Carlos Reis: É preciso tratar Cabral de forma a não o transformar numa personagem de culto

PorJorge Montezinho,24 jan 2016 6:00

 

20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais, e data que assinala a morte de Amílcar Cabral, há 43 anos. Carlos Reis, investigador e um dos administradores da Fundação Amílcar Cabral, é uma voz contra a insuficiência com que se trata aquele que é considerado o fundador da nacionalidade cabo-verdiana. Nesta entrevista ao Expresso das Ilhas, o antigo combatente e ex-ministro da educação (entre 1975 e 1981), fala do legado, do esquecimento e do aproveitamento da figura de Cabral.

 

Expresso das Ilhas – Quando afirmou que a memória de Cabral está maltratada no país, que não se explica, não se desenvolve e não se aprofunda, o que tentou transmitir?

Carlos Reis – A mensagem da insuficiência, da não distinção entre o essencial e o acessório. A mensagem da necessidade de uma agenda que priorize, de forma clara, o que vale a pena ensinar, vale a pena fazer pedagogia social e eventualmente incluir no discurso político, que precisa de ser mais pedagógico. É essa a mensagem essencial que tentei transmitir.

 

Incluir no discurso político também do PAICV?

Repare, estamos numa casa que nos foi atribuída pelo governo, vamos ser muito claros e frontais. Pessoalmente, sou grato por isso. Mas, sentimos ao mesmo tempo que pode vir um governo diferente e pôr em causa esta decisão e acho que já era altura de se reconhecer que Amílcar Cabral merece mais do que isso. Temos de saber o que se pretende consoante o reconhecimento que se tem, ou não, do grau da importância que se atribui à figura. Não apenas do ponto de vista da história, para não cairmos apenas numa abordagem saudosista. A nossa postura é que vale a pena continuar a insistir em Amílcar Cabral, pelo que representa também em relação ao futuro, aos desafios que Cabo Verde, África e os pequenos países ainda têm. Continuo a defender que encontramos elementos em Amílcar Cabral, e não apenas nos textos escritos, mas em todo o seu percurso, o que ele significa como símbolo, como lição de vida. Sugiro, e recomendo, uma postura de humildade, porque a dele também era, para aprendermos com aquilo que temos, com o que nos rodeia, com os elementos que temos para responder aos desafios que enfrentamos.

 

E acha que é possível transpor as ideias de Cabral – com muita da teoria produzida num contexto de luta – para a realidade?

Não. Acho que não. E nem se trata disso, não proponho que se transponham as ideias de Cabral, longe disso. Penso que é preciso ir ao cerne das questões que se põem e que constituem desafios, ou obstáculos, à marcha dos povos como o nosso para o progresso. A ser dono do seu futuro. Até que ponto Amílcar Cabral, por aquilo que representou no passado, pode ser importante para o futuro? Não o Amílcar Cabral descrito pela PIDE, que muitos autores preferem ir buscar, mas o Amílcar Cabral que conheço e em que acredito, portador de mensagem para o futuro, dos povos, da procura de solidariedade e de justiça social, sem paternalismos, mas responsabilizando, fazendo com que sejam os próprios povos a deixar de ter a postura de mão estendida. Essa é a mensagem e a postura em que acredito. É esse o valor que, penso, poderemos encontrar em Amílcar Cabral. O segredo, se podermos falar desta forma, está em ajudar a criar condições para que o colectivo vá encontrando o caminho. E as soluções vão-se encontrando, caminhando. Em Amílcar Cabral é isso que percebemos e os conceitos que ele trabalha têm a ver com essa necessidade de interligação com a dinâmica social.

 

Mas, para perceber todos esses conceitos é necessário que os textos estejam disponíveis.

Hoje, felizmente, temos muitos mais textos. Conseguimos publicar já a sua correspondência com a organização em Portugal e em Cabo Verde. Conseguimos publicar textos que eram inéditos. Vamos ter, brevemente, mais um tomo de inéditos de Amílcar Cabral. A Iva Cabral [filha mais velha de Amílcar Cabral] que é proprietária da correspondência de Amílcar com a primeira mulher deverá publicar, também brevemente e com o apoio naturalmente entusiasta da fundação, essa correspondência. E o intuito qual é? Fornecer os elementos para deixar que as pessoas, pensando por si e pela própria cabeça, tenham informação pedagógica. Não direi que estamos a cumprir, porque cabe aos outros fazer essa avaliação, mas que estamos a esforçar-nos bastante para tentar cumprir, isso garanto-lhe que estamos.

 

Mas, quando falta esse estudo mais rigoroso da influência de Cabral, isso não se deverá também ao desgaste provocado pelos seguidores? E faço-lhe esta pergunta por uma razão muito simples: as zonas libertadas funcionavam como um protótipo de uma nova forma de poder – mais democracia, mais participação – mas, os dirigentes que aparecem formados nessa experiência não fizeram isso exactamente.

Eu acho que se procurou fazer o que Cabral defendia. Agora, talvez não tenham conseguido fazer tanto como ele faria se continuasse vivo. Naturalmente, essa é uma discussão interminável e é bom que seja feita. Concordo consigo em parte, mas é natural que seja assim. Dizia há tempos Pedro Pires que só era possível aproximar daquilo que Amílcar poderia fazer se todos estivessem juntos. E cada um individualmente, ou parte do grupo, não conseguiria nunca lá chegar. Teriam de chegar todos, os que estavam mais próximos quer do pensamento quer dos planos de luta, porque havia uma situação de guerra e a prova é a forma como ele morre e as sombras que existem à volta do dedo que prime o gatilho e a cabeça que pensa e manda no dedo. Bem, somos todos muito diferentes uns dos outros e Cabral, como ser humano que era, tinha de cometer erros. Mas, a diferença, no meu ponto de vista, é que era um homem capaz de defender com muita firmeza os seus pontos de vista, num determinado momento, mas continuar a reflectir nos argumentos do outro em relação à contestação do ponto de vista dele. E acho que isso é raro. E é exactamente no período mais prolixo da vida dele que é assassinado. Depois da intervenção nas Nações Unidas, na UNESCO, nas universidades americanas, de procurar gente ligada não apenas à esquerda europeia, mas a políticos europeus da época, como Olof Palme [Membro do Partido Social-Democrata, foi primeiro-ministro da Suécia entre 1969 e 1976 e novamente entre 1982 e 1986, ano em que foi assassinado], como o presidente da Finlândia. A importância que ele atribuía do relacionamento da esquerda europeia, sobretudo a esquerda laboral europeia, que mostrava mais compreensão em relação à luta, reflecte-se no seu diálogo com países da NATO a quem diz que países que defenderam tanto a liberdade na sua terra devem compreender também a nossa luta. Não é por acaso que assumia que não tinha militares no PAIGC, eram militantes armados. Dizia que o militante armado do PAIGC era um soldado anónimo das causas das Nações Unidas. Isto não é poesia, porque fazer citações é fácil, era uma singularidade da pessoa, um sentido de compromisso entre o ser e o ter, entre aquilo que diz e aquilo que faz.

 

Bem, mas não conseguiu isso desde o início.

Naturalmente, mas era uma preocupação autêntica na personalidade e na formação dele. E deu provas disso várias vezes.

É curioso que tenha dito que é fácil citar Cabral, mas depois não se aprofunda o que diz. Cabral, por exemplo, pegou no Gramsci [Antonio Gramsci, 1891/1937, filósofo marxista, jornalista, crítico literário e político italiano], que falava do optimismo da vontade contra o pessimismo da realidade, e transformou-o no ‘esperar o melhor, mas estar preparado para o pior’…

(interrompe) Sim, e o pensar pelas próprias cabeças…

 

E acha que numa sociedade tão imediatista como a actual há tempo para parar e pensar, pelas próprias cabeças, e aprofundar o pensamento de Cabral? E o contexto em que surge? ‘Pensar pela própria cabeça’ é escrito e repetido por todo o lado, e o resto?

Pois, nós estamos no resto (risos). Mas, é preciso não deixar que seja um resto indigno. Aí é preciso renovar o diálogo com a sociedade.

 

Por falar em sociedade, para Cabral o factor mais importante para o desenvolvimento era o conhecimento da realidade. Se Cabo Verde não está a ter o desenvolvimento esperado é por causa do desconhecimento dos políticos actuais?

Sabe, eu sou atrevido muitas vezes, mas o meu atrevimento não chega ao ponto de fazer essa afirmação. Porque acho que conhecem essa realidade. Só que é natural que não temos todos de estar de acordo em tudo. É muito mais fácil olhar para os políticos nacionais e criticá-los, porque eles é que são actualmente os responsáveis por aquilo que acontece. Não obstante podermos ouvir discursos e abordagens da realidade cabo-verdiana que por vezes têm pouco a ver com o que acontece, e não me refiro sequer à possibilidade de a pessoa que fala poder errar, refiro-me a outra circunstância, que me entristece, que é quando se fala por uma questão de poder, e não estou também a falar de poder em questão de governo, mas da utilização do debate político e da argumentação, seja qual for a organização política. Penso que o político cabo-verdiano pode errar, mas o que me preocupa é quando a expressão de uma opinião é substituída pela vontade de ganhar o poder, ou de o manter porque já lá está.

 

Essa crítica é para todos, para quem está no poder e quem não está.

E para nós, cidadãos, que por vezes ficamos caladinhos a engolir os que falam mais e acabam por dominar a comunicação social. Mas, penso igualmente que têm acontecido coisas importantíssimas em Cabo Verde. Por exemplo, o que acontece em termos de barragens é uma revolução, quem não reconhece isso não está a olhar para a realidade cabo-verdiana. A verdade é que temos de reconhecer que o cabo-verdiano tem hoje à disposição condições que em nenhum outro período da sua vida conheceu.

 

Também tem custos como nunca teve.

É verdade. Mas, essa já é outra discussão. Pior do que andar para trás é estarmos a fazer uma discussão que não tem razão de ser porque a realidade já não se compadece com o que está a ser discutido. E simultaneamente há erros que andam a ser cometidos e têm de ser postos em cima da mesa. Porque ninguém é perfeito e não há nenhum governo que só consiga fazer coisas perfeitas e sem erros. Mas, os erros são mais difíceis de se apontar porquê? Porque é preciso estudar. É preciso conhecer os dossiers. É isso que eu não sinto que acontece a maior parte das vezes.

 

Mais uma vez, estamos a falar para os dois lados.

Mais uma vez, estamos a falar para os dois lados (risos) e agradeço que tenha chegado a essa conclusão.

 

Cabral sempre foi um grande questionador do seu tempo, acha que seriam essas algumas das questões que poria hoje?

Não sei. Como disse há pouco, o meu atrevimento não chega a esse ponto de querer responder por ele. Respondo por mim, utilizando as ferramentas que estudo, que leio, mas que também ponho em causa e polemizo. E acho que as pessoas devem polemizar vários aspectos do pensamento dele e serem críticos também de Cabral como uma forma de apoiar o que há de essencial no seu pensamento e nas abordagens que faz da vida, das relações sociais, da organização política, das grandes questões africanas, dos problemas do mundo, que ele também era muito virado para o mundo, mas sem ser um internacionalista, porque não era dado a revoluções exportadas. Aliás, ele gostava de utilizar provérbios africanos e a esse respeito dizia: por mais quente que esteja a água da caldeira do teu vizinho não serve para cozer o teu arroz. Isso é válido para as implementações de democracias, para as revoluções, para as grandes mudanças sociais, têm de acontecer nos próprios locais. Hoje fala-se muito do conceito de glocal, o compromisso entre o global e o local. Naturalmente, ele não utiliza esse vocábulo nenhuma vez, mas todo o pensamento dele é o de quem interliga o que acontece localmente com o universal. Não vamos também exagerar, claro, mas há alguns problemas trazidos pela globalização que eram colocados por ele de uma forma que ainda hoje considero correcta. Que é preciso aceitar o que de bom é trazido pela dinâmica social, as novas tecnologias, a investigação científica, ou seja, que acontecem coisas boas para a humanidade, como acontecem outras menos boas. Acontecem até coisas que são boas para determinados países e não para outros, cada país é que tem de fazer essa distinção.

 

É interessante falar nos localismos, porque Cabral considerava que vestir como africano, comer como africano, era não só ridículo como um populismo demagógico.

Ele era muito frontal nesse aspecto. É preciso olhar para isso com frontalidade e esperar que a realidade acabe por chamar as pessoas à atenção (risos).

 

Vamos mais longe, uma frase tão simples como pensar para actuar e actuar para pensar melhor, tem por trás toda a argumentação defendida por Cabral para a ideologia, o papel dos intelectuais africanos, a elite e a pequena burguesia, o movimento de solidariedade. Mas, nunca se vai a esses pormenores. Acha que há o desconhecimento sobre Cabral é maior do que se admite?

Acho que não é desconhecido, mas do meu ponto de vista há uma grande tentação para o manipular. E, naturalmente, que não é por acaso que há alguns que julgam que era preciso destruí-lo. Mas, penso que entre a utilização mais ou menos folclórica da cultura e a utilização igualmente superficial de Cabral podemos encontrar termos de comparação na dinâmica da gestão do poder e das sociedades. É preciso também evitar os cultos de personalidade. É preciso tratar Cabral de forma a não aceitar que se transforme numa personagem de culto.

 

Mas, não acha que hoje há quase esse culto da personalidade? Afinal, Cabral está em t-shirts, em nomes toponímicos, em monumentos, mas não se faz o estudo do seu pensamento.

Não é porque ele não esteja no que consideramos essencial que devemos fazer aquilo que é básico e elementar. O que é preciso, no meu ponto de vista, é convidar a ir para além daquilo que é básico e elementar, ir para além das camisetas, das sumbias, dos nomes toponímicos e atingir a tradução possível da sua obra. Penso que é preciso ter presente Cabral em África. Faz parte dos nomes que devem ficar como referência, que devem merecer estudos, não para serem canonizados, mas no sentido que têm coisas para dar. Importante é que se discuta, distinguindo o essencial do não essencial. Não acredito que a melhor solução seja falar de Cabral apenas nas alturas em que nos aproximamos ou do seu nascimento ou da sua morte.

 

Ou nas campanhas eleitorais.

Ou nas campanhas eleitorais, obrigado, para o bem e para o mal. É nesse sentido que digo que ele é mal tratado. Duas palavras. Apesar de achar que hoje é mais difícil voltarmos aos discursos que se ouviram nos anos 90.

 

Mas, ainda em 2011 foi o próprio José Maria Neves a usar o nome de Cabral para mandar uma mensagem para dentro do PAICV.

Foi apenas infeliz e creio que ele sabe isso.

 

Uma pergunta directa: Cabral é ainda hoje uma referência para o PAICV ou é apenas usado em momentos eleitorais?

Eu penso que sim (pausa). A questão é um pouco mais complexa do que aquilo que pode estar contido num simples sim ou não. À medida que crescemos, quer do ponto de vista nacional, quer institucional, complexificamo-nos e isso traz uma maior dose de heterogeneidade, menos uniformização. Ao dizer que sim, que Cabral é ainda uma referência para o PAICV, quero dizer que o PAICV não consegue ter melhor referência do que Cabral. E o PAICV sabe isso.

 

Falámos há pouco também em referência para África, mas o pós-libertação dos países não correspondeu à liberdade para os povos desses países.

Hoje não se discute a democracia, aceita-se como o menos mau, e revolta-me ver em África essa tentativa, que vejo em alguns políticos africanos, de quererem fazer dos seus países propriedades pessoais. Não são todos os meus camaradas que têm essa opinião, mas acho que já é altura também de se ir dizendo verdades. Apesar de Cabral ser um homem de poder, de achar que uma vez tomada a independência, os estados africanos devem portar-se como movimentos de libertação nacional, a interpretação daquilo que deve ser o movimento de libertação nacional no poder já varia necessariamente. Quero crer que o conceito de transição é extremamente importante, que para mim são as etapas ligadas a uma determinada dinâmica, que num determinado país pode ser de cinco anos, noutro de quinze ou vinte, mas que se aceita com razoabilidade. Mas, essa tentativa de dar uma imagem de político que depois de estar cinco ou dez anos acha que pode apropriar-se do país e estar lá presidente para a vida toda, mexe comigo.

 

Em Cabo Verde esse período foi de 15 anos.

Sim. É verdade. E já foi imenso. É uma discussão que se deveria ter começado a fazer antes. Repare que fomos condicionados por factores que nos ultrapassaram por completo. Cinco anos depois, quando achávamos que poderíamos alterar a Constituição, tendo em conta a conjuntura em relação ao contexto da Guiné-Bissau, que para nós não era um país qualquer. Houve compromissos muito singulares e muito fortes que pediam que a transição fosse mais alargada, mas defendo perfeitamente que poderia ser inferior ao que foi. Mas, quando as pessoas reagiram para ter alternativas, viu-se também como o poder reagiu, a aceitação da vontade da grande maioria.

 

Para terminar, qual é hoje afinal a influência de Cabral e onde se sente?

Creio que na relativa facilidade de aceitar a democracia, mas uma democracia com autenticidade social, com uma componente participativa forte e com essa vontade expressa, direi regularmente, de que estamos melhor, mas não estamos satisfeitos. Acho que Cabral está presente na forma como o poder atende as necessidades do povo. Como o próprio disse, a independência não é só ter ministros, Presidente da República, bandeira, hino nacional, etc., e alguns viverem à sombra desses símbolos. Creio que Cabo Verde não é isso. Não sendo a sociedade dos valores, ainda, mas acredita em si própria e na sua capacidade de poder realizar coisas. Claro que há mudanças a fazer, como a nossa relação com o trabalho, mas o poder político dialoga com o povo e com os seus representantes. E quando se sente que aqueles que, circunstancialmente, são os seus representantes não estão a corresponder, existe espaço para se tomarem medidas, constituindo alternativas.

 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 738 de 19 de Janeiro de 2015.

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Autoria:Jorge Montezinho,24 jan 2016 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  25 jan 2016 8:29

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