Depois de 07 anos de luta pela visibilidade da comunidade e pela não discriminação das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéneros a Associação LGBT de Cabo Verde aproveitou as comemorações no âmbito do Dia do Orgulho Gay e marcou posição: querem o direito à união de facto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo reconhecido na lei. A JpD e a JPAI reúnem-se nos próximos tempos com a Associação. Será chegada a hora do debate que faltava?
A Alemanha aprovou no passado dia 30 o casamento entre pessoas do mesmo sexo, juntando-se assim a países como Portugal, Espanha, França, Holanda, Bélgica. Até então, e desde 2001, era reconhecido legalmente a união estável entre casais homoafectivos. Era o partido da actual chanceler, Angela Merkel, que travava a chegada do assunto casamento ao parlamento alemão. Com eleições a aproximarem-se Merkel deixou escapar, no início da semana passada, que mudara a sua posição pessoal: era até então manifestamente contra, por o casamento tornar possível a adopção por casais homoafectivos. Com a sua declaração, o tópico reentrou imediatamente na agenda parlamentar. Dias depois, o casamento gay era aprovado.
Cabo Verde, Junho de 2017. Pelo segundo ano consecutivo, as ruas do Plateau foram alegradas com as cores do arco-íris da bandeira LGBT. É a Parada do Orgulho LGBT e dezenas de apoiantes, entre membros da comunidade Gay, activistas e simpatizantes da causa desfilam no centro da capital para manifestar o seu direito à liberdade e apelar à tolerância e à não discriminação. Entre os participantes da Parada, representantes do Ministério da Educação, da Família e da Inclusão Social, da Câmara Municipal da Praia, do ICIEG e da ONU Mulheres.
“ Estamos satisfeitos por termos tido a presença das autoridades, representantes tanto do Ministério como da Câmara da Praia, o que mostra que as coisas estão sim a mudar, a evoluir”, constata Anita (Anilton Cruz), presidente da Associação organizadora da marcha.
Criada em São Vicente em 2010, a Associação LGBT de Cabo Verde trabalhou durante anos naquela ilha, a primeira do país a ter uma comunidade homossexual unida e activamente engajada na luta pela não discriminação e que em 2013 realizou a primeira Parada Gay Pride no país (sendo Cabo Verde o segundo país africano, depois da Africa do Sul, a realizar uma Gay Pride Parade).
Nos últimos dois anos o foco principal da actuação da Associação transferiu-se de Mindelo para a Cidade da Praia, onde a percepção é de que os níveis de intolerância são maiores. Aqui, no ano passado realizou-se pela primeira vez o desfile que marca, em todo o mundo, o dia da consciencialização e sensibilização para a tolerância, a não discriminação e a não-violência contra pessoas homossexuais, bissexuais e transgénero.
Foi durante a conferência de imprensa a anunciar as actividades que iriam marcar a da data internacionalmente celebrada que a presidente da Associação LGBT de Cabo Verde trouxe para a arena pública a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Na ocasião, Anita deixou o apelo aos governantes no sentido de uma revisão da lei por forma a incluir no que toca aos direitos humanos também afectos à comunidade LGBT o direito à união de facto e ao casamento.
“ Sim, vamos levar esta luta adiante. Queremos ver isso como um direito constitucional, um direito consagrado na lei. Vamos avançar para a recolha de assinaturas até ter as necessárias para fazer chegar uma petição à Assembleia Nacional”, avançou a activista ao Expresso das Ilhas.
Um passo adiante naquilo que tem sido as bandeiras da luta, bandeiras estas assumidas pelos parceiros que a Associação e a Comunidade LGBT foram angariando ao longo dos anos e que até aqui têm colocado a tónica na questão da tolerância e não discriminação.
Será chegado o momento desta mudança ocorrer? Para já, a simples manifestação da presidente da Associação LGBT de Cabo Verde já rendeu alguns comentários desfavoráveis no Facebook, mas também muitas manifestações favoráveis.
Entretanto, é preciso ver que pretender o direito ao casamento civil e à união de facto legalmente reconhecidas não se reduz a uma questão de “romantismo” ou de “imitar o que se faz lá fora“ [como apontado em alguns comentários de cariz homofóbico na rede social]. Há aspectos concretos, vantagens e direitos que são concedidos aos cidadãos quando unidos por um contracto de casamento ou uma união de facto reconhecida por lei; desde um regime de bens à herança, facilidade na adopção, vantagens no pagamento de impostos e nas condições de crédito bancário.
Partidos posicionam-se com cautela
A Organização das Nações Unidas e o Instituto Cabo-Verdiano para a Igualdade e Equidade de Género são duas das instituições que vêm trabalhando em prol dos direitos das pessoas LBGT. No caso do ICIEG há já alguns anos que desenvolve acções de formação junto de elementos da comunidade, entre outras iniciativas. Já a ONU lançou em Cabo Verde, em 2015, a campanha Livres & Iguais que tem a cantora Mayra Andrade como embaixadora e que conseguiu este ano fazer passar durante o Kriol Jazz Festival Praia e na Televisão Pública vídeos de apelo à não discriminação e à tolerância, chegando a milhares de pessoas.
Samory Araújo, coordenador da campanha das Nações Unidas, explica que o que esta ainda trabalha é a questão da sensibilização para não discriminação de pessoas LGBT, a defesa dos direitos humanos e virada para a inclusão.
“Sobretudo criar nas pessoas a consciência de tratar os gays, lésbicas, bissexuais e transexuais com o respeito que merecem”.
E, trabalhando muito de perto com a comunidade, constata que até aqui as suas principais preocupações prendiam-se justamente com aspectos resultantes da intolerância, como o atendimento discriminatório nos serviços e o acesso ao emprego.
“Sentem que ser gay é um obstáculo mais na difícil luta para conseguir emprego, por exemplo”, explica o activista da ONU.
O mau atendimento na polícia, quando ali se dirigem para prestar alguma queixa, e também nos serviços de saúde, é visto como algo a ser combatido com urgência e a campanha Livres & Iguais quer ter uma palavra a dizer nessa batalha.
Assim, a campanha não tem por agora foco na defesa, em concreto, do direito ao casamento ou á adopção e sim na mudança de mentalidades e de atitudes que possam naturalmente conduzir a sociedade a um momento em que a questão LGBT já não seja uma questão, ou seja “trilhar um caminho até chegar naturalmente nas mudanças das leis”.
Uma mudança na legislação cabo-verdiana por forma a reconhecer o casamento e a união de facto entre pessoas do mesmo sexo implica incluir o assunto na agenda dos partidos políticos. Até aqui nenhum partido se atreveu a levar o assunto ao Parlamento, também porque nem mesmo a comunidade LGBT levantara clara e firmemente esta bandeira e fizera qualquer reivindicação concreta nesse sentido.
A defesa dos direitos humanos, da liberdade e da não discriminação aparece nas moções estratégicas dos partidos maiores. Entretanto, tanto o MpD como o PAICV parecem delegar às suas alas jovens um papel mais “activo” no referente a esta pauta.
Tanto a JpD como a JPAI vincam que a causa dos direitos LGBT faz parte da sua agenda, mas esclarecem que ambas as organizações, na linha dos partidos a que pertencem, não têm posição oficial assumida sobre a questão específica do casamento ou da adopção por parte de pessoas do mesmo sexo.
“Nós defendemos a igualdade de direitos e a não discriminação. Mas não podemos ainda nos posicionar sobre esta questão em concreto porque primeiro temos que ouvir as associações, a comunidade”, explica Fidel de Pina, presidente da JPAI, que na altura da nossa conversa estava em contactos para confirmar para esta semana um encontro com representantes da Associação LGBT de Cabo Verde.
Também Euclides Silva, presidente da JpD, diz que a jota do MpD tinha a pauta LGBT em foco desde que a sua plataforma foi a votos, estando incluída na moção estratégica da organização. E também neste caso o encontro com organizações de luta pela igualdade de direitos para pessoas LGBT está na agenda dos próximos tempos, para “estudarmos o que pode ser feito”.
Entretanto, vinca que é preciso “primeiro debater” o assunto antes de abrir caminho para mudanças na legislação.
O mais tolerante em África
Cabo Verde é o país africano mais tolerante a homossexuais, segundo estudo do Afrobarometer que dava conta de que 74% dos cabo-verdianos não teria problemas em ter vizinhos homossexuais.
Uma reportagem do Expresso das Ilhas de Março de 2016 (n.º 748) analisa o estudo, que aponta que em 37 dos 54 países africanos a homossexualidade é ainda considerada ilegal, chegando a ser punida com a pena de morte em alguns países (Sudão, Ugada, Somália, Mauritânia e Nigéria) e prisão perpétua em outros.
Até 2004 a lei cabo-verdiana também criminalizou os actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo. A lei proibitiva estipulava o pagamento de uma multa, caso fosse a primeira infracção e, se o acto sexual se repetisse, o infractor reincidente poderia ser condenado à prisão. Com a alteração da lei e o fim da criminalização, igualou-se a idade de consentimento de prática sexual ao registado entre pessoas de sexo aposto, isto é, também no caso de pessoas do mesmo sexo, 16 anos é a idade legal para o sexo consentido.
Desde então, no que toca à legislação, só há a registar o reconhecimento constitucional do direito à livre orientação sexual e a homofobia como motivação para um crime contra outrem a ser razão para agravante da pena.
“ Não há uma lei em Cabo Verde a tipificar a homofobia como crime e isso vai ter que mudar”, aponta Samory Araújo que, no terreno a trabalhar com a comunidade LGBT há alguns anos, contacta o impacto psicológico que a prática de bullying tem sobre os homossexuais, travestis e transgéneros.
A escola e o local de trabalho são os lugares onde mais ocorrem o assédio moral, o ostracismo e por vezes até agressão verbal contra LGBTs. Como consequência o coordenador da campanha Livres & Iguais diz terem constatado casos de depressão e outras perturbações psicológicas entre elementos da comunidade com quem interagem.
“A sociedade civil precisa consciencializar-se que qualquer comentário, qualquer “troça” é discriminação, é bullying, é um ataque que pode ferir de forma séria alguém que está numa posição sensível”, alerta. Algo a que nem indivíduos heterossexuais escapam quando alguém ou um grupo decide que se encontra “no armário”.
Isso mesmo quando o estudo do Afrobarometer aponta que os níveis maiores de tolerância se situam entre os mais jovens e os mais letrados.
Em diferentes reportagens jornalísticas, teses académicas e filmes que se têm produzido sobre a comunidade LGBT em Cabo Verde encontram-se testemunhos de homossexuais e transgéneros que reconhecem o bom nível de tolerância existente em Cabo Verde quando em comparação com muitos dos países do continente onde enfrentam pena de morte, prisão, violações “correctivas”, intolerância ostensiva e ataques violentos organizados. Contudo apontam que a discriminação no trato e os ataques velados são uma constante que perturba o seu quotidiano.
Facto é que, em termos comparativos, Cabo Verde está bem posicionado no que se refere a índices de tolerância e poderá mais uma vez, se assim o quiser, seguir a África do Sul, e tornar-se o segundo país do continente onde parceiros do mesmo sexo podem casar e o único onde existem leis que punem quaisquer tipos de discriminação contra homossexuais.
Os actores sociais e activistas da causa LGBTI parecem já ter compreendido que para qualquer mudança será mister a concertação de agendas e definição de uma estratégia conjunta.
Resta lembrar que os passos e as políticas oficiais do país nesta matéria, como em tantas outras, são atentamente seguidos e registados por organizações e países parceiros que os levam muito em conta a hora de definir as suas políticas de cooperação internacional.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 814 de 4 de Julho de 2017