Francisco Louçã: Ninguém pode apagar as ideias da revolução de Outubro

PorJorge Montezinho,18 nov 2017 6:38

Convidado pela Presidência da República de Cabo Verde para falar sobre o legado da Revolução Russa, o político português sublinha o lado positivo da luta bolchevique, sem esquecer também a herança “tenebrosa” do Estalinismo. Para o fundador do Bloco de Esquerda o comunismo teve falhas, mas, defende, o actual capitalismo “selvagem” também não é a resposta. A conversa com o Expresso das Ilhas decorreu antes da conferência no Palácio do Plateau.

 

Como vem falar sobre o legado da revolução russa eu começava exactamente por aí: um século depois, o que fica?

A Revolução Russa foi o início do século XX, como Hobsbawm resumiu: o século das revoluções e das contra-revoluções, que começa em 1914, mas sobretudo com o efeito da Revolução Russa e da sua vitória, com enormes consequências: a Bulgária, a Itália, a Alemanha, certamente, que era o país mais influente da Europa e, aliás, a grande esperança revolucionária e não a Rússia, como é sabido. A partir daí houve respostas tremendas, como o fascismo, que emerge em 1922 em Itália, em 1926 em Portugal e em 1933 na Alemanha. Mas trouxe também uma vaga de esperança enorme. Na verdade, o impulso para a democratização da situação política, o sufrágio universal, o alargamento da democracia e os direitos dos trabalhadores resultam do grande impacto da Revolução Russa e, em certa medida também, do momento que se vivia na Europa: era necessário quebrar os impérios, acabar com as autocracias, com as ditaduras, com as guerras – essa esperança era fortíssima e marcou muito o século XX. É sabido que a Revolução Russa depois sofreu um processo de grande conflito interno, foi dilacerada, Estaline matou mais de um milhão de membros do seu próprio partido, houve as prisões políticas, a destruição da liberdade democrática, tudo isso é uma herança tremenda e pesadíssima que aniquilou a revolução e que levou, na década de 80, ao final da União Soviética, como é sabido.

 

Usando o imaginário revolucionário: houve bandeiras desfraldadas que ainda não podem ser enroladas?

A ideia de que a humanidade pode apropriar-se do seu destino, sobreviver à exploração violenta, recuperar uma relação sustentável com o ambiente, permitir a igualdade entre homens e mulheres, são ideias fortíssimas que nada pode apagar. E se é verdade que o século XX deixou uma herança de tragédias, que deixou tarefas incompletas, também é verdade que ninguém nos diga hoje que o capitalismo é o destino da humanidade, ou que o imperialismo é a forma de organização de relações internacionais, ou que as perturbações climáticas são uma forma inteligente de desenvolvimento económico, porque não são. Portanto, a velha aspiração democrática, a velha bandeira dos direitos humanos, a velha bandeira do fim da opressão dos seres humanos pelos seres humanos, essas ideias da primeira geração de marxistas são fortíssimas e eu creio que devem ser reivindicadas, limpas e recuperadas, porque fazem parte do património democrático da humanidade.

 

Sabemos que a revolução foi também uma resposta a uma estrutura que não soube acompanhar a evolução dos tempos. Essa pode ser uma lição para os políticos de hoje?

É difícil fazer uma comparação entre momentos muito diferentes da história. É certo que a Revolução Russa nasceu do combate contra o czarismo e contra a guerra, não se pode fazer a história ao contrário, a história é o que é. Recentemente um historiador, o Montefiore, escreveu no New York Times que sem Lenine não haveria Hitler. Isto é um absurdo grotesco, a história não se pode reinventar, foi realmente o que foi, e o fascismo resultou da vontade de opressão contra os trabalhadores que passavam a ter uma palavra na vida social. E isso sim é uma lição importante. Quando o Trump mobiliza aquelas milícias fascistas em Charlottesville chama-nos a atenção não porque a América seja fascista, porque não é, mas porque o extremar das contradições políticas leva sectores importantes do capital – no caso dos Estados Unidos a segunda maior fortuna, a dos irmãos Koch – a impulsionarem melícias, a impulsionarem movimentos contra a integração racial, contra os direitos civis e contra os direitos do trabalho. Que no mundo isso possa ter um peso tão grande que leva a que a maior potência política e militar seja dirigida por um Donald Trump já de si próprio é assustador. Que esta semana ele visite Duterte, o presidente das Filipinas, o homem que diz que gostaria de ser o Hitler das Filipinas porque gostaria de fazer o holocausto de 3 milhões de toxicodependentes, de pessoas doentes, é um sinal tremendo dos nossos tempos. Mas em todas estas vertentes, eu penso que a grande pulsação da história da humanidade é sempre a vontade democrática irredutível, contra o Estalinismo, contra a destruição das revoluções, contra este capitalismo imperial, a favor da liberdade dos povos, a favor da independência das nações, a favor das relações pacíficas entre os povos, essa grande força democrática é o que surgiu na revolução de 1917, mais tarde na luta pela independência dos povos coloniais, e no dia 25 de Abril de 74 em Portugal. Por isso, quando olhamos para Amílcar Cabral e outros grandes dirigentes da luta política do final do século XX podemos perceber que em todos eles nascia esta vontade de destroçar as autocracias e os impérios.

 

A falta de liberdade foi a grande falha da Revolução Russa?

Foi a tragédia da Revolução de Outubro. Bem, a Rússia soviética foi imediatamente invadida pelos países imperialistas: o Japão invadiu a parte da Manchúria, mas também tropas dos Estados Unidos, da França, da Itália, da Inglaterra, todas essas tropas mais a guerra civil significou uma enorme militarização da Rússia e isso foi uma tragédia. Mas foi uma tragédia que depois desse processo não se tivesse recuperado o impulso criador que só a democracia pode ter. Qualquer poder que não seja submetido à crítica democrática, à pluralidade de opiniões, que não respeite o direito do trabalhador de constituir o seu próprio sindicato… (pausa). Mesmo um dirigente bolchevique da altura, o Trotsky, só muitos anos mais tarde disse que era preciso a liberdade dos partidos nos sovietes, porque se não houver a liberdade dos partidos exprimirem a sua opinião qualquer direcção se torna autocrática. Creio que esse é um problema-chave da luta política actual. Agora, é certo também que a memória da Revolução de Outubro foi determinante até na vitória contra o fascismo na II Guerra Mundial, que foi o momento decisivo do nosso século. É uma herança paradoxal, trágica, conflitiva, em que houve um grande impulso para a libertação dos povos e esse impulso foi destroçado também pelas contradições internas de um processo revolucionário com o qual temos de aprender, com o que prometeu, com o que fracassou e com o que está por fazer.

 

Boaventura de Sousa Santos é que escreveu que a revolução foi um triunfo porque identificou os problemas, mas que foi um fracasso porque não resolveu nenhum.

Talvez seja verdade. Sabe que os grandes processos históricos têm de ser vistos pelos seus resultados e não só pelas suas vontades. Que resultou das contradições e lhes respondeu, é exacto e o mundo não ficou igual. Que houve respostas tremendas, como a do fascismo, também é verdade. Mas a história é sempre feita de encruzilhadas, fazem-se sempre escolhas, muitas vezes erradas, outras que abrem avenidas de liberdade e possibilidade de desenvolvimento de um povo. Agora é certo que sem uma cultura aberta, sem uma cultura que se interroga, sem a percepção das contradições, dos paradoxos e dos vários caminhos não se podem fazer as escolhas adequadas. Como é que pode haver uma planificação se não houver uma vida democrática, se os trabalhadores não discutem nas empresas com os seus gestores quais são as melhores alternativas? Como é que pode haver um controlo de uma economia se a banca não está submetida à necessidade do interesse público? Se os serviços de saúde, se os recursos orçamentais não são dedicados às prioridades? E a escolha de prioridades é sempre difícil e nem sempre certa, não há nada que garanta que as escolhas feitas pelas democracias sejam as mais certas possíveis, mas elas têm de fazer o seu caminho e aprender consigo próprias e corrigir-se. E só o debate aberto é que o pode fazer e por isso não pode existir socialismo sem democracia. O socialismo tem de ser a forma de elevar a democracia ao maior patamar de responsabilização popular, aquilo que Lenine dizia: a mais simples cozinheira tem de ter um papel na actividade do Estado, tem de ter uma voz importante na vida pública e isso é, creio eu, a melhor garantia que esses processos de transformação política, como o de 1917, podem prosseguir na nossa vida.

 

O Expresso das Ilhas fez um trabalho sobre a revolução russa, ouvindo alguns intelectuais para que nos dessem a sua visão, e o Dr. Corsino Tolentino disse uma coisa muito curiosa: o muro caiu para os dois lados. Mas aprendeu-se alguma coisa com o lado de lá? 

É verdade, e creio que tem razão. O muro caiu pelos fracassos internos do regime soviético, que é evidente, também teve um efeito de soltar aquilo que estava reprimido com a bipolarização da Guerra Fria e, portanto, permitiu que o mundo capitalista readquirisse um impulso imperialista.

 

E acabou por dar origem ao neoliberalismo.

E soltou também o neoliberalismo, a forma mais agressiva, a mais selvagem, de capitalismo, em certa medida com realidades novas, a China é um dos centros de acumulação de capital e, portanto, de impulso do neoliberalismo. E houve outros casos, veja o Temer no Brasil, a vender os depósitos do petróleo, ou a desbaratar a Amazónia. Esta é a selvajaria do ataque neoliberal, a recuperação das desigualdades entre homens e mulheres, as ameaças à democracia, as restrições das liberdades de imprensa, tudo isso se foi acentuando numa parte importante do mundo e é também o resultado de todos os desequilíbrios. É preciso que o capitalismo tenha à sua frente, a combatê-lo, o movimento operário popular, com força, expressão e protagonismo político, diversidade, mas também capacidade de se concentrar nos grandes objectivos. Se não for assim, em questões como, por exemplo, as alterações climáticas, o mundo está perdido. Entregue à gestão capitalista teremos sempre um desastre ecológico. Se a opinião pública tiver uma voz forte na defesa dos direitos sociais, na defesa dos direitos ambientais, na defesa de um futuro sustentável que passa desde os serviços de saúde até políticas ambientais, então será possível responder à crise em que vivemos.

 

E acha que poderá surgir um novo movimento de resposta, ou como disse a Svetlana Alexievich: o comunismo vai voltar a surgir mais à frente no tempo?

Haverá um movimento fortíssimo de resposta. Que ele se chame comunismo, socialismo ou democracia, bom, o nome será encontrado pela tradição cultural que dele resultar, mas terá sempre esta raiz emancipatória e de liberdade que respeita as pessoas. E isso será sempre um momento decisivo. Faz parte da vida da humanidade não aceitar a sua própria destruição e pensar que o capital pode ser uma forma de unificação social é impossível. Veja a fortuna de Carlos Slim, se ele gastasse um milhão de dólares por dia, nem em 300 anos de vida usava os recursos que já tem hoje. Como é que é possível uma acumulação tão pornográfica? O escritor Almeida Garrett é que perguntava: quantos pobres são necessários para fazer um rico? Pois, são milhões de pobres! As oito maiores fortunas do mundo são hoje equivalentes aos rendimentos totais de metade da população do planeta, quase quatro mil milhões de pessoas. Como é que oito pessoas podem corresponder a quatro mil milhões que vivem desesperadamente? É uma situação que gera as suas próprias contradições, gera ódios, gera problemas e gerará também a vontade de resolvê-los a partir desse impulso democrático que encontrará o seu nome e que se lembrará sempre dos fundadores do socialismo e dos fundadores da luta emancipatória, dos que na África defenderam ideias de independência e dos que defenderam todas estas ideias no mundo inteiro.    

 

Francisco Louçã

Nasceu em Lisboa em Novembro de 1956. Economista e político, foi coordenador do Bloco de Esquerda, de que é um dos fundadores em 1999, desde 2005 até 2012.

Concluiu a licenciatura em Economia no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) pertencente à Universidade Técnica de Lisboa. Nesta instituição fez o mestrado e o doutoramento. Em 2004, e depois de prestar provas de agregação com aprovação por unanimidade, foi nomeado Professor Associado tendo presidido à Unidade de Estudos acerca da Complexidade na Economia do ISEG. Presentemente é um dos professores catedráticos do departamento de economia do mesmo instituto.

Em 1999, recebeu o prémio da History of Economics Association do melhor artigo publicado numa revista científica internacional. É associado da American Association of Economists bem como de outras associações internacionais. É também membro do conselho editorial de algumas revistas científicas no Brasil, em Inglaterra e em Portugal.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 15 de Novembro de 2017. 

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Autoria:Jorge Montezinho,18 nov 2017 6:38

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  16 nov 2017 13:34

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