É um dos nomes recorrentes entre os candidatos ao Prémio Nobel da Paz. Falta-lhe esse galardão para completar uma lista de distinções que tem vindo a somar pelo seu trabalho com as mulheres que foram violadas pelas milícias na República Democrática do Congo (RDC). Falamos do médico Denis Mukwege, director do Hospital Panzi, que já tratou mais de 30 mil vítimas de violência sexual e que ontem foi galardoado com o Prémio Sakharov 2014, atribuído pelo Parlamento Europeu.
Numa nação quebrada há décadas pela guerra civil, na RDC todas as facções “declararam as mulheres como o seu inimigo comum”.
A afirmação, feita em 2008 é de Denis Mukwege, um cirurgião ginecologista congolês, com uma vida dedicada a reparar e tratar os danos físicos de milhares de mulheres que foram brutalmente violadas pelos grupos armados do Leste desse país africano.
Leva anos a fazer um trabalho único, na linha da frente do tratamento de fístulas. Os números impressionam: não raras vezes era obrigado a fazer mais de 10 cirurgias num dia, tal o número de mulheres feridas devido a agressões sexuais que chegavam ao Hospital Panzi, que ele próprio fundou. Além da ajuda médica, o Panzi, presta também apoio psicológico às vítimas e ajuda a que continuem a sua vida, depois da barbárie a que foram sujeitas.
A acção humanitária deste médico é hoje reconhecida em todo o mundo. O seu trabalho valeu-lhe esta terça-feira o Prémio Sakharov 2014, que distingue a liberdade de pensamento e a defesa dos direitos humanos. Este galardão soma-se a vários outros.
Em 2008 venceu o Olof Pame, que homenageia realizações na promoção da paz. No mesmo ano foi eleito Africano do Ano. O prémio, atribuído pelo jornal nigeriano Daily Trust no valor de 20.000 dólares foi usado, de acordo com a BBC, para ajudar a criar um centro de apoio à reintegração das vítimas na sociedade.
Alguns dos outros prémios com que já foi agraciado são: o Hillary Rodham Clinton Award (2014, EUA); «Prize for Conflict Prevention» da Fundação Chirac (2013, França) e o prémio dos Direitos Humanos das Nações Unidas (2008). Falta-lhe o Nobel da Paz, para o qual tem sido sistematicamente apontado.
Bio
Denis Mukwege nasceu a 1 de Março de 1955. Filho de um pastor pentacostal, costumava acompanhar o seu pai nas visitas ao hospital, onde este se deslocava para rezar pelas vítimas.
Foi ai que nasceu o seu desejo de ajudar, mas para o jovem Mukwege orar não bastava. Queria fazer mais. Decidiu tornar-se médico.
Impressionado com a quantidade de mulheres que morriam ao dar à luz, escolheu ser ginecologista. Foi para França estudar, e quando regressou estabeleceu uma clínica em Lemera. O hospital foi destruído em 1996, durante a guerra civil.
Abriu então uma nova clínica em Bukavu, também no leste do país. Por essa altura, já “le docteur” – como lhe chamam na zona - percebera a enorme necessidade de criar um hospital que tratasse da vítimas de violência sexual.
Nascia o Panzi e o médico especializou-se na assistência a essas mulheres. É para lá que muitas se dirigem após a violação. Muitas, conforme relatos do próprio, chegam a sangrar e com fezes e urina a escorrer das suas vaginas despedaçadas.
Aí encontram cuidados médicos e apoio para a reintegração social.
Tentativa de assassinato
Em Setembro de 2012, Mukwege discursou nas Nações Unidas, onde denunciou a impunidade das violações em massa que acontecem na RDC, em particular na região de Kivu, e criticou o governo congolês e a comunidade internacional pela sua inacção.
Um mês mais tarde, a 25 de Outubro quatro homens armados atacaram a sua residência. Mukwege estava ausente. Mantiveram as suas duas filhas reféns e aguardaram que chegasse para o matarem. À chegada, disparam a matar, mas falharam.
Não se sabe ao certo quais os motivos que moveram os assassinos. Acredita-se que tenha sido a referida denúncia que o médico fez das violações de incontáveis mulheres, por grupos armados no leste do Congo.
Após a tentativa de assassinato o médico viveu dois meses no exílio. No regresso a Bukavu, Mukwege, “Le docteur”, foi recebido em apoteose por milhares de pessoas, segundo descrito pelo New York Times.
Mulheres que odeiam mulheres
Olhar os casos de violação na RDC tem levado a algumas revelações inesperadas: 40% das mulheres afirma ter sido violada por outras mulheres. As agressoras foram elas próprias vítimas continuadas de violação. Depois, com uma violência ainda maior do que os homens, tentam competir por status num sistema patriarcal.
Marie tem 37 anos e comercializa sapatos. O seu trabalho obriga-a a deslocar-se regularmente até parte remotas do leste da RDC. Em 2012, o autocarro onde seguia avariou numa estrada de floresta perto da cidade de Walikale. Carregada com a sua mercadoria, recorreu a uma bicicleta- táxi. Enquanto esperava pela mesma, foi atacada por bandidos, homens e mulheres armados e vestidos com um uniforme militar. “Quando vi mulheres, pensei que estava a salvo”, contou em entrevista à Time.
Marie, mãe de seis crianças, viu que estava enganada quando as mulheres começaram a discutir com os homens sobre quem ficaria com ela. Ganharam as mulheres.
Chamaram-lhe gorda, e disseram-lhe que ficaria com elas na floresta até emagrecer. Uma das mulheres, relata à Time, introduziu os dedos dentro de Marie. Outra tentou meter a mão. O abuso físico e psicológico continuou por mais quatro dias. Marie estava a sangrar tanto que elas desistiram. Queriam matá-la, mas os homens do grupo não deixaram. Ao fim de nove dias, a milícia libertou-a.
Um outro caso é relatado pela revista. Em 2005, Valerie, que era então uma menina de 17 anos, encontrou um grupo de bandidos na borda de uma floresta a roubar culturas - dois homens, duas mulheres e uma menina. Enquanto os homens cortavam milho e cavavam as raízes de mandioca, as mulheres tiraram as roupas de Valerie e começaram a tocá-la. Usaram as mãos e paus. A primeira vez que Valerie foi violada, por um homem armado, aos 15 anos, engravidou. Desta vez, o seu útero foi destruído.
Os casos de violações cometidas por mulheres, em zonas de conflito, não são um fenómeno desconhecido. Mas no Congo, estudos mais recentes apontam que são muito mais frequentes do que se poderia pensar.
Em 2010 – ano em que a Representante Especial da ONU sobre a Violência Sexual em Conflitos, Margot Wallströn, apelidou o Congo de “capital mundial das violações”, uma pesquisa liderada pelo académico de Harvard Lynn Lawry apontou dados que abrem uma nova dimensão ao fenómeno. A sua equipa pediu a vítimas de violência sexual, na zona leste do Congo, afectada pelo conflito, que especificassem o género do seu agressor: 40% das mulheres e 10% dos homens afirmou ter sido sexualmente atacado por mulheres.
O estudo surpreendeu a comunidade internacional e muitos duvidam dos resultados. Mas, como observa a TIME, outros acreditam que este fenómeno nunca tinha aparecido em estudos anteriores por uma razão muito simples: ninguém estava à procura dele. Ou seja, os investigadores nunca questionaram qual o sexo dos violadores.
As mulheres estão em 90% dos grupos armados congoleses e “as suas mentes foram alteradas”, explica uma funcionária da ONU à revista. “Mulheres que foram violadas durante anos estão agora a violar outras mulheres”.
Na agressão são usados paus, garrafas e até facas. A funcionária conta que a filha de uma amiga foi violada repetidamente por uma mulher, com uma cenoura, porque queria “estragar o seu corpo”.
Conforme recorda a TIME, a violação por mulheres foi também cometida em outros conflitos, nomeadamente no genocídio do Ruanda, onde cerca de 500 mil mulheres e meninas foram violentadas sexualmente. A ex-ministra ruandesa para os Assuntos da Família e Promoção da Mulher, Pauline Nyiramasuhuko, é, aliás, a primeira e única mulher condenada por um tribunal internacional por feito sido parte de uma violação sexual e ordenado a sua prática.
Há registo de actos de violência sexual perpetrados por mulheres também nos conflitos da Libéria, Haiti, Serra Leoa, Irlanda do Norte e Sri Lanka. A professora da universidade de Warwick, Miranda Alison entrevistou mulheres combatentes nestes dois últimos conflitos e constatou que elas tendem a ser mais violentas que os homens, talvez “para competir por status e reconhecimento em um contexto tradicionalmente patriarcal,” disse à Time.
“É uma ferida inesquecível”, diz Valerie. “A violação masculina está em toda parte, mas quando é uma mulher, é incompreensível.”