É o mais sangrento conflito desde a II Guerra Mundial, a “guerra silenciosa”, como lhe chama o redactor principal de assuntos internacionais do jornal Público, Jorge Almeida Fernandes, que há 26 anos se trava no Kivu-Norte e que, nas suas várias fases, já terá feito um total de cinco milhões de mortos.
O Kivu-Norte tornou-se numa região sem lei e quase sem Estado, onde os massacres étnicos se multiplicam, a violação se tornou uma arma de guerra e as crianças-soldados são carne para canhão dos “senhores da guerra”.
Há países em que as riquezas naturais são uma maldição. É o caso da República Democrática do Congo (RDC). Hoje, a tragédia gira em torno do negócio de um minério, o famoso coltan, combinação de dois minerais, um deles o tântalo, indispensável para as baterias dos telemóveis,tabletse computadores. O coltan alimenta os bandos armados e é o primeiro fio que liga o quotidiano à tragédia dos kadoga, as crianças-soldados.
Tudo é trágico nesta história, a começar pela sua origem, o genocídio do Ruanda, em 1994. A maioria hutu massacrou centenas de milhares de tutsis para “erradicar a raça”. Foi o último genocídio do milénio. Um exército de exilados tutsis respondeu ao genocídio conquistando o poder, que ainda hoje mantém.
Derrotadas, as milícias hutus, refugiaram-se na RDC. Formaram as Forças Democráticas para Libertação do Ruanda (FDLR), que passaram a ser perseguidas por milícias tutsis. Entretanto, abriu-se uma disputa do poder na RDC, que gerou uma guerra regional envolvendo Angola, Namíbia, Chade, Ruanda, Burundi e Uganda. Chamaram-lhe a “grande guerra africana”. Terminou em 2003, deixando mais de três milhões de mortos, essencialmente civis massacrados ou mortos pela fome ou por doença. Hoje, só no Kivu-Norte, há cinco milhões de deslocados e, no ano passado, registaram-se 2.000 mortes devido à miséria.
A FDLR decompôs-se em inúmeros bandos terroristas, que vivem da indústria do rapto e da extorsão das populações civis. Haverá cerca de 130 milícias armadas, umas têm relações directas com o Ruanda, outras com o Uganda, país que interfere frequentemente no Kivu. Na generalidade, foram fundadas para defender um dado território de outras milícias. Vivem de saques, sequestros e banditismo. Está no terreno também outro grupo, as Forças Aliadas Democráticos (ADF), ligado aos islamitas do Uganda e que, segundo Washington, estará associado ao Estado Islâmico (ou ISIS). A ONU acusou as ADF de terem assassinado mais de mil pessoas desde 2019.
O reino do coltan
Se as variadas formas de banditismo são responsáveis por grande parte dos crimes, tudo roda, no entanto, em torno da exploração das riquezas naturais. A RDC tem 75% das reservas mundiais decoltan, mas também grandes reservas de estanho, tungsténio e diamantes.
O jornalista italiano Alberto Negri explica como o sistema funciona: “A extracção dos minérios no Congo não exige tecnologia sofisticada. O coltan, as pepitas de ouro, os diamantes aluviais ou o cobalto – em que o Congo representa 60% da produção mundial – podem ser recolhidos à superfície ou a baixa profundidade, apenas com o uso das mãos. Mão de homem, mas também de crianças.”
É uma engrenagem infernal. Prossegue Negri: “Num país desestabilizado por anos de guerra civil, esta actividade [mineira] levou à criação de milícias ligadas aos ‘senhores da guerra’, financiadas clandestinamente por empresas estrangeiras exportadoras. Ocuparam militarmente as áreas mais rentáveis, combatendo-se entre si, escravizando os mineiros e oprimindo as populações locais. É um mercado em que a mão-de-obra não custa praticamente nada e extrai as mercadorias indispensáveis à indústriahigh-techdo mundo inteiro. É um mercado ilegal de que se servem a China e as multinacionais mineiras do Ocidente.”
Em 2010, o Congresso dos EUA decidiu exigir às empresas americanas a certificação de que o seu coltan não era “minério de sangue”. Foi uma primeira tentativa de legalização. O efeito foi o contrário do desejado. Uma súbita interrupção da actividade reduziu o financiamento dos “senhores da guerra”, mas desocupou também milhares de mineiros e muitos alistaram-se em bandos armados.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1005 de 3 de Março de 2021.