reunião entre o Secretário de Estado das Forças Armadas, Álvaro Dantas, com os representantes das milícias populares. Um encontro que, conforme se lê, “teve como objectivo fundamental incitar a reflexão e suscitar a participação dos milicianos para a nova fase da vida política que se vive no País.”
“O secretário elucidou que não é proibido aos milicianos ser militantes de qualquer partido ou votar no partido que bem entenderem”, e elogiou o “papel dessas milícias no que diz respeito ao bem-estar da população”. Na realidade, à excepção da campanha, nas edições seguintes não se volta a falar destas, hoje impensáveis, “organizações”.
Cabo Verde era na altura, como agora, um país de emigração. E os emigrantes não andavam satisfeitos. Veiga aliás garantia que estes, “graças ao MpD”, passariam a ter representação na Assembleia Nacional Popular e deixariam de “precisar de vistos para entrar e sair do país e podem trazer o que quiserem, ou investir no que bem entenderem”.
Nas ilhas esperava-se, ansiosamente, pelas encomendas – os bidões – que os familiares nos EUA e na Europa mandavam, principalmente nas quadras festivas. Ritual que, em menor ou maior escala, ainda se mantem.
Ainda sobre o que vinha de fora, no comércio, João Baptista Vasconcelos, gerente da Casa Leão (Mindelo) afirmava que o poder de compra das pessoas baixara e, portanto, o ano de 1990 tinha sido “estacionário”. E como 1991 seria um ano de transição, também, previa, não seria “muito bom. “ Depois, as coisas começariam a melhorar, “gradualmente, com a liberalização da importação de certas mercadorias.”
A liberalização, num momento em que, segundo o Secretário de Estado do Comércio e do Turismo, Jorge Spencer Lima, era de 46% da importação era pois um factor esperado pelos comerciantes. Claro, advertia Vasconcelos, que isso teria de vir aliado a mais emprego e aumento de poder de compra.
Os trabalhadores das Frentes de Alta Intensidade de Mão-de-Obra (FAIMO), talvez por ser época de campanha, começaram porém o ano com uma boa notícia: um aumento de 18% nos seus vencimentos. A decisão foi tomada no Conselho de Ministros de 23 de Novembro, que determinou igualmente um aumento para os agentes da Função Pública.
Pelo meio, abriam-se alguns novos espaços comerciais e de lazer. Na Achada de Sto António, por cima do mini-mercado Creoula, abrira o SALÃO DE CHÁ ESNACK-BAR CHARLOTTE de Ivete Silva. “Agora tem um local requintado e aprazível onde ir”, apregoava a publicidade do Salão de Chã [erro de impressão] e Snack-Bar Charlotte.
A SARL – Soc. Imp.Comerc. Equip. de Escritórios, Digitais e Informático que dizia ter ”a melhor relação Preço/Qualidade”, anunciava, entre outros, computadores e impressoras WANG e TOPIS (alguém se lembra destas marcas?).
Os anúncios eram escassos e pouco apelativos, para os padrões de hoje. Muito se andou desde então, mas outras coisas parecem estranhamente actuais.
Problemas de outrora e de agora
Carlos Veiga, dizia, em Santo Antão, que no dia das eleições, “as pessoas vão ter que escolher” entre a “continuação destes 15 anos” ou a “mudança para uma vida melhor”. Poderia ser, perfeitamente, uma tirada de Ulisses Correia e Silva, neste ano de 2016.
A sensação de deja vu, aliás, perpassa o discurso político e atravessa várias questões. E se havia “problemas” de outrora que foram resolvidos, outros mantêm-se e outros ainda parecem ter-se desenvolvido.
A juventude reclamava mais atenção, e vários candidatos a deputados, de ambos os lados políticos, falavam numa aposta necessária desde a formação ao emprego.
Aliás, a falta de emprego, principalmente entre os jovens era uma preocupação constante nas ilhas e era já vista como a questão fundamental para o desenvolvimento económico—social aos mais diferentes níveis.
O teatro e outras artes (embora nesta fase a secção cultural praticamente esteja ausente das edições deste trissemanário) mostravam igualmente problemas que se mantêm actuais. Por exemplo, um texto intitulado “Bom teatro para pouco público”, fala sobre uma pela do grupo Juventude em Marcha que abordava questões como o consumo de drogas e a gravidez precoce.
Este último tema foi também alvo da preocupação do Presidente da República, no seu périplo pelas ilhas. Aristides Pereira por várias vezes se referiu a este fenómeno, que associou em parte a uma degradação dos valores da família. Em São Nicolau, por exemplo, insta a “maior responsabilidade aos rapazes e raparigas para evitar a gravidez precoce” e pede “que constituam família legalmente”.
Por outro lado, apesar dos problemas a nível da educação e formação, a alfabetização mostrava –se um sucesso. Na região de Ribeira Brava, escrevia VDP por altura da visita presidencial, apenas 18 pessoas não tinham sido alfabetizadas.
Ontem, tal como hoje, há ideias sobre o papel do Estado que se mantêm. Relata o VDP, que numa acção de campanha porta-a-porta em São Vicente, o PAICV foi a uma zona em que os moradores abertamente se inclinavam para a Oposição.
“Mas o que é que o PAICV lhes fez de mal?- perguntou o candidato (Manuel Inocêncio, sim, o mesmo que é cabeça de lista este ano), a um morador de Fonte Filipe.
“Não me deu emprego nem casa! – replicou-lhe uma mulher rodeada da filharada”.
Uma breve, de 5 de Janeiro, merece atenção, apesar de mais não ser do que um parágrafo. “Casa de lata tem os dias contados”, falava de sete idosos de Ribeira Bote (São Vicente) que foram transferidos das suas casas de lata para um lar de idosos (financiado pelos parceiros internacionais). “O lar de idosos é mais um passo rumo à eliminação de casas de lata até 1992”, escrevia-se. 2022? Prorroga-se.
Na Praia, a candidata independente pelo MpD Maria Deolinda defendia que as peixeiras precisavam de lotes apropriados e condições mínimas de saneamento para vender.
E Nasolino Silva, candidato do MpD também por Praia – urbano, garantia que da sua agenda faria parte a segurança. “Neste momento penso que há uma crise de autoridade, principalmente nas zonas urbanas” e um “crescimento [urbano] desordenado”. Problemas para as próximas décadas…
O comércio informal era também uma preocupação dos lojistas. Francisco António Soares, gerente da casa Benfica (Mindelo), dizia ao VDP, que “o comércio paralelo tomou grandes proporções. Eu, que faço duas viagens anuais para compras no estrangeiro, assisti na fronteira do Sal, ao pagamento de taxas por excesso de bagagem, no valor de 600 contos, da parte de indivíduos do comércio paralelo. Isso afecta não só as casas comerciais, como a tesouraria pública e as nossas divisas.»
Campanha ao Rubro
Como dizíamos, nos últimos dias do ano, Carlos Veiga deslocara-se a Santo Antão, provavelmente a ilha que pior relação tinha com o regime do partido único.
“Santo Antão sempre foi um espinho encravado na garganta do PAICV”, dizia o candidato a Primeiro-ministro.
Com os acontecimentos do 31 de Agosto de 1981 ainda presentes na memória colectiva dos santantonenses, e registos ainda, dez anos depois, de casos de tortura e repressão, esta delineava-se já como uma ilha “ganha”. (E foi-o, conseguindo mesmo assim surpreender).
Aliás, relata a reportagem que algumas pessoas se abeiraram de Veiga para lhe mostrar sinais dessa repressão. Em Chã de Pedras um homem de nome Guilherme Delgado, 60 anos, mostrou-lhe os pulsos ainda por cicatrizar – resultado de maus tratos que disse ter sofrido na cadeia. “Na cadeia me disseram que Deus defendesse se eu dissesse ao doutor que estive preso dois dias algemado”, disse. “Em Ribeira Janela, outro cidadão, de nome Feliciano disse ter estado preso 48h pela comissão de moradores. Veiga respondeu-lhe que isso em Cabo Verde, “é ilegal, e abuso” e que “falta pouco tempo para acabarmos com isso”, lê-se.
Carlos Veiga, que prometeu a revogação da lei da Reforma Agrária, exaltou que ninguém deve ter medo do futuro porque “nenhum país que adoptou a democracia foi para trás”.
Pedro Pires, por seu lado, visitava o Fogo (um das duas ilhas onde o PAICV venceria), sua terra natal e onde foi recebido de forma entusiástica.
Aí, apelou ao voto pela estabilidade social, pela confiança externa conquista, pela experiência de governação e pela unidade nacional. O VDP relata que Pires falou das contradições da oposição sobre o que foi feito ou não ao longo dos 15 anos de governação. “Segundo ele, a oposição foi obrigada a reconhecer que aquilo que afirmava no início do processo de abertura estava errado”, disse, recordando que de Fevereiro (mês que o governo anunciou o início a referida abertura ao multipartidarismo) até então a oposição teve dois discursos. Um para estrangeiros (em que gabavam a boa política externa) e outra para cabo-verdianos.
“É el qui nu crê” (assim escrito, que o ALUPEC ainda não tinha sido criado) era uma das mensagens que se lia nos cartazes de apoio a Pedro Pires.
Eram estes os dois únicos partidos que se apresentavam às eleições de 91. Mais duas formações políticas eram conhecidas: a UPICV (R ) que, segundo o seu secretário Geral, José Leitão da Graça, não concorria por ainda não estar preparada para tal, nem dava indicação de voto; e a UCID –que reivindicava ter sido a única oposição dos últimos 14 anos, mas que não conseguiu ser legitimada no Supremo Tribunal, entre outras coisas, por falta de elementos essenciais ao processo, como os atestados de residência.
Desmame e aventura
Os discursos que os líderes dos dois partidos proferiram em Santo Antão e no Fogo são basicamente aqueles que ecoaram por toda a campanha.
O PAICV apoiava-se nos anos de experiência e no reconhecimento internacional (mais de 40 países tem cooperação frutífera com Cabo Verde, sublinhava José Brito), e dizia não ser o momento para embarcar em “aventuras”, que poderiam trazer riscos para o país. “Nu ca cré aventura”, foi slogan bem repetido, por exemplo, na visita a Praia Rural II pelo “Partido de Cabral”.
Já o MpD defendia que chegara a vez da mudança, assumia-se como paladino da democracia e liberdade e pedia o ‘desmame’ do país do PAICV. Além disso denunciava os abusos de poder e a repressão, e prometia que a primeira medida governamental seria “acabar definitivamente com a polícia política”.
No VDP, publicavam-se também diversos artigos de opinião. O tema central era, claro, a campanha e emepedistas e paicevistas, geralmente bem alinhados com o discurso da campanha, engajavam-se ora a defender a mudança e mostrar o que de mau o regime único tinha cometido; ora a exortar à “estabilidade”, exaltando o que de bom tinha sido feito.
Também se publicavam algumas opiniões sobre passos importantes a dar no futuro próximo. Por exemplo, José Leitão da Graça, líder da UPICV (R), alertava que a garantia constitucional seria insuficiente para evitar abusos e prepotências contra os cidadãos, e sugeria a instituição do Provedor da Justiça, a exemplo do que se passava em outras latitudes.
O apoio de estrangeiros ao PAICV foi tema de alguns protestos (pois não é aceitável que funcionários estrangeiros se imiscuam nos assuntos internos). Jacinto Santos, porta-voz do MpD adiantara ao VDP que o seu partido pretendia apresentar um protesto oficial, “relativamente às declarações do secretário dos negócios estrangeiros e cooperação de Portugal, Durão Barroso, num dos tempos de antena do PAICV, na televisão”.
Num artigo publicado no VDP também Amílcar Spencer Lopes criticava Almeida Santos, antigo ministro português, que com um tom “paternalista” se imiscuía nos assuntos internos de um Cabo Verde independente. António Almeida Santos havia defendido, também num artigo, que Pedro Pires e Aristides Pereira deveriam continuar à frente do país.
Por meio de textos, respostas e contra-respostas a campanha aproximava-se a largos passos do desfecho: as eleições.
“A pouco menos de três dias das primeiras eleições multipartidárias em Cabo Verde, os dois partidos concorrentes multiplicam os esforços no sentido de convencer os eleitores a votar nas suas listas.”
“O PAICV, através da sua plataforma eleitoral, deu a conhecer aos cidadãos o que propõem realizar caso mereça a preferência do eleitorado. Em relação ao MpD, que não divulgou nenhuma plataforma eleitoral, apresenta-se uma selecção do programa político do Movimento para a Democracia”, lia-se a 10 de Janeiro, quando o VDP publicava um resumo das principais ‘promessas’ de campanha.
Como ironizara já Vadinho Velhinho na sua habitual coluna:“ O PAICV e o MpD estão prometendo tanta coisa ao povo cabo-verdiano que se porventura se unirem até podem prometer um novo povo”.
A caminho das urnas, vale a pena recordar alguns episódios mais controversos. Acusações, troca de insultos (alguns mais velados, outros mais descarados), muita “desinformação”…
Por exemplo, em Santo Antão, denunciava Carlos Veiga - que durante a campanha foi confundido muitas vezes com o seu tio (deliberadamente, ou não, têm o mesmo nome) – casos de cidadãos a serem ameaçados com pistola por dizerem ser do MpD. O PAICV fazia acusações semelhantes.
Um caso que deu que falar - e na base do qual o PAICV terá dito que “os advogados do MpD quiseram vender Cabo Verde a estrangeiros” - foi o do britânico David Grepner.
De forma muito resumida: Anos 60, a empresa sueca Eurosa adquire uma vasta extensão de terra, que vai de Monte Vaca a São Francisco. Com o 25 de Abril de 74, os investidores abandonam Cabo Verde. O Estado passa a administrar os terrenos. Eurosa vai à falência. Um dos sócios, Grepner, comprou o que a empresa tinha em Cabo Verde. Anos depois, o empresário decide construir um hotel. Solicita os serviços de Veiga, advogado, para os trâmites legais. É feito um requerimento nesse sentido. Não há resposta. É publicado no BO um decreto a nacionalizar o terreno. O governo diz ter proposto uma indeminização que não foi aceite. O caso foi parar a instâncias internacionais. Ficaria resolvido depois das eleições de 13 de Janeiro.
O assassinato de Renato Cardoso também ainda era tema. Num artigo intitulado de “Enigma, desinteresse e brincadeira”, o autor identificado apenas por HS, indigna-se com: a maneira como foi conduzido o processo, com o julgamento, e, mais ainda posterior e festejada libertação de Badiu Boxero, principal suspeito. E acusa a oposição de aproveitamento político. “No fundo ninguém quis saber da vítima e da sua memória”
Houve também episódios caricatos, mais leves. No comício em Achada Santo António, Veiga, voltou à questão do desmame. E alguém mais distraído terá gritado, contagiando a plateia, “Abaixo o desmame”.
A comunicação social, por seu lado, foi amiúde criticada, principalmente pelo PAICV, que reclamava de falta de isenção. A TNCV, por exemplo, foi acusada de “favorecer sistematicamente a oposição.” Houve ainda pelo menos um acontecimento, de insultos pessoais: “o jornalista Waldemar Almeida, da RNCV, em exercício profissional”, segundo o comunicado (da AJOC) “foi vítima de insultos por parte dos candidatos Jota-jota, Jorge Pires e Nezy”, entre outros, do PAICV. A AJOC apelava aos dirigentes e militantes bom senso para que os jornalistas possam desempenhar convenientemente o seu trabalho.
O bairro Kwame N’Krumah (aka bairro) esteve também no centro da campanha, pelo menos nos últimos dias. Correu uma moção subscrita por 154 moradores que protestavam contra acções do PAICV no comício aí dado, no dia 5, acusando os militantes deste partido de terem praticado um acto de vandalismo e desrespeito. Alegadamente os paicevistas teriam rasgando cartazes do MpD, com intuito de os sobrepor com os do seu partido. O acto não se teria consumado por intervenção dos simpatizantes da oposição. Criticam também a forte presença da polícia no bairro, dizendo que os moradores foram “evacuados para dar lugar a pessoas que acompanhavam o PAICV.” “A moção adianta ainda que, em resposta a manifestação pacífica de desagrado a polícia de choque carregou sobre os manifestantes e realizou prisões arbitrárias.”
Todas as histórias têm sempre, no mínimo, duas versões. Na edição seguinte, escrevia-se “No fim do comício quando os cidadãos se retiravam ordeiramente choveram pedras vindas sabe se lá de onde.” Havia polícia, era aliás a estreia da polícia anti-motim, vulgo polícia de choque. Horas antes na rádio nacional falava-se de rumores que apontavam para uma possibilidade de incidentes no bairro Kwame N’Krumah.
Durante a madrugada tinha já havido confrontos. Simpatizantes do PAICV colavam cartazes e “foram atacados” por jovens do MpD, noticiava-se nessa edição.
“No palco onde seria feito os discursos [perto Sucupira], o grupo “netinhos da Avó” dava a nota musical ao ambiente que esteve tenso até ao início do comício. Um significativo número de habitantes do bairro concentrava-se numa das esquinas da rua, gritando palavras de ordem anti-PAICV, dirigentes da oposição passavam, distribuíam boletins de propagada e autocolantes.” Ganhavam força os rumores de contramanifestação.
O comício nada traz de novo: acusações de ataques do MpD, de fomentar a desunião e instabilidade, elogios ao trabalho do PAICV que garantiu ao país prestígio no estrangeiro…. Renovação do partido.
O PAICV “ é um corpo social em movimento constante, num aperfeiçoamento constante, num fortalecimento constante”, dizia Pedro Pires.
O comandante respondia às pichagens, perto do local, nomeadamente a uma em que o próprio aparecia associado a uma cruz suástica, dizendo que se estavam a esquecer que ele combatera o fascismo, e apelando ao respeito.
Na semana seguinte, ao fim de quase 40 dias, terminava a campanha. Veiga garante que não irá haver revanchismos. Pires relembra que foi o PAICV que a 19 de Fevereiro de 1990 propôs o multipartidarismo.
Vitória Retumbante
Tudo estava a postos. Ao longo de várias semanas publicaram-se “instruções” didácticas, directas e simples, de como proceder ao voto. Os partidos também tiveram aqui uma função pedagógica (apesar de obviamente sob outros interesses) e o Presidente da República, em todas as suas intervenções, reiterava a importância e responsabilidade do acto.
Não houve incidentes de monta, e tudo correu sob a paz e tranquilidade possíveis e desejadas.
Ao longo da noite de 13 de Janeiro foram surgindo as contagens de votos e a vitória delineou-se muito mais expressiva do que o esperado. Os simpatizantes do MpD começaram a sair para a rua, por volta das 23h, em várias zonas do país, para festejar. Por volta da meia-noite, Veiga assumiu a vitória. Às 2h, Pedro Pires admitia a derrota.
Tanto na Praia como no Mindelo, durante a noite da vitória e no dia seguinte “a nota dominante” era de uma “alegria generalizada”. O povo falara, e estava contente. Uma nova era começava.
Em mensagem à Nação, o Presidente da República, Aristides Pereira, destaca que o 13 de Janeiro marca a passagem de testemunho e pede dignidade às forças politicas envolvidas. Ao povo, envia felicitações pelo civismo e maturidade.
O acto eleitoral, resultado de “10 meses de vida política intensa”, foi também elogiado pelos 13 observadores internacionais que o acompanharam, destacando no seu relatório que o mesmo se desenrolou “num quadro indiscutivelmente democrático” e sublinhando também o clima de tranquilidade e civismo reinantes. A abstenção, segundo a Comissão Eleitoral Nacional, foi menor do que 20%.
Ainda a nível internacional, as eleições mereceram elogios de vários países. Mário Soares, Presidente da República de Portugal, telefonou a Carlos Veiga e a Pedro Pires, congratulando um pela vitória e outro pela aceitação da derrota. O elogio veio também de George Bush que disse que “democracia cabo-verdiana é exemplo para muitos países”.
Houve no entanto problemas referentes aos cadernos eleitorais. Ambos os partidos, e vários cidadãos, reclamaram que mesmo com recibo de recenseamento muitas pessoas não se encontravam nas listas. A CEN retorquiu que os cadernos tinham sido divulgados e que não houvera reclamações no prazo estabelecido.
Os expressivos resultados
Para perceber melhor o que se passou, não basta dizer que o MpD venceu. É preciso frisar que os resultados. Venceu com cerca de 70% dos votos, garantindo 56 deputados na nova assembleia contra 23 do PAICV.
Por si, isto é expressivo, mas há entretanto dados que mereceram um olhar mais aprofundado e que são reflexo do sentimento de algumas ilhas para com o PAICV.
Santo Antão, onde a vitória era esperada, teve um resultado claríssimo: o MpD elegeu 10 deputados. O PAICV, nenhum. Ilhas como Santiago (26 do MpD contra 8 do PAICV) ou São Vicente (10 MpD contra 2) também são expressivos. Aliás, como observa o jornalista José Vicente Lopes (JVL) são as ilhas onde o autoritarismo e arbítrio do sistema mais se fez sentir.
Na sua análise aos resultados, no VDP, o PAICV apenas elegeu mais deputados na Boa vista (2 PAICV vs 0 MpD) e Fogo (5 vs 2), as ilhas de Aristides Pereira e Pedro Pires, respectiva e coincidentemente.
Um outro dado propício a ilações é o caso da Praia. Na capital, o PAICV apenas ganhou na Prainha, Palmarejo e Terra Branca, algo estranho para um partido que dizia ter uma ampla base social.
JVL realça ainda a importância de definir os métodos de relacionamento e a sociedade, num Cabo Verde a ritmo acelerado que “menos de um ano mudou e vai ter de continuar a mudar”.
Sobre o que aconteceria a seguir entre MpD e PAICV, observava o jornalista: “fala-se que não se pode levar o PAICV ao banco dos réus porque muitos dos que estão no MpD poderiam acabar por lá se sentar”.
A demissão
A derrota foi prontamente assumida pelo PAICV, que segundo o seu secretário-geral, teria de “fazer uma reflexão sobre a sua experiência e ver como é que comportará” daí para a frente.
Pedro Pires considerou que o partido pagou por desgaste de 15 anos no poder, e por algumas decisões tomadas como a lei da reforma agrária e da interrupção voluntária da gravidez.
Face aos resultados, o ainda primeiro-ministro alegou que o governo não se sentia com legitimidade, nem tinha condições para continuar a gerir o país, pelo que pedia a sua exoneração.
De parte pôs porém a hipótese do PAICV renunciar à sua participação no parlamento: “seria uma atitude demissionária, ou então seria trair os que votaram no PAICV”, disse.
Rejeitada também estava a hipótese de eleições antecipadas, disse, garantindo que o seu partido iria participar e preocupar-se doravante com a sua reestruturação.
Pedro Pires, criticado pelo “amuo”, apresentou o pedido de demissão do governo no dia seguinte às eleições, mas este manteve funções até dia 25. Veiga, por seu turno, asseverou que se o governo se mantivesse até essa data não haveria vazio legislativo.
A 26 de Janeiro o novo governo foi empossado por Aristides Pereira. Destaca-se, uma redução da estrutura governamental, a escolha de figuras não ligadas ao MpD, assim como um discurso em que competência era palavra de ordem.
Apesar de ser um governo de gestão “pretende ser quase definitivo” sendo que “as soluções transitórias que comporta” serão regulamentadas no governo constitucional a ser empossado pelo Presidente da República deleito a 17 Fevereiro.
Entretanto, no dia 18 de Janeiro arrancara já a campanha para as presidenciais. De um lado o veterano Aristides Pereira, que tentava manter o título, do outro António Mascarenhas Monteiro, apoiado pelo MpD.
Depois dos resultados das legislativas, e como o próprio Mascarenhas reconhecera em reacção aos resultados, este parecia ter a sua caminhada facilitada “porque o povo mostrou claramente que quer mudança”.
Assim foi. Mascarenhas Monteiro venceu as eleições de 17 de Fevereiro.
A campanha entretanto foi assombrada pelo início da guerra do golfo. A 17 de Janeiro começaram os ataques daquela que foi a primeira guerra transmitida em directo pela televisão. A 24 de Fevereiro, a coligação liderada pelos EUA, lançava uma ofensiva, que em cem horas acabou com qualquer possibilidade de reacção do exército de Saddam. A 26 de Fevereiro as tropas de Saddam Hussein saiam do Kuwait, e logo se anunciou o cessar-fogo. Saddam não foi deposto. Seria outro presidente americano, outro George Bush, desta vez o filho, a fazê-lo anos depois.
Em Cabo Verde, o ainda presidente Aristides Pereira, tranquilizava os cabo-verdianos, garantindo que os efeitos da mesma não seriam muito preocupantes.
A 21 de Março, Mascarenhas era empossado. Cabo Verde consagrava-se assim definitivamente o primeiro PALOP a abrir-se ao multipartidarismo (seguido de perto por São Tomé e Príncipe)
E depois…
A 25 de Fevereiro decorre a sessão constitutiva da Primeira Legislação da II República. Amílcar Spencer Lopes é empossado presidente da Assembleia Nacional, sucedendo a Abílio Duarte.
O governo está já a trabalhar. Veiga anuncia, entre várias medidas, a restruturação dos serviços económicos do país. A 14 de Março o MpD celebra o seu primeiro aniversário. Um ano onde os acontecimentos e as mudanças se sucederam a ritmo alucinante.
No início de Abril, o governo constitucional é empossado.
Mas desafio da convivência estava só a começar. Mais tarde, já em Abril, um famoso artigo de opinião de Eugénio Inocêncio, também nas páginas do VDP, intitulado “ Ternura pelo adversário” há-de propor que o PAICV seja “neutralizado” por constituir um perigo para a democracia e perturbar o processo de desenvolvimento de Cabo Verde, através de estratégias análogas às militares.
“As acções de desgaste pelo PAICV, através do enquistamento que mantem no aparelho de Estado, de empresas públicas de instituições cívicas irão, contudo, continuar: a estrutura do PAICV foi concebida para o poder ou como contra-poder, nunca como elemento de um regime democrático.“, diz.
Inocêncio avança inclusive a hipótese de novas eleições antecipadas para que novos partidos entrem e propõe também uma fórmula regimental, em que os outros partidos UCID e UPICV e associações políticas constituídas debatam os pontos de agenda antes da ordem do dia.
A proposta – que se concretizou em várias paragens, onde o partido que suportara a ditadura foi extinto, após a implementação do sistema democrático – não saiu do papel.
Posteriormente a UCID conseguiu assento parlamentar, o PAICV renovou-se e voltou ao poder, hoje há seis partidos, este ano há eleições. E tudo começou com o 13 de Janeiro de 1991 …
Epílogo
Um ano depois, em 1992, o sistema multipartidário é oficializado na Constituição da República.
O MpD voltaria a vencer as eleições legislativas seguintes, e Carlos Veiga é reconduzido primeiro-Ministro. Quase no fim da legislatura, deixa o cargo para poder candidatar-se a Presidente da República. Perde para o seu “arqui-rival” Pedro Pires, e o MpD perde as legislativas para o PAICV, agora “renovado”, actualizado e liderado por José Maria Neves. Ambas as derrotas se repetem em 2006. Em 2009, Carlos Veiga regressa à cena política, depois de um tempo afastado. Em 2011 concorre às legislativas, volta a perder.
Na política em Cabo Verde, parece que nada se perde, tudo se transforma. Depois da derrota de 1991 Pedro Pires afasta-se da política para voltar a defrontar Carlos Veiga em 2001, agora para as Presidenciais. Desta vez venceu (por uns polémicos 12 votos). Cinco anos depois volta a vencer, logo na primeira volta (51%-49%).Em 2011, Pires venceu o Prémio Mo Ibrahim para a Excelência na Liderança, em reconhecimento pelo seu papel em fazer de Cabo Verde “um exemplo de democracia, estabilidade, e prosperidade”.
Aristides Pereira afastou-se da política depois da derrota de 1991. O primeiro presidente de Cabo Verde faleceu em Setembro de 2011. O funeral teve honras de Estado, sendo que as cerimónias fúnebres oficiais ocorreram na capital. Depois, os seus restos mortais foram a enterrar na sua localidade natal, Fundo das Figueiras, como era sua vontade.
António Mascarenhas foi presidente da República de 1991 a 2001, não tendo encontrado adversários nas eleições de 1996. Desde 2001 que se encontra afastado da política, mantendo um papel importante na arena internacional, em fóruns e em diferentes missões, principalmente em África.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 737 de 12 de Janeiro de 2016.