O funaná das autárquicas em Portugal

PorNuno Andrade Ferreira,30 set 2017 6:00

Os portugueses (e não só) regressam às urnas no próximo domingo para escolher os representantes do poder local. Tudo somado, entre câmaras, assembleias municipais e freguesias, há listas concorrentes a 3.700 órgãos autárquicos. Preocupados em piscar o olho a todas os eleitores, partidos e movimentos de cidadãos fazem um esforço para ter listas que sejam um espelho, mesmo que baço, da realidade sociocultural das autarquias. Fomos à procura de candidatos cabo-verdianos.

 

Mário Carvalho, Benvinda Oliveira e José Maria Oliveira são excepções à regra que nos diz que os representantes das comunidades imigradas estão nas listas apenas para fazer número. É provável que nem todos consigam a eleição, mas todos estão em evidência, entre os dez primeiros.

Mário é o destaque da disputa autárquica com ADN das ilhas. Este cabo-verdiano, nascido em Santiago, a residir em Portugal desde 1991, encabeça como independente a lista do partido Nós Cidadãos à Câmara Municipal da Amadora. A decisão de avançar tornou o jurista e líder associativo no primeiro cabo-verdiano candidato à presidência de uma câmara em Portugal.

 

 

Num concelho que conhece bem e que é um verdadeiro melting pot (um caldeirão de culturas, numa tradução livre e nada delicada), Mário Carvalho enfrenta a actual presidente, a socialista Carla Tavares, e outros sete adversários.

O partido que o acolhe apostada na imagem de um ‘Obama da Amadora’, título que o visado já classificou de exagerado. Mas a ideia está lá.

“A minha candidatura é para abrir caminho, para que os nossos filhos não sejam vistos como pretos, brancos, azuis ou cor-de-rosa mas cheguem lá devido à capacidade que têm. Nós já somos vencedores por cá chegarmos”, expressa, entre dois dedos de conversa, no seu quartel-general, na sede de um município com 200 mil pessoas, de 55 países.

“O mayor de Nova Iorque é descendente de imigrantes, o presidente de Câmara de Paris é descendente de imigrantes, o mayor de Londres é descendente de imigrantes. Por que razão, com a realidade que se vive na Amadora, um cabo-verdiano não pode ser presidente da câmara?”, questiona Mário Carvalho.

A estratégia autárquica do Nós Cidadãos, no concelho que faz fronteira com Lisboa, passa pela corrida à câmara e a três das seis freguesias. Diversidade é a palavra que melhor descreve as listas. Contrariando tendências, há portugueses, sim, mas o que se destaca são os cabo-verdianos, moçambicanos, guineenses e são-tomenses. Este projecto é um statement, afinal.

“Não faz sentido, nesta relação de amizade histórica que existe entre Portugal e Cabo Verde, não haver representatividade dos imigrantes na vida política. Vamos ver o Parlamento: não há deputados africanos. Nas câmaras municipais: não existem. Juntas de freguesia, poderes intermédios, comunicação social. Alguma coisa falha”, defende.

O quê? “Não somos representados porque não participamos. Ninguém dá nada a ninguém”, arrisca.

Com poucos meios, a caravana de Mário Carvalho é composta pelo núcleo duro da candidatura. Estes são dias de pouco ou nenhum sono. Até sexta-feira, todos os minutos contam. A campanha faz-se voto a voto, bairro a bairro, contrariando o desinteresse pela vida política, que se traduziu numa abstenção de quase 60 por cento, em 2013 (59.16%).

Os abstencionistas e os descrentes são uma espécie de core business. Convencer a ir à mesa de voto quem nunca por lá apareceu é uma das mensagens mais repetidas nas acções de rua.

“Muitos vão votar pela primeira vez, independentemente de serem cabo-verdianos, angolanos, portugueses. Sentem algo que nós conseguimos passar e que reflecte os anseios dessas pessoas”, espera Mário Carvalho.

A fraca participação dos estrangeiros na vida política do país de acolhimento é uma das notas dominantes nos sucessivos relatórios anuais do Observatório das Migrações (OM) português. Ainda assim, os cabo-verdianos são os maiores entusiastas. Em 2014, existiam 27.280 nacionais de outros países nos cadernos eleitorais. Desses, 9.745 eram de Cabo Verde, o que representa 35.7 por cento do total. Na segunda posição, o Brasil, a longa distância, com não mais de 17,1 mil de inscritos. 

A legislação eleitoral portuguesa baseia-se no princípio da reciprocidade. Podem votar e ser eleitos nas eleições locais os cidadãos de países que concedam o mesmo direito aos portugueses aí residentes. É por essa via que os cabo-verdianos que moram em Portugal e não têm dupla nacionalidade podem recensear-se, votar e até candidatar-se. É à luz desse pressuposto que Cabo Verde permite a participação política nas autárquicas a cidadãos estrangeiros.

O Alto Comissário para as Migrações tem uma explicação para a maior participação relativa dos cabo-verdianos na vida política portuguesa: o tempo.

“Os estudos que nós temos, e há um muito recente sobre a participação política nos partidos em Portugal, mostra que o tempo é um factor muito importante para o reforço da participação, seja elegendo, seja sendo eleito”, explica Pedro Calado.

“As comunidades recém-chegadas tendem a participar menos, mesmo nos recenseamentos, e muito menos como candidatos”, complementa.

Se a integração é como subir uma escada, participar activamente na vida de uma comunidade será atingir um dos últimos degraus.

“A comunidade cabo-verdiana começa a ser também um caso de estudo interessante, começando a ter os seus representantes em lugares elegíveis. Eu creio que este é o sinal destas eleições autárquicas, este é um sinal de esperança, um sinal que, creio, poderá vir a consolidar a integração das comunidades cabo-verdianas em Portugal”, espera o Alto Comissário.

Os cabo-verdianos em Portugal formam uma das mais antigas comunidades imigradas naquele país europeu. Os primeiros crioulos fixaram-se em Lisboa e arredores ainda na década de 1960. Ao longo dos anos, e com algumas variações, o fluxo migratório manteve-se sempre aberto. Ao mesmo tempo, as gerações mais antigas criam raízes, têm filhos e netos nascidos em território português.

O último relatório estatístico anual do OM contabiliza um total de 40.912 cabo-verdianos residentes em terras lusas – dados de 2014, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, relativos a cidadãos sem dupla nacionalidade. O número sugere uma redução de 3,5 por cento face a 2013, mas o sentido descendente não é suficiente para retirar Cabo Verde do segundo lugar no ranking de nacionalidades estrangeiras mais representadas em Portugal, a seguir ao Brasil.

 

Da Reboleira aos Navegadores

Benvinda Oliveira nasceu na ilha das montanhas, Santo Antão. De lá saiu no início dos anos 90, rumo a Portugal, para estudar. Licenciou-se em engenharia informática, na Universidade Nova de Lisboa, e é quadro no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (equivalente ao nosso Instituto de Meteorologia). Militante do MpD, a política não é uma novidade na sua vida. Apesar disso, não esconde algum nervosismo perante a aventura em que decidiu embarcar. É terceira na lista do PSD/CDS-PP a Águas Livres, concelho da Amadora.

Benvinda disputa lugar numa freguesia que engloba Reboleira, Damaia e Buraca, três dos bairros com maior concentração de cabo-verdianos em Portugal.

“Aceitei o convite porque penso que chegou a hora de dar a minha contribuição a uma freguesia onde vivo há mais de 20 anos”, resume.

PSD e MpD são partidos da mesma família política e por isso a engenheira informática sente-se em casa. Apresenta-se como a voz dos imigrantes.

“Penso levar as preocupações das pessoas ao mais alto nível. Por exemplo, estou  a pensar  em propor um gabinete de apoio ao imigrante. Há muita gente com muitos problemas de integração e creio que vou dar o meu contributo para ajudar a resolver problemas que eu conheço muito bem”, perspectiva.

Em plena campanha, de olhos postos no dia 1, Benvinda Oliveira partilha com Mário Carvalho a bandeira do combate à abstenção. Votar para ter voz. 

“Se votarmos, se virem que temos voz e que somos uma comunidade grande, ninguém vai decidir por nós”, recorda.

Num ensaio que integra uma colectânea publicada em 2008 pelo OM (então chamado de Observatório das Imigrações), o professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Luís Batalha, escreve que “apesar de serem frequentemente identificados como uma comunidade grande e única, os cabo-verdianos que vivem em Portugal encontram-se dispersos por várias e diferentes pequenas comunidades, cuja existência se verifica sobretudo ao nível das vizinhanças de bairro”.

A maioria desses bairros localiza-se na Área Metropolitana de Lisboa, entre as duas margens do Tejo. Muitos foram construídos durante a última década do século XX, ao abrigo dos chamados Planos Especiais de Realojamento (PER). Financiados com dinheiro da União Europeia, apresentavam-se, à data, como uma solução para substituir as construções informais, eufemismo para barracas.

Precisamente, é numa das construções do PER que mora José Maria Oliveira. Com 51 anos, 27 dos quais passados em Portugal, este santiaguense de nascimento, segurança privado de profissão, é um líder nato. Faz questão de se envolver nos problemas locais e participa regularmente no movimento associativo. Em Cabo Verde, é militante do PAICV. Em Portugal, dá a cara, como independente, pelo PS. Nas autárquicas de domingo é o sexto da lista socialista à União de Freguesias de Oeiras, São Julião da Barra, Paço de Arcos e Caxias. 

“Nós, os cabo-verdianos, somos mais participativos nas associações, na defesa dos interesses das comunidades”, diz-nos.

Zé Maria mora nos Navegantes, em Oeiras, um daqueles lugares de má fama, muito por culpa do estigma que se colou a um modelo de realojamento que ajudou a construir verdadeiros guetos. Isolar o problema ao invés de resolvê-lo. O bairro nem faz parte da freguesia à qual concorre. Os problemas, esses, é que são transversais e José sabe-os de cor.

Melhorar as acessibilidades, combater a insegurança e o preconceito. Três das ideias que o candidato tem apresentado nos contactos porta-a-porta.

“Temos problemas de falta de transporte, pouca segurança, jovens que não têm ocupação, temos crianças a sair da escola”, reforça.

“Nós não estamos a defender só uma camada, os imigrantes, defendemos o geral”, esclarece.

Independentemente do resultado nas urnas, dia 2 a vida prossegue e José Maria Oliveira não vai baixar os braços. Em vista, a criação de uma associação cabo-verdiana no município de Oeiras.

 

Cara e cor

A Embaixada de Cabo Verde acompanha a participação de cabo-verdianos nas autárquicas de domingo. Salvaguardada a distância de qualquer preferência política, como se espera de uma representação diplomática, o embaixador Eurico Monteiro aplaude o envolvimento de cidadãos nacionais na vida pública portuguesa.

“É muito importante que os cabo-verdianos participem na actividade política e tenham um papel muito activo. Em primeiro lugar, no recenseamento. Em segundo lugar, participando nos processos eleitorais e nas votações. Quando as pessoas têm uma participação política activa, a sua capacidade de negociar e influenciar é maior”, relembra.

O recenseamento é o passo fundamental. Quanto maior for o número de eleitores de uma determinada comunidade, maior a disponibilidade dos partidos para integrarem elementos dessa comunidade nas listas, em lugares cimeiros.

“Uma coisa que é importante é procurar saber se os candidatos têm nos seus cadernos de encargos alguma coisa que tem a ver com a comunidade. Ele [o candidato] terá isso em conta se souber que são cidadãos recenseados. Por exemplo, se numa comunidade temos 500 ou 700 eleitores e esses eleitores estão a reivindicar uma estrada”, concretiza o embaixador.

Na margem sul do Tejo, o presidente da Associação Cabo-Verdiana do Seixal, Miguel Fortes, mantém os pés no chão. Concorda que estar inscrito nos cadernos é fundamental, até identifica “uma tradição de envolvimento político dos cabo-verdianos nas autárquicas” do concelho, mas verifica que o destaque conferido pelos partidos mantém-se “tímido”.

“Os cabo-verdianos são chamados para as listas para fazerem uma coisa simples que eu denominei de dar cara e cor”, declara, ao avaliar o que classifica de experiências pontuais.

“Não há uma continuidade, não há uma sedimentação, uma integração plena na vida política”, acrescenta.

Feitas as contas, todos perdem. Os partidos, que por não se abrirem mais à sociedade civil excluem partes importantes dessa sociedade. Os cidadãos, que por se manterem afastados desistem da possibilidade de reivindicar no local onde as decisões são tomadas. 

“Eu queria ver [um deputado] na Assembleia da República, um vereador na câmara, um presidente na junta, ou qualquer outro. ‘Esse é um dos meus, compreende os meus problemas’. É disso que precisamos”, remata.

Para obter uma visão mais abrangente sobre o nível de compromisso político dos cabo-verdianos residentes em Portugal, procurámos junto de alguns dos partidos portugueses informações sobre o total de cidadãos nacionais em diferentes listas candidatas aos órgãos de poder local, de norte a sul do país. Não obtivemos respostas.    

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 826 de 27 de Setembro de 2017. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,30 set 2017 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  2 out 2017 10:01

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