Vasco Martins com os músicos: Mário Lúcio Funanight

PorExpresso das Ilhas,2 abr 2017 6:43

Funanight. Quatro ideias chegam após a audição deste álbum: o Funaná da dança e da noite, o Funaná debaixo das estrelas num vale romântico de Santiago. Uma procura estética. Uma espécie de alegria catártica. Mário Lúcio emergiu num mundo algo conceptual, acrescentado com a sua visão transcultural. Um Funaná transcendente que engloba a verdadeira noção da World Music: ritmos da África Continental, do Ska, subtilezas da música cubana… Tudo isso aliado a criação de ambientes, voz a ‘capella’ com imaginativa ascendência polifónica, numa prodigiosa ‘imitação’ da gaita e do ‘baixo’. Sabe-se que Mário Lúcio é um produtor artístico de excelente nível. Mas em Funanight embrenhou-se ainda mais: músicos da África do Sul, músicos de Cabo Verde escolhidos a dedo, arranjos de sopros de Cuba, músicos do Brasil, a magnífica voz de Wanda Baloyi, uma inesperada versão de Who the Cap fit do Bob Marley, ‘riffs’ de guitarra, distorção e wuah wuah de Sori Araújo numa prodigiosa versão ‘rock’ de ‘Nandinha’ onde também convidou (noblesse oblige) o Zeca di nha Reinalda. E uma pincelada do Batuku e da Tabanka. E aqui e ali temas de intervenção humanista. Dá a ideia de uma viagem iniciática, um encontro com as raízes do Funaná e os seus derivados ou reencontros. A ‘peregrinação’ continua: gravações na África do Sul, em Txada Mato na Praia, no Brasil, em Cuba, misturas no famoso Davout studios em Paris, de novo mastering no Brasil. Uma roda-viva. Uma sonoplastia esmerada, cinzelada, escolha judiciosa das faixas, remix de temas que dá a noção de um leitmotiv desenvolvido em variações. Mário Lúcio assume as guitarras em quase todos os temas, num jogo interessante imitativo da gaita quando tocada virtuosamente. A sua voz flui com os seus poemas, ora ‘mandalas’ interiores, ora ‘mandalas exteriores’. Linhas melódicas que já são o seu estilo pessoal. Funanigth é uma autêntica surpresa, algo de novo e fresco no moderno panorama da produção musical de Cabo Verde. Pronto a imergir nas noites que se deseja. Uma verdadeira celebração da vida.

Costumo começar estas entrevistas pelo princípio, isto é: quando vieste à luz neste lado do universo, onde, e a história da primeira infância, já que somos todos ‘marcados’ por ela toda a vida.

Nasci na zona de Monte Iria, uma aldeia à beira da estrada, onde meu pai era o único funcionário público, remador oficial. Os restantes homens eram quase todos pescadores e gente pacífica. Contavam muitas histórias e faziam festas por qualquer motivo. As mulheres pariam. As crianças e os animais davam vida aos dias.

 

A música é inata. Como começaste a incursão na música? Episódios e aprendizagem que te marcaram, movimentos da juventude, estudos.

Havia uma espécie de chamamento, que ainda hoje me povoa. Do outro lado da estrada que passava frente à nossa casinha morava um senhor chamado Lindo (olha só o desígnio). Tinha uma voz de pele curtida e uns pés enormes. Era ajudante de camião. A mulher dele chamava-se Milícia, e tinham a casa pobre mais limpa e airosa que conheci. No centro da casa tinha um encarte com uma publicidade da malta Heineken, que nós não sabíamos o que era. Mas intrigava-me um preto que ali estava de joelhos para o ar e cotovelos para trás e corria e corria e corria. Nunca saiu daquela posição durante toda a minha infância. Lembro-me disso porque milhares de horas passei a olhar para aquele cartão, enquanto esperava que Lindo regressasse do trabalho para ligar o gira-discos. Ele tinha dois discos, Rotcha Nu e outro de Roberto Carlos, creio que chamado Ana. Ouvi-os diariamente até Lindo emigrar com sua família para Lisboa. Mas com o que ele ganhava ele comprou mais discos, creio que só para mim, porque eu ficava imutável durante horas a ouvir. Mais abaixo da nossa casa, um judeu Levy chamado Cacá, emigrante em França, abriu uma mercearia diminuta. Em cima do balcão ele pôs um gira-discos. Morei ali de manhã à noite durante mais de cinco anos, dos meus cinco aos dez. O vendedor era um rapaz plácido e atento chamado Austelino. Ele é hoje pastor nazareno. Guardamos a mesma amizade. Ele punha-me a ouvir Fantasia, de Luís Morais, fez-me escutar Edith Piaf, Brel, Aznavour, Perce Sledge, James Brown, música nordestina e gaúcha. Eu comia e bebia música. Era com Deus que eu falava sempre que um disco girava. E o condão me tocou um dia quando eu vinha do chafariz com uma lata de água à cabeça e vi um senhor com um acordeão (gaita) novinho a tocar. Perdi a noção da realidade por uns segundos. O mais forte que existia em mim decidiu o que seria de mim nesse instante. E assim foi, o resto da história sou eu. O ciclo de chamamento se completou quando, estando eu já a viver no quartel em Tarrafal, distraído a brincar (tinha eu 10 anos) passei à porta da casa de um oficial e vi um violão. Arrebatado, entrei, abracei o instrumento e comecei a explorar. Fiquei o dia todo a tentar compreender a lógica. À noite fui tocar junto com um grupo de recrutas. Aquele violão virou meu sem eu saber de quem era. Corrigiram-me a posição dos dedos e…toca a tocar. 

 

Antes de falarmos da tua vida como músico-criador a solo, tiveste um percurso como elemento de grupos. Tiveste também incursões na produção artística. Falemos sobre isso?

Eu fui padre de baptizado de bonecas. Onde havia colectivo, eu era sempre o escolhido, ou eu me via escolhido por uma mão qualquer, para liderar ou ficar com a responsabilidade de algo. Assim foi que me vi como arranjador, guitarrista e cantor de um grupo de crianças chamado Águia Vermelha. Éramos da Igreja do Nazareno e tínhamos também uma equipa de futebol, em que eu era guarda-redes. Eu era um inspirado músico, mas um frangueiro guarda-redes. Acho que eu jogava só porque conseguia equipamentos para a equipa na tropa. Da Águia Vermelha passei para o grupo Abel Djassi do Tarrafal. Deste passei para o Abel Djassi da Praia, que foi uma autêntica escola de música. Toquei muitos anos em bailes, no interior de Santiago, na Praia e nas ilhas. Depois fundamos o Simentera. Produzi o Nôs Morna, de Ildo Lobo, alguns discos da Teté Alhinho, um da Lena França, da Maria de Sousa, de Charles Marcellesi, e os meus a solo.

 

Ouviu-se dizer que rasgaste o teu diploma de direito de forma simbólica quando fizeste 40 anos ou por aí, para ‘despires uma roupagem’. Se é verdade o que significou esse simbolismo? 

Sim. Eu estudei direito para responder às pessoas bondosas que investiram em mim. Depois do diploma em mão, fiz três promessas ainda à porta da universidade: que passaria a dormir até depois das seis da manhã, porque sempre fui acordado a essa hora, primeiro para ir buscar lenha para a casa, depois para ir para a escola; a outra promessa é que nunca mais voltaria a estudar de matrícula feita; e, por último, que finalmente já podia responder plenamente ao meu chamamento de artista. E para não ter a fraqueza de voltar atrás, rasguei simbolicamente o diploma.

 

Comecemos então pela tua carreira a solo. Qual o primeiro trabalho? Foi auto produção e depois licenciamento? O que veio em seguida?

O meu primeiro disco a solo foi Mar e Luz. Auto-tudo, até auto-tunes. Produzi, toquei, financiei e distribuí e dei. Depois seguiram os discos Ao Vivo e Aos Outros, produção minha também, Badyo e Kreol, co-produções com a Harmonia. 

 

Rompeste com a ‘label’ dos teus últimos trabalhos. A que se deveu isso? És aquilo que se chama ‘músico independente’? O que tens a dizer sobre esta mal compreendida classificação? Se és músico independente, tens que aguentar as consequências não é verdade? 

A ruptura deveu-se a um princípio: Enquanto fui governante a empresa que também co-produziu os meus álbuns teve contratos com o Governo, através da pasta que eu tutelava. Assim, achei por bem que não devia ter nenhuma relação de trabalho com a mesma empresa quando eu saísse do Governo. E comuniquei isso à label em Abril de 2016. Sempre fui um músico independente. As labels foram as que se interessaram pelo meu trabalho. Mas, sempre fiz a minha própria produção. À medida que fui crescendo, aprendendo, compreendendo, ganhei mais confiança para me constituir também como label independente. O meu novo disco já é produzido nessa nova autonomia. Hoje, com as ferramentas da comunicação, com a internet, as consequências são menos do que as vantagens. Já não temos que ser dependentes das estruturas tradicionais, em que o artista é o último beneficiário e dono do seu trabalho.

 

O teu instrumento eleito é o violão; a guitarra eléctrica também; mas fazes incursões na cimbôa, gaita e outros instrumentos. Tens um homestudio profissional. Sendo assim, qual é a tua via na composição? Falo do instrumento base, material do homestudio (se produção ou pré-produção), qual o software base, etc. 

Eu respeito muito o que acontece comigo na criação. Nunca entrei num estúdio para compor. Só uso meu estúdio para registar e guardar as composições que me visitam. Chegam a qualquer hora e sem avisar. Quando não havia telemóveis eu cantava na rua, horas seguidas até ficar a com a música na memória. Agora gravo na hora. As composições vêm já prontinhas, vestidas, guaninas e catitas, com as suas letras e as suas melodias, que não retoco. Para mim é uma espécie de download cósmico. Sou apenas um intermediário, através do qual a beleza se concretiza e torna-se acessível aos outros. 

 

O calcanhar de Aquiles na música pode-se resumir em dois pontos: visibilidade e distribuição, já que a produção pode-se, com algum material profissional fazer hoje em dia milagres, basta pensar no presonus áudio box. Avancemos então nestes dois pontos.

O tempo é outro. Visibilidade hoje está nas nossas mãos. Existem toda a espécie de plataformas e aplicativos e redes para isso. O mesmo acontece com a distribuição, seja digital ou física. Bastam inventividade e sistematização. Tudo está facilitado. Talvez tenhamos que partilhar mais as nossas descobertas, os contactos, os canais, etc.

 

E agora o teu novo álbum: Funananight. Interessante. O Funaná: sei que o dominas, no sentido da aproximação e do ‘savoirfaire’. Mas antes: porquê este título? Pela primeira vez, creio, usas um ‘anglicismo’.

É um disco dedicado ao género funaná, um disco sobre a história do funaná. O género que junto com a reza, ou ladainha, são os mais noturnos da nossa música. Night, Naite, já é uma palavra crioula, apoderada pela nova geração. Sai na night, pessoa de night, night staba sabi, etc..

 

Alguns temas, como na faixa 1, (Tema Di Minis a Cappela) começam com ‘ambiências’ gravadas em Santiago. Será a necessidade de partir de um ponto da ilha e emergir numa viagem pessoal?

Essa ambiência foi gravada em Hong Kong. Estava a minha filha a brincar com outras crianças enquanto esperávamos o teleférico para visitarmos a torre. Brincando às palmas, de repente, senti o ritmo do Funaná. Eu me associei em transe. Nessa altura, no final do vídeo filmado com um telemóvel, eu disse: isto vai entrar no disco Funanight. Anos depois, entrou, com esse conceito que tu dizes, evocando o nascimento do Funaná, no campo, a capella, quando ainda não tínhamos acesso aos instrumentos europeus. Nós os imitávamos, vocalizando. Talvez, dai mesmo a palavra funaná, uma onomatopeia. “Tema de Minis” é uma viagem às origens do Funaná. Por isso o título: “ Onti”. Depois, parto para traçar o percurso até o “Oxi”.

 

Tema ‘Bu Juiz Bu Oredja’. Músicos de África do Sul. Um tema bastante forte, pleno da rítmica ‘zulu’, pelo menos daquilo que conhecemos. A que se deveu esta incursão? 

A música Maskandi, dos Zulus, é o género mais parecido com o Funaná, que eu conheça. Não encontrei ainda nenhuma explicação histórico-científica para tal geminação. Mas basta ouvir. Tenho isso em mim há mais de vinte anos. Fiz a minha primeira incursão na música sul-africana com alguns temas no Simentera, por exemplo, com “Codjeta”, de Kaká Barbosa, em que usamos uns sons guturais, próprios dos Zulus, para realçar o espírito do Funaná. Também no tema “Nha Riqueza”, composição em que imitamos o gorgolejar de alguns animais. Depois, pude fazer um arranjo no disco de Charles Marsellesi, no tema “Kem ki toma na kem/ kem ki dam kel ki mi é”, em que uso o acordeão, a bateria e o baixo propositadamente na toada zulu num funaná. Neste disco, Funanight, aconteceu algo da catadura do mistério. Fui fazer uma conferência em Joanesburgo. Pediram-me se podia fazer um intercâmbio com alguns músicos e acetei. Levei o violão e fiz um tema. Eles disseram-me: “onde é que você aprendeu isso? É guitarra Maskandi. É uma maneira muito tradicional e especial de tocar música zulu”. Eu respondi que aquilo era um motivo do Funaná. Eu continuei e eles entraram a tocar como se conhecessem aquele tema desde o biberão. Isso foi com o tema Funanight. No caso de Bu Juiz Bu Oredja, o tema é um Funamba, um estilo criado por Kaká Barbosa, que pega no funaná-samba e põe-lhe as influências mandingas, que lhe nasceu do seu encontro com os Bembeya Jazz. Contou-mo o próprio Kaká. Então, o que eu fiz foi fazer uma leitura da linha do baixo para esse estilo, e o Kaká adorou, e disse: é isso mesmo. O que eu fiz foi pegar na mão esquerda da gaita e colocar no baixo, fazendo 1-2-3-silêncio, 1-2-silêncio-silêncio, num compasso 4/4. E o bombo faz o mesmo. Pois se não o fizeres, a música decai para o samba. Isso aconteceu quando a Nancy Vieira gravou “Maylen”. Quando fui fazer o coro, notei que a cadência da música não era a da minha composição original. Então, trabalhei com o Nando o desenho do baixo. O Nando foi muito cortês. Depois chamou um verdadeiro baixista e fizeram esse 1-2-3-silêncio, 1-2-silêncio-silêncio. E deu esse funaná lento sambado, mas não samba. 

 

A polifonia vocal: é verdadeiramente notável. Sei do teu talento para a polifonia vocal. Há algum acréscimo de ax (computador etc.)? Em concerto evitas esta polifonia ou pode ser cantada pelos músicos?

A mania dos vocais vem-me dos tempos que cantei no coro universitário. Fiquei com o bicho. Depois encontrei uma incubadora, o Simentera. Não uso computadores, nem nenhum efeito, para as vozes. Gravo todas as vozes, uma a uma, até ao fim, das mais agudas às mais graves, (quando deveria ser o inverso). Ao vivo tenho um pedal harmonizer, para quando tenho pouco tempo de ensaio com a banda. Mas quando disponho de mais tempo, fazemos as vozes live. 

 

Como pretendes fazer o ‘live’? Quantos músicos, instrumentação…

No lançamento vou trabalhar com Jorge Pimpas na bateria, Adão Brito no baixo, Ivan Medina na guitarra, Nhelas na percussão, Totinho e Panota nos sopros, Moisés Évora no acordeão. Todos fazem back vocal e tocam percussão menor. O live é fiel ao CD, diria, até com mais pimenta preta.

 

Talvez no ‘Tema Di Minis Funaná’ há uma espécie de ‘crossover’ entre o funaná e o ska…

Sim, o “Tema de Minis” evolui para o Funaná, mas ainda sem a gaita. Tocou-se assim no séc. XVII aquilo que viria a ser o Funaná. Eram só vozes, tambores da Tabanka, ferrinho, caneca, prato, enxada. Só mais tarde é que apareceu o acordeão nas mãos dos criados, crioulos, escravos domésticos, e dos primeiros homens libertos. A similitude com o ska é a mesma com as várias músicas crioulas. O instrumento que dá essa toada é a caneca, em Cabo Verde, o cencerro, em Cuba, la cloche, na Martinica, Guadalupe e Haiti, the cowbell, na Jamaica. Essa herança vem dos Yorubas.

 

Uma versão de ‘Who The Cap Fit’ de Bob Marley. Algo inesperado. Quais foram as soluções para a versão do texto? A que se deve esta inclusão do reggae num álbum dedicado ao funaná?

Funaná e Reggae têm o mesmo espírito libertário e libertador. Musicalmente, usam as mesmas soluções, a respiração longa, o baixo lânguido, o dub, o canto-lamento. Transbordam sensualidade, o que é uma expressão de conquista da liberdade individual. Há reggaes do ghetto que parecem funanás da periferia. São mais rápidos. Pega, por exemplo, no tema “Kaya man”, de Bob Marley, põe-lhe uma caneca e um ferrinho e verás. A versão desse tema para o crioulo de Cabo Verde baseou-se em duas saídas: a tradução literal e a fonética. Isto é, ao mesmo tempo que traduzo o sentido do verso, uso a palavra com a pronúncia mais próxima possível do som original. Marley começa a música cantando: “Man to man”, o que daria literalmente “Homi pa homi”, ou similar. Eu começo: “Mal cu mal…”, para soar idêntico, sem adulterar o sentido final.

 

Tocas guitarra em todos os temas. Na técnica, nota-se uma espécie de ‘imitação’ da maneira de tocar ‘gaita’. Podes fazer considerações sobre este aspecto?

Sim, fui guitarrista eléctrico durante vários anos no conjunto Abel Djassi. E tocar nos bailes foi a nossa maior escola. Mas essa forma de abordar a guitarra no Funaná tem a ver com o nosso aprendizado. Eu aprendi cedo com músicos de todas as ilhas de Cabo Verde. Reparei que, enquanto nas outras ilhas a base de aprendizagem eram a Morna, em Santiago, aprendíamos a tocar violão com o Funaná. Saber tocar era dominar a cadência do Funaná. Isso exigia exercitar o polegar para o baixo contínuo, e o dedo indicador para as variações, que eram as linhas melódicas bases da toada do Funaná. É um campo abundante. Uma vez dominada a técnica, abre-se um mundo para composições e arranjos. Depois, com a destreza da mão direita, do poder dos cinco dedos, descobrimos imediatamente o ponto F. Torna-se um delírio tocar o Funaná.

 

O tema ‘Nandinha’: um Funaná conhecido. Uma incursão no ‘rock’ (ou inclusão do rock no Funaná): guitarra com distorção, riffs, solo, tema em ‘leitmotiv’. O Zeca de Nha Reinalda como convidado de honra. É um tema forte. Como projectaste esta dinâmica?

Ouvi essa música pela primeira vez em 1985 em casa do Pedro Gregório, o Arquitecto. Fiquei maravilhado. O que me impressionou foi a linha do contracanto, feito então por um sintetizador que imitava uma guitarra fusion. Era retomada depois de cada estrofe, com uma força monumental. Depois há um mote da guitarra eléctrica, que é secundada por todos os instrumentos. A minha leitura foi que essa rapaziada do conjunto Finaçon queria uma ruptura com o óbvio, queria dar um grito, provocar um hiato. Havia ali um Hendrix abafado na intenção do arranjador. E eu disse na hora: um dia vou gravar essa música, para interpretar a mensagem que os rapazes estão a mandar-nos aqui. É próprio do Funaná essa codificação, esse deixar entender que está algo ali, mas não podes acusar ninguém de o ter colocado, porque aparentemente não está. Então, quando a pude gravar, soltei o Ipiranga. Chamei o Soren Araújo e o Patrick Andrade, dois jovens metaleiros pesados, e pedi-lhes que partissem a loiça. Depois, convidei o Zeca de Nha Reinalda, que a gravou em 1985, para fazer o funanáheavymetal connosco. E assim ficou o tema. Séc. XXI, Nandinha no instagram.

 

O álbum é editado pela ‘marémusica’: é uma label independente? 

Marémusica é a minha label. É uma pequena estrutura que eu criei para sistematizar a minha carreira e poder dar-me a liberdade de não depender de terceiros, ou de estruturas do sistema da indústria clássica.

 

Gravaste em vários estúdios em pelo menos 3 países. Mas as misturas foram do Davoutstudios em Paris. Porquê essa escolha? A famosa SSL 9000?

Ah, tu conheces. O meu primeiro encontro contigo, como músico, foi ali. Estavas a gravar “Danças de Câncer”, se não me engano. E o Simentera a gravar “Raiz”. Fui ter contigo e ofereci-te um crucifixo de ouro, hahaha. Lembras-te. Queria muito que fôssemos abnegados. Isso, por si só, abençoa. A SSL 9000 foi uma das razões que me lavaram a Paris. Misturei em analógico. Depois voltei ao Brasil para também masterizar em analógico. Fiquei muito feliz com o resultado. Devo dizer-te que fez toda a diferença. Pois o Funaná tem uma sonoridade quente, argilosa. Era essencial que a sonoplastia reflectisse isso. 

 

Sabe-se que o mercado do disco está periclitante. Hoje em dia grava-se um álbum para ter concertos, é o que se diz. Existem no entanto plataformas na web que parecem ser a solução para os músicos independentes. Como pretendes atuar?

É. Mas um compositor grava um álbum como se escreve um livro. Mais do que a necessidade de vender, ou de actuar, é a justificação de uma existência. A obra é a devolução de tudo quanto recebemos durante a vida. Pagamos para a realizar, com a nossa própria vida, se necessária. Depois vem o corolário natural de toda obra de arte feita com generosidade, a partilha. Então precisamos divulgá-la, enviá-la a outrem. Eu uso as plataformas digitais. Temos uma equipa colaborativa que sabe navegar muito bem na web. Mas também estamos a trabalhar formas criativas de distribuição. Temos que webservar o que se passa no mundo.  

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 800 de 29 de Março de 2017.

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Autoria:Expresso das Ilhas,2 abr 2017 6:43

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  3 abr 2017 9:35

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