Vasco Martins com os músicos: António Aurélio Gonçalves e a Morna

PorExpresso das Ilhas,2 jul 2017 6:05

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Além de escritor maior e ensaísta, António Aurélio Gonçalves (1901-1984) era um melómano e interessava-se pela Morna. Em Paris, durante os dias que lá esteve em 1981, tive várias conversas com ele sobre a Morna, conversas essas que constituíram a base para o traçar da história da Morna, que alguns anos mais tarde vim a publicar. Embora António Aurélio não fosse músico e não usasse uma linguagem musical técnica, tinha a perceção do folclorista, do literato: intuitiva, observadora, crítica. Devido à sua vasta cultura, o que memorizou é uma fonte importante de estudo. O estudioso português João Freire, que desde cedo se interessou pela música cabo-verdiana e fez muito por ela (preciosa recolha musical na ilha de Nicolau, promotor da música de Travadinha, Cesária, Luís Rendall, Tututa…), fez a António Aurélio uma essencial e preciosa entrevista sobre a Morna e a Coladeira, no dia 24 de Novembro de 1979, na cidade do Mindelo. Transcrevo esta entrevista (a parte da Morna). Começa por uma pergunta generalista de João Freire. O resto flui na voz de António Aurélio Gonçalves.

 

António Aurélio Gonçalves: Quanto à música cabo-verdiana julgo que ela continua a despertar algum interesse. Ela já não é aquela música característica que existiu até recentemente. Todavia ainda conserva alguma coisa da cabo-verdianidade ou do caboverdianismo. Como música cabo-verdiana, pelo menos em Barlavento (é indispensável que se procure conhecer a música de Sotavento que parece ser variada mas que eu não conheço. Será um domínio que merece ser explorado também), o que se conhece é a Morna e a Coladeira. A música cabo-verdiana sobre a qual posso dizer alguma coisa é a Morna e a Coladeira. Mas há a Brava, uma das ilhas criadoras da morna, pelo menos recentemente, mas no Fogo e em Santiago há uma música que é diferente da Morna. Mas a música cabo-verdiana da qual posso dizer alguma coisa, é a Morna e a Coladeira.
A Morna em tempos antigos tinha um carácter diferente. Esse carácter era conhecido pelo seu traço mais visível: uma música lenta, sentimental e que parecia ter sido criada para ser dançada. Efetivamente a Morna era a música que se tocava em quase todos os bailes, mas atualmente os gostos variaram para um tipo de dança mais animado e pouco se toca quer a Morna quer a Coladeira nos bailes. Agora, canta-se sempre a Morna e a Coladeira e apareceu uma personalidade nova no domínio da música cabo-verdiana: o cantor. Porque primitivamente o homem cabo-verdiano julgava-se um bocadinho…’desdourado’ se por acaso cantasse. A cantiga, a música, era somente enfim para as mulheres. Existiam as cantadeiras, as compositoras, e a elas é que estava entregue o domínio da música. Essa música é interessante e valeria a pena registarem-se as mornas antigas. Têm uma origem que muita gente não conhece.
Se nós repararmos, as mornas antigas, vemos que estas foram compostas por inspiração motivada por qualquer individualidade fosse do povo ou fosse enfim das classes mais elevadas, contando que se tornassem populares por qualquer motivo. (As mornas dedicadas a) Augusto Ferro, Nho Godja, Nho Cansod, João Leça, etc., são exemplos para se ver que o ponto de partida era celebrar uma individualidade, como já disse. Além disto, há a notar o seguinte: esta música cabo-verdiana é uma música muito bem composta. A pessoa que conheça estas mornas que vêm até depois de B.Léza, enfim até aos tempos atuais, repara que a construção da Morna era muito bem-feita.
A Morna era fundamentalmente o canto e o contracanto. Há uma primeira parte que se chamava ‘a primeira parte’. E havia a ‘segunda parte’. E esta segunda parte era um contracanto da primeira. Mas uma das características desta Morna é de uma música culta apesar da sua origem popular. E além disso a validar os sentimentos que ela (a Morna) procurava exprimir.
Tem-se afirmado que a Morna simplesmente exprimia o fatalismo, a sentimentalidade, enfim, o sentimento da infelicidade, da desgraça, da saudade. Mas isto é falso. Havia a Morna satírica. Não somente a Coladeira que mais ou menos foi sempre de feição satírica, mas também havia a Morna alegre, satírica: qualquer acontecimento do povo, principalmente de carácter amoroso, despertava a veia musical das cantadeiras. Por exemplo: nasceu uma criança cujo pai era desconhecido e a cantadeira põe-se a imaginar os possíveis pais. Se a criança tinha nascido assim era filha de tal, se tinha nascido assado era filha de tal, etc.
Aliás, numa conferência que eu fiz em tempos sobre a Morna, eu pus em foco aquilo que me pareceu ser a origem da Morna: a música portuguesa e a música brasileira, dado que em determinadas épocas S. Vicente era muito visitada, em tempos antigos, por navios brasileiros que vinham tomar o sal e que deixaram a morna na Boa Vista. Porque me parece que a Boa Vista é o ponto de partida mais antigo da Morna. O contacto com o Brasil teria influenciado a Morna. Mas certas mornas são autênticas canções portuguesas do norte de Portugal. Suponhamos uma morna:
Esta é uma canção qualquer que não parece uma canção africana, que não tem origens africanas, embora muitos tenham querido dar à Morna uma origem fundamentalmente africana. Isto em Sotavento é natural, mas em Barlavento não se deu. Aliás há um trabalho sobre a Morna que é o prefácio escrito por Eugénio Tavares às suas canções que são lindíssimas e que valeria a pena serem já gravadas antes que sejam completamente esquecidas. Essas canções de Eugénio Tavares são canções, que tanto pela letra como pela música, deviam ser fixadas.
E falo agora da letra da Morna. Esta é que é a parte fraca da Morna genuinamente cabo-verdiana mindelense ou boavistense: a letra é paupérrima. É sempre a mesma coisa. E talvez seja esta letra paupérrima, muitas vezes satírica, muitas vezes que procura o lirismo, é que terá concorrido para atribuir à Morna as características que têm sido falsamente atribuídas. Um exemplo desta letra é o exemplo da música bastante conhecida ‘Mar d’Canal’: ’Mar d’canal é carambolento, carambolam nha casament’…E esta letra pobre era sempre repetida. Na Boa Vista por exemplo há uma Morna característica. Diz o Eugénio Tavares e com justeza: ’é uma Morna ‘psicatada’:
‘Ti Jon é protestante, Ti Jon ka sabe baidja’ e repetia-se incansavelmente.
Lembro-me de uma Morna transportada de S.Vicente para S.Nicolau e aplicada lá a um caso Sanicolense. Este caso era o seguinte: um homem estava para se casar com a noiva que estava em S.Vicente e já se tratava dos papéis, já estava quase tudo pronto para que se celebrasse o casamento. Mas entretanto chega a S.Nicolau uma emigrante cabo-verdiana que ao que parece era atraente e que se hospedou em casa de um senhor que ficava nos arredores da Vila da Ribeira Brava. O homem lembra-se nas vésperas do casamento de se apaixonar pela emigrante e começar a frequentar a casa do hospedeiro. E imediatamente aplica-se a este caso a Morna que tinha chegado a S.Vicente, porque nas outras ilhas esperava-se ansiosamente que aparecessem mornas novas. O sítio em que morava esta emigrante chamava-se Rabateira. Então aplicaram à Morna as seguintes palavras que ela não tinha em S.Vicente claro: ‘oh ta ba pa Rabatera, oh um ta ba tchora sodade’. Portanto estas eram as letras, que eram, como já disse, muito pobres.
Mas ela enriquece-se depois de Eugénio Tavares. É um exemplo. Eugénio Tavares é um poeta verdadeiro. As letras das suas canções são muito bonitas e apareceu o B.Léza que é, enfim, o imitador do Eugénio quanto à letra.
(…)
Há também que celebrar as pobres mulheres do povo que compuseram mornas e as entoaram em pic-nics, em bailes. Porque nos bailes havia isto que já não existe atualmente: em determinada altura havia sempre as mulheres que cantavam em coro batendo palmas acompanhando o ritmo da Morna e que animavam muito. E o canto das mulheres era animado com referências aos pares que dançavam, principalmente aos casados, aos namorados. Enfim piadas engraçadas, amigas. Era um coro numeroso. Havia aquela que cantava a solo e depois o coro fazia o ‘baxom’. Creio que é um termo musical, o baixão. Depois ela voltava a cantar e o coro repetia a mesma coisa. Sem ensaio! Não havia ensaio. Se houvesse ensaio enfim, seria mais bonito. Mas assim era mais espontâneo. A mais célebre de todas as cantadeiras era uma boa-vistense ou natural da ilha do Sal, mas que viveu quase a sua vida inteira em S.Vicente. Ela tinha um nome curioso: Salibana. Mas havia as cantadeiras mindelenses. Uma delas, lembro-me do nome: Jona Maninha.
Falei uma vez com o instrumentista Luís Rendall que é um bom tocador de violão a fim de ver se nós poderíamos registar essas mornas que eu conheço, que julgo que somente eu é que as conheço, e que são bonitas, muito bonitas e que têm muitas vezes um carácter absolutamente estranho, civilizado e que causam surpresas justamente por causa deste carácter de composição culta.
(…)
A primeira destas mornas foi inspirada e tem por título o nome da pessoa que serviu de inspiração: era um homem muito popular ao tempo, chamava-se ele Armando Abelha. Esta Morna teria sido composta aqui para 1904/1905, pouco mais ou menos. A outra foi composta aqui para 1912/1913.
Um exemplo de letra interessante de um cantor ou compositor de mornas desconhecido, é o seguinte: a letra foca um determinado drama amoroso. Um homem vive amantizado com uma mulher. Mas em determinada altura esta mulher quer fugir-lhe. Ele procura retê-la. Todavia a mulher obstina-se em abandonar a sua casa. E ele então compõe uma morna com a seguinte letra:
Bo vive sempre iludida
Ba bo camin sossega bo vida
Ma bo ta dzeme primer
Qual é motivo ou razão
Pa que queassim bo ta tormentame

Este homem sente-se intrigado perante a atitude da mulher. E ele compreendeu que esta mulher viveu sempre fora da realidade:
‘Bo vive sempre na ilusão
Ba bô camim’ (…)
Isto é, já que assim és, já que te obstinas, nesta ilusão, vais encontrar com certeza deceções. No entanto, desejo que tu vivas em paz, mas antes que partas eu gostaria que tu me explicasses qual é o motivo, a razão por que tomas esta resolução de abandonar-me.

E a música da morna é a seguinte:

Bô vivê sempre iludida
Ba bo caminho
Sossega bo vida

Ma bo ta dzeme primer
Qual é motivo ou razão
Pa que que assim que bo ta tormentame

Enfim, de vez em quando aparecem letras que denotam a garra de um poeta popular. Mas isso é raro. (…)

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 813 de 28 de Junho de 2017.

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Autoria:Expresso das Ilhas,2 jul 2017 6:05

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  28 mar 2018 18:13

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