Baltasar Lopes: Um Homem para além do seu Tempo

PorExpresso das Ilhas,29 abr 2017 6:00

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O itinerário biográfico de Baltasar Lopes até 1940, feito por Leão Lopes em Baltasar Lopes – Um homem arquipélago na linha de todas as batalhas, é o primeiro do tipo em Cabo Verde e, enquanto tese académica, fora dos cânones. Esta é uma obra de fôlego que retrata ao pormenor o homem complexo que foi Nhô Báltas.

 

Em 1940 Baltasar Lopes está com 33 anos de idade. Quais os factos marcantes da sua vida até então?

O meu livro mergulha até onde pude nesse período. Na infância e na adolescência, creio que o facto de ter nascido em S. Nicolau, uma ilha marcadamente agrícola, fortemente influenciada pelo Seminário-Liceu onde estudou e no seio de uma família tradicional ilustrada, republicana, e bem estruturada, foi determinante na vida de Baltasar. O tempo de estudante em Lisboa onde concluiu o ensino secundário e duas licenciaturas (quase em simultâneo) também lhe foi marcante, sobretudo sob o ponto de vista académico e ideológico. Um contencioso entre o pai e um cónego local a que Baltasar, ainda em Lisboa, reagiu frontalmente em defesa da honra do pai, deixou-lhe outras importantes marcas, perceptíveis na sua obra, em especial na de Osvaldo Alcântara, seu ortónimo, poeta. Sei que a morte da mãe, cerca de quatro anos depois de regressar às ilhas, abalou-o, profundamente. Na poesia de Osvaldo Alcântara é pungente essa perda. Sob o ponto de vista ideológico terá sido o impacto do Estado Novo fascista em Cabo Verde e as restrições de toda a ordem da ditadura da então, em especial de liberdade de expressão com a instituição da Censura Prévia. Cabo Verde atravessava nessa altura uma grave crise social donde decorre a revolta do “Capitão” Ambrósio, na ilha de S. Vicente. Em 1930 Baltasar ainda acreditava no estatuto de adjacência para as ilhas de Cabo Verde, similar aos dos Açores e da Madeira, projecto e reivindicação que vinha desde o tempo do Marquês de Sá da Bandeira, das Guerras Liberais (1832-1834). A ruptura com essa projecção ideológica, de um Cabo Verde adjacente, não-colónia, com soluções legislativas específicas, deu-se ainda antes de 1934, antes da fundação da revista Claridade. Tudo isto terá marcado, profundamente, a vida de Baltasar e é nesse cenário que ele pode ser melhor compreendido enquanto homem e enquanto intelectual.

               

A publicação do Chiquinho, em 1947, o retomar da edição da “Claridade”, também em 1947, e a publicação de O Dialecto do Crioulo de Cabo Verde, em 1957, consagram-no como romancista, contista, poeta, ensaísta e filólogo. Como se deu isso?

Com naturalidade. Creio bem que Baltasar nunca procurou ter um programa explícito e rígido em qualquer dessas suas “extensões”. Fazia as coisas como respirava. A vida central dele era o Liceu, os seus estudantes e a tertúlia com os amigos mais próximos. Ele havia regressado de Portugal depois do exame de Magistério para se efectivar no ensino liceal e de um ano a leccionar no Liceu de Leiria, com o projecto de tese de doutoramento que veio a resultar na publicação de O Dialecto do Crioulo de Cabo Verde. Regressou com novo fôlego e decididamente na “linha de todas as batalhas” que o esperavam nas ilhas. Lajedos, na ilha de Santo Antão, foi o lugar de reencontro consigo e com os problemas da terra. Nesta ilha acompanhou o drama da fome de 47 e interveio. Inventou trabalho para os desafortunados, escreveu a maior parte dos seus belos contos e grande parte da poesia de Osvaldo Alcântara, sofreu com o drama dos contratados para São Tomé a quem dedicou na colectânea Cântico da Manhã Futura, o ciclo de poemas Romanceiro de S. Tomé

 

O último número da revista “Claridade” sai em 1960. Depois disso, e até 1983, com o surgimento do “Ponto & Vírgula”, Baltasar Lopes praticamente não publica. Como explicar esse facto?

A década de 60 foi muito difícil para Baltasar. A de 70 também. No início de 60 Portugal está politicamente tenso com os resultados da Conferência de Bandung (1955) que estimula os processos de autodeterminação dos povos colonizados e concomitantemente o nascimento dos movimentos nacionalistas das colónias portuguesas assinalado pela sublevação do Norte de Angola (1961). Baltasar viu partir para a frente da guerra em Angola o primeiro contingente de jovens mindelenses, seus antigos estudantes, que antes da partida manifestaram-se impotentes mas contra esse recrutamento. Pouco depois do início da guerra de libertação na Guiné e estando o filho mais velho a estudar no Brasil, este resolve juntar-se ao PAIGC, Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde. A PIDE (polícia política recentemente instalado na Praia) controla toda a actividade cívica e profissional de Baltasar e dos amigos com quem priva. É tido como “elemento que doutrina lenta e seguramente os que lhe estão ligados num sentido esquerdista e desnacionalizante”. Desde 1939 que ele já era conhecido da polícia política portuguesa. Foi o primeiro cabo-verdiano com ficha e anátema política de “desafecto à Nação”. Não é só controlado pela PIDE, fora das ilhas e dos territórios portugueses é pela Interpol, a polícia internacional com quem a portuguesa tem cooperação. Baltasar é discreto, apenas a família e um ou outro amigo mais próximo conhece bem alguns aspectos desse período difícil da sua vida. A PIDE julga-o envolvido no movimento de Amílcar Cabral, nas fileiras do PAIGC estão um filho e um sobrinho, toda a sua correspondência inclusive a familiar e periódicos estrangeiros são interceptados, a esposa também é controlada especialmente quando viaja para fora das ilhas, para cuidar da saúde ou visitar o filho no Brasil. Resta-lhe o quê? Como escrever? Como publicar? Baltasar é um homem profundamente amargurado nesse período. Adoece, seriamente. No início dos anos 70 a esperança acena e no dia 1 de Maio de 1974 faz na varanda da Câmara Municipal de S. Vicente o seu primeiro discurso público de inequívoco engajamento com o momento. Um discurso cauteloso, mas de esperança. Ele encontrava-se no meio da multidão quando, em coro, lhe foi pedido para falar. Foi literalmente arrastado para o interior do edifício. Exalta a multidão que o escuta a partir da Pracinha da Igreja a conter euforias e palmas. Exortando-a ao trabalho; em liberdade, para construir, finalmente, o país que sempre quisemos, o nosso país, sem senhores nem outros donos do destino que só a nós passaria a pertencer. Sem atitudes emotivas, recomendou, sem radicalismos ideológicos, sublinhou. Creio que cedo ele se deu conta de uma euforia festiva e de uma empolgação ideologicamente estranha à expectativa de uma boa parte dos cabo-verdianos e que viria sedimentar o regime de partido único. Como escrevo no meu livro, Baltasar nesse período exilou-se politicamente na sua própria ilha, na sua prisão voluntária, na sua utopia cuja construção alimentou, toda a sua vida e que só se realizaria numa solidão do tamanho do mundo. Mas não se exilou, social e intelectualmente. Lia compulsivamente e estudava todos os dias. Em casa recebia amigos e se inteirava dos problemas do país. As poucas vezes que saía de casa seriam para uma ou outra palestra nos Salesianos e para cuidar da saúde em Portugal. Em 1983 renasce publicando no Ponto & Vírgula. Nesta revista publica em quase todos os números a rubrica Varia Quaedam. Uma espécie de testamento resgatando as memórias do pensar estas ilhas, com as mesmas inquietações de sempre.

 

Baltasar Lopes, a 23 de Abril de 1972, no dia em que completava 65 anos, deu a sua última aula, pondo fim à sua vida de docência. Qual o balanço que faz desse percurso?

O próprio Baltasar Lopes fez o balanço nessa memorável aula de Latim a que assistiu o governador Lopes dos Santos que se deslocou expressamente da Praia para entregar a Baltasar a Comenda de Instrução Pública atribuída pelo Presidente da República Portuguesa, Américo Thomaz. Neste acto que foi muito concorrido pela população mindelense que assistiu à sua “última lição”, Baltasar sublinhou que foi fácil o cumprimento de seu dever de professor; que das melhores horas de sua vida foram as que passou com os seus alunos; que o mais alto e exaltante de sua tarefa foi o “adulto sentimento” de estar dando o seu contributo para se formarem homens para servir a sua comunidade. Costumava dizer que tinha um capital de milhares de alunos e todos seus amigos. O escritor Teixeira de Sousa chegou a confessar que em toda a sua vida de estudante, da instrução primária à universidade, Baltasar foi o professor que mais o marcou. Foi professor de Português, Francês, Latim, Grego e História. Sabemos, por outro lado, que enquanto reitor do Liceu Gil Eanes não foi fácil gerir outras sensibilidades que viam nele um “agitador” que privilegiava a defesa dos interesses dos estudantes e se esforçava por uma presença efectiva de cabo-verdianos na direcção da instituição. Em 1962, por exemplo, teve alguns dissabores a propósito de uma manifestação dos estudantes contra o reitor de então, Antero Simões, português, (apelidado pelos mesmos de “Semente de Manga”) e a favor do professor Quirino Spencer que propunham como candidato a reitor. Baltasar foi acusado pela PIDE, de estar por detrás da iniciativa. Ainda como reitor teve um importante papel na dinamização cultural do liceu através de iniciativas que mobilizava toda a cidade do Mindelo, tais como concursos literários, edição de jornais, concertos de música clássica europeia, sem esquecer o seu papel na promoção da Educação Física como importante disciplina curricular. Com o apoio do Sr. Reis, também professor no Liceu Gil Eanes e Regente da Banda Municipal de S. Vicente, chegou a conceber e a propor a criação de um Conservatório de Música que funcionaria nas instalações do mesmo liceu. Também um museu. Creio que seria também ligado à música.

 

O 25 de Abril de 1974 e o processo da Independência Nacional não deixam Baltasar Lopes indiferente, mas depois disso parece haver um certo desencanto e o recolhimento…

Falei atrás do discurso a 1 de maio de 1974, na varanda da Câmara Municipal de S. Vicente. Sabemos bem que Baltasar Lopes e seus companheiros não literatos (como ele os definia) se engajaram, assumiram riscos e se empenharam seriamente no projecto de autonomia política destas ilhas num contexto político administrativo altamente repressivo. E pagaram por isso. Tanto que alguns deles experimentaram o Tarrafal de Chão Bom, tanto no tempo colonial como no do PAIGC logo após 5 de Julho de 1975. Outros exilaram-se nos Estados Unidos e na Europa. Arnaldo França, numa entrevista ao jornal Artiletra revela que quando, em 1946, se foi despedir de Baltasar, seu professor, porque iria fixar-se na Praia, disse-lhe BL, — como que o exortando a uma causa maior —, que um dos objectivos da vida de todos os cabo-verdianos deveria ser a defesa da autonomia de Cabo Verde. Esse processo já estava em curso e todos sabemos. A PIDE, também sabia. Tanto que nos seus relatórios esses propósitos claramente expressos por Baltasar em tertúlias privadas captados pelos informadores dessa polícia política foram registados. Encontram-se nos arquivos da Torre do Tombo em Lisboa para quem quiser confirmar. Houve sim desencanto. Um profundo desencanto com o processo da independência. Com os caminhos que a ideologia de partido único estava impondo, contra-natura e asfixiante sob o ponto de vista social e cultural. Nunca falei disso com ele, mas estou convicto dessa nova amargura na vida dele. Ele que tanto se empenhou no seu Cântico da Manhã Futura, num outro processo para a desejada independência, política, administrativa, económica. É verdade que o processo da Independência Nacional não deixou Baltasar indiferente, tanto que aceitou participar na constituição do Conselho Nacional de Justiça, actual Supremo Tribunal da Justiça, com Caldeira Marques e Manecas Duarte, se não estou em erro. Uma carta de desvinculação dirigida a Caldeira Marques dá-nos conta da sua desilusão face aos caminhos porque a justiça e a esperada liberdade estavam a tomar. Baltasar tentou o exílio de novo, mas agora em Portugal. Não aguentou, a sua gente e as suas ilhas eram maiores que tudo o que uma pacata vida de intelectual e de professor jubilado em Lisboa lhe oferecia.

 

O Simpósio sobre a Cultura e a Literatura Cabo-verdianas, comemorativo do cinquentenário da fundação da revista de artes e letras Claridade, foi uma forma de o PAIGC/CV e o Governo de Cabo Verde se reconciliarem com Baltasar Lopes e a sua geração?

A iniciativa, sabe-se, foi de Aristides Pereira que nutria grande respeito e admiração por Baltasar, assim como Amílcar Cabral. Um dia alguém revelará esses meandros da nossa micro-história ainda por contar. O empenho do então ministro do Desenvolvimento Rural, João Pereira Silva, foi determinante para o sucesso dessa chamada reconciliação. Eu não lhe chamaria assim. Foi na verdade um acto político de grande impacto tanto no país como na comunidade académica e intelectual internacional. Mário Pinto de Andrade que os havia excluído na primeira edição de sua antologia de Poesia Negra Africana (1955) também marcou presença. Deduzo que ele terá tido alguma mão no estímulo a essa iniciativa política. Ovídio Martins é que não terá gostado da ideia. Nunca perdoou a Baltasar (nem a mim por o ter publicado no Ponto & Vírgula), a nota Pasárgada e Caldo de Peixe onde o poeta reage pela primeira vez ao epíteto de evasionista atribuído à geração dos claridosos pela geração de sessenta.

 

Baltasar Lopes, hoje. Qual o seu legado?

Imenso. Ele mergulhou com profundidade em tudo o que dizia respeito à afirmação identitária destas ilhas. Muito da sua produção intelectual está ainda por estudar e compreender, especialmente no plano ideológico e político, bem como no de Direito, tanto como juiz, como advogado. No que eu pude estudar nessas “extensões” do escritor, poeta, cientista, indiquei algumas pistas que abrem caminho para continuar o trabalho que realizei à volta do “homem arquipélago” que foi Baltasar Lopes da Silva. No campo da advocacia, por exemplo, alguns dos processos de defesa em casos de grande complexidade social e política são fonte de excepcional riqueza para o estudo da história da Justiça em Cabo Verde. O seu legado científico no domínio da linguística mereceria ser melhor estudado e continuado. Baltasar deixou-nos outras pistas para continuar o estudo e o aprofundamento da cultura e da civilização cabo-verdiana, noutros domínios: na música, na tradição oral, na antropologia, na sociologia, na etnologia... 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 804 de 26 de Abril de 2017.

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Autoria:Expresso das Ilhas,29 abr 2017 6:00

Editado porSara Almeida  em  30 abr 2017 10:44

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