Jorge Miranda: Não mexer no que está bem feito

PorJorge Montezinho,30 set 2017 6:00

Um exemplo magnífico à espera de ser integralmente cumprido. Esta é a Constituição de Cabo Verde na interpretação do professor catedrático jubilado português que se associou ao 25º aniversário da Magna Carta, convidado pelo Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais.

 

A Constituição não resolve todos os problemas de um país, mas é um documento que traz, no caso de Cabo Verde, paz e liberdade, resumia o constitucionalista Jorge Miranda, esta segunda-feira, ao final do dia, na conferência organizada pelo ISCJS e onde foi o principal orador.

“Não se pode esperar que tudo melhore de um momento para o outro, mas a Constituição da República trouxe a paz e a liberdade, a estabilidade e o equilíbrio, a alternância de partidos. O essencial é preservar a democracia e o sistema de direitos, liberdades e garantias”, disse o professor universitário que é também o autor da arquitectura de vários textos constitucionais a nível mundial, como é o caso de Portugal, Timor-Leste, ou São Tomé e Príncipe.

Em 1989 o mundo começou a mudar com a queda de estruturas que mantinham viva uma cortina, tanto física como mental, que separava os dois principais blocos políticos do mundo. Uma derrocada em Berlim com ondas de choque que se propagaram por todo o planeta. Cabo Verde não foi excepção e no início de 1990 (17 de Fevereiro) era anunciada a abertura política.

A 28 de Setembro do mesmo ano a Assembleia Nacional Popular aprovou a Lei Constitucional número 2/III/90 que depois de anular o artigo 4 da Constituição e institucionalizar o princípio do pluralismo, deu origem a um novo tipo de regime político. Esta lei foi o instrumento que viabilizou as eleições democráticas em Cabo Verde e a transição para um novo modelo da vida política e social cabo-verdiana.

As primeiras eleições livres no dia 13 de Janeiro de 1991 deram uma vitória esmagadora ao Movimento para a Democracia, com 61,6 por cento dos votos. Com uma maioria qualificada, o MpD pode elaborar uma nova Constituição da República e implementar reformas que tinham por objectivo levar adiante o processo de mudança.

Em Setembro do ano de 1992, foi aprovada uma nova Constituição com 56 votos a favor, 16 abstenções e nenhum contra. 322 artigos publicados, em suplemento, no Boletim Oficial nº. 12, de 25 de Setembro de 1992. Foram introduzidas alterações profundas que deram origem a várias discussões públicas em matérias como a mudança do Hino e dos símbolos nacionais e a redução dos Poderes do Presidente da República.

Apesar da mudança dos símbolos nacionais ter sido discutida e aprovada na Constituição de 1992, o novo Hino Nacional só veio a ser aprovado no início da V Legislatura, em 1996. Durante esse período vigorou transitoriamente o Hino “Essa é a nossa Pátria Amada.”

O texto constitucional consagrava novamente o princípio de separação e interdependência dos poderes legislativo, executivo e judicial, mas foram retirados alguns dos poderes do Presidente da República, que perdeu o poder de exigir responsabilidade política ao Governo, de dissolver o Parlamento, sem o parecer favorável do Conselho da República, de convocar extraordinariamente a Assembleia Nacional, de exonerar o Primeiro-Ministro e os restantes Membros do Governo, salvo em acaso de aprovação de uma moção de censura, neste caso, depois de ouvir os Partidos Políticos representados na Assembleia Nacional e o Conselho da República (art.202ºn.2).

O sistema do Governo é novamente alterado, reforçando o pendor Parlamentar desenhando um novo equilíbrio entre os poderes.

O poder de iniciativa legislativa além de ser prerrogativa dos Deputados e do Governo passou também a ser prerrogativa dos Grupos Parlamentares (art.169.º).
O Assembleia continuou a ser um órgão unicameral e representativo de todos os cidadãos cabo-verdianos, ficando constitucionalmente determinado o mínimo de 66 Deputados e o máximo de 72 Deputados para a sua composição e um sistema de eleição por listas plurinominais (artigos 122.º e 153.º).

 

A Revisão Extraordinária de 1995

Através da Lei Constitucional n.º 1/IV/95, de 13 Novembro, a Assembleia Nacional procedeu a uma revisão pontual do texto constitucional, na sequência da publicação tardia da lei eleitoral de 1994. A revisão limitou-se a aditar nas disposições transitórias uma norma sobre a aplicabilidade do artigo 102.º.

Este artigo previa que “a partir do ano anterior à realização de eleições para qualquer órgão do poder político e até ao apuramento dos resultados, a respectiva lei eleitoral não pode ser alterada ou revogada.”

Assim reviu-se a Constituição com o único propósito de adiar a aplicação desse preceito nos seguintes termos: “O disposto no artigo 102.º da Constituição não se aplica às primeiras eleições para os órgãos do poder político, após a entrada em vigor da presente Constituição” (art.316º- A).


A 1ª Revisão Ordinária de 1999

Decorridos sete anos sobre a aprovação da Constituição de 1992, fez-se a 1ª revisão ordinária da Constituição, em 1999.

Considerada uma revisão extensa e profunda que abrangeu vários princípios constitucionais, a revisão de 1999 foi marcada pela introdução de preceitos importantes nomeadamente a institucionalização da língua crioula, ficando o Estado incumbido de criar as condições para a oficialização da língua materna, em paridade com a língua portuguesa, assim como se plasmou na Carta Magna o Hino Nacional aprovado em 1996 por lei própria, estatuiu a questão do género atribuindo ao Estado a tarefa de remover os factores de discriminação da Mulher na família e na Sociedade e incentivar a participação de ambos os sexos, de forma equilibrada na vida política do País, e um estatuto administrativo especial para a Capital do País (arts.8º,9º,10º).

Ainda a nível da justiça, a revisão de 1999 veio consagrar o Tribunal Constitucional e a figura do Provedor de Justiça (art.219º e 253º). O período da legislatura continuou a ser de cinco anos, a sessão legislativa passou a ter a duração de um ano e a Assembleia Nacional a funcionar de 1 de Outubro a 31 de Julho (art.º 149.º e 150.º).

Reforçou-se significativamente as competências absolutamente reservadas da Assembleia Nacional, nomeadamente ao prever que cabia exclusivamente a esta legislar sobre a organização e competência dos Tribunais e do Ministério Público, as restrições ao exercício de direitos, o regime do sistema de informações da República e do segredo de Estado e o regime de protecção de dados pessoais (art.º 175º).

A 2ª revisão ordinária da Constituição ocorreu em 2010 decorridos 11 anos da primeira revisão. A Justiça e os Direitos, Liberdades e Garantias foram sem dúvida questões que mereceram particular atenção, na revisão, nomeadamente, a flexibilização da proibição de extradição e a inviolabilidade domiciliária nocturna (arts.38º e 43º).

No sistema Judicial a revisão de 2010 criou os tribunais judiciais de segunda instância, e estatuiu que a escolha dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça deve ser feita por concurso público.

Por outro lado, quanto ao sistema de Governo surgem com a revisão de 2010 novos elementos de equilíbrio, pois com essa revisão o Presidente da República passa a ter o poder de dissolução da Assembleia, (no caso previsto na al. e) do n.1 do artigo 135º), sendo dispensado o parecer favorável de qualquer órgão.

“O grande problema que existe nesta Constituição é a efectivação dos direitos sociais”, disse Jorge Miranda aos jornalistas. “A Constituição é praticada no tocante às liberdades, às garantias, à alternância dos partidos do poder, nas eleições livres, mas os direitos sociais precisam de ser efectivados. O direito à saúde, ao trabalho, direito à segurança social, à educação. Fiquei com a impressão de que aí ainda falta mudar muito. Enfim, não é mudar a Constituição, mas sim cumprir a Constituição”.

No fundo, executar o que está escrito na Magna Carta, frase semelhante à que tinha sido dita pelo Presidente da República Jorge Carlos Fonseca [ver caixa]. Até porque, na opinião do constitucionalista português, não se deve mexer no modelo actual. “Acho que o sistema semi-presidencial está muito bem. A experiência mostra que fora dos Estados Unidos da América o presidencialismo não funciona: ou conduz à ditadura, ou então ao impasse político. À ditadura como temos visto em tantos países cuja Venezuela é o caso mais recente, ou então não funciona, veja-se o caso do Brasil onde as coisas estão paradas. Portanto, no sistema semi-presidencial cabo-verdiano há um sistema de equilíbrio, divisão de poderes, há um presidente que preside e tem poderes efectivos, mas não é responsável pelo governo, não tem poder executivo. O presidente tem um papel de equilíbrio e de moderação entre os vários órgãos, acho que está muito bem”.

Hoje, a Constituição da República cabo-verdiana mantém-se como referência fundamental do desenvolvimento e consolidação do Estado de Direito e da democracia, e como recordou a presidente do ISCJS, Yara Miranda, a democracia não é uma empreitada acabada, mas sim um processo permanente, paciente e crescente. Ou como resumiu Jorge Miranda, na conferência Constituição e Democracia: “Não basta declarar que a democracia pertence ao povo”.

 

 

Presidente da República: «Constituição tem provado que funciona bem»

“Um quarto de século cumprido com estabilidade política é sinal claro que a Constituição da República está a cumprir a sua função”, disse Jorge Carlos Fonseca à rádio pública, esta segunda-feira, data em que se comemoraram os 25 anos da Magna Carta de Cabo Verde.

Para o Chefe de Estado, estes vinte e cinco anos em democracia têm decorrido sem crises relevantes e os cidadãos vêm adquirindo uma cultura constitucional forte e bem mais vasta. “Os cidadãos têm assegurado os direitos, liberdades e garantias”, disse.

Por estas razões, o Presidente da República não encontra motivos para se proceder a mudanças drásticas na actual Constituição e afasta mesmo a possibilidade de haver uma alteração do modelo político actual de Cabo Verde.

“O nosso sistema [Parlamentarismo mitigado] serve a estabilidade política, social e institucional. Se garantimos equilíbrio e estabilidade, vamos mudar para quê?”. Até porque, como frisou o Chefe de Estado, modelos presidencialistas no continente africano não são exemplos de bom funcionamento da democracia.

A questão, para o Presidente da República, é outra: é preciso agir mais e perder menos tempo entre a decisão e a execução. “O nosso défice é de acção, para resolver os desafios do emprego, da segurança, da perspectiva para os jovens, mais inclusão social e menos assimetrias regionais”. 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 826 de 27 de Setembro de 2017. 

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Autoria:Jorge Montezinho,30 set 2017 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  2 out 2017 11:46

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