A organização não-governamental (ONG) Amnistia Internacional entrevistou descendentes de trabalhadores migrantes, que se estabeleceram no Zimbabué antes da independência do país, em 18 de abril de 1980, bem como sobreviventes dos massacres de Gukurahundi, dois grupos aos quais foi vedado o acesso à cidadania por uma combinação de discriminação e burocracia.
O relatório da organização, "Somos como 'animais vadios'", detalha como leis de nacionalidade discriminatórias e arbitrárias do Zimbabué deixaram gerações de trabalhadores migrantes e as suas famílias marginalizadas no país onde nasceram ou viveram a maior parte da vida.
À semelhança daqueles, milhares de sobreviventes dos massacres de Gukurahundi, um dos episódios mais sangrentos ocorridos durante o regime de Robert Mugabe, não têm como reclamar a cidadania porque não têm como fornecer certidões de óbito de familiares, que são exigidas para provar a nacionalidade zimbabueana.
"Para os apátridas do Zimbabué, a vida quotidiana está cheia de obstáculos. O acesso à educação, aos cuidados de saúde e ao emprego pode ser um pesadelo, e o sentimento de exclusão e rejeição está a destruir-lhes a alma", afirmou Muleya Mwananyanda, directora-adjunta da Amnistia Internacional (AI) para a África Austral, citada num comunicado da organização.
"As autoridades do Zimbabué devem tomar medidas concretas para enfrentar esta crise, incluindo o mapeamento e registo de todos os apátridas", defendeu a ativista.
Muleya Mwananyanda reforçou que "as autoridades devem assegurar que as leis estejam em conformidade com a própria Constituição do Zimbabué, bem como com a legislação internacional em matéria de direitos humanos".
Aproximadamente 300.000 pessoas estão actualmente em risco de apatridia no Zimbabué, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. A falta de dados oficiais impede o apuramento de um número exacto.
A crise de apatridia no Zimbabué tem as suas raízes na história colonial. O governo colonial britânico dependia em grande parte da mão-de-obra migrante barata de Moçambique, Maláui e da Zâmbia, da qual dependia a indústria da antiga Rodésia.
Após a independência em 1980, as autoridades do Zimbabué aprovaram uma série de leis discriminatórias que, ao longo dos anos, excluíram, marginalizaram e privaram efectivamente dos seus direitos não apenas aqueles trabalhadores como os seus descendentes.
A situação chega ao absurdo de vedar arbitrariamente a nacionalidade zimbabueana a pessoas de "origem estrangeira", ao mesmo tempo que a Constituição do país garante a cidadania à maior parte desses estrangeiros a viver no país, ao declarar que qualquer residente nascido no Zimbabué, filho de nacionais de qualquer Estado da SADC - incluindo o Maláui, Moçambique, Zâmbia e África do Sul - é um cidadão zimbabueano por nascimento.
A lei zimbabueana da cidadania não apenas não está alinhada com a Constituição do país, como continua a ser utilizada pelo Ministério do Interior para negar a cidadania de "forma arbitrária e injusta aos descendentes de trabalhadores migrantes", afirmou a AI.
"Ao fazê-lo, a Lei da Cidadania dá uma discricionariedade quase ilimitada e poderes arbitrários tanto aos funcionários executivos como aos oficiais subalternos para negar às pessoas os seus direitos constitucionais", reforçou a ONG.
Em 2001, uma nova lei exigiu que os descendentes de trabalhadores migrantes renunciassem à nacionalidade ancestral no prazo de seis meses, para que lhes pudesse ser concedida a cidadania do Zimbabué.
Muitas pessoas, no entanto, não puderam fazê-lo, ou porque não possuíam os documentos de identidade necessários, ou porque precisavam de provar, a priori, que os progenitores tinham sido nacionais de outros países.
O limbo legal da apatridia perpetua-se ao longo de gerações. Uma criança filha de migrantes apenas pode ter pensão de nascimento se os seus pais forem possuidores de uma, circunstância que lhe dita à nascença um futuro precário.
"Sem os documentos de identidade necessários, muitas crianças apátridas não têm acesso à educação. Aqueles que frequentam a escola são muitas vezes obrigados a abandonar a escola, ou impedidos de prestar os seus exames finais", denunciou a Amnistia Internacional.
Os apátridas no Zimbabué também enfrentam barreiras no acesso aos cuidados de saúde. "As mulheres grávidas são excluídas de serviços críticos que salvam vidas, tais como cuidados pré-natais e assistência durante o parto", exemplificou a organização.
"Os apátridas no Zimbabué lutam pelo acesso à habitação, cuidados de saúde e educação, e os seus direitos estão a ser violados ao abrigo da Constituição, bem como de tratados internacionais e regionais de direitos humanos, incluindo o Pacto Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, da qual o Zimbabué é um Estado signatário", sublinhou a AI.
"O Zimbabué deve fazer alterações legislativas concretas e urgentes, para tornar a Lei da Cidadania em conformidade com a Constituição. As autoridades devem tomar as medidas necessárias para assegurar que nenhuma outra geração é colocada à margem da sociedade", afirmou Muleya Mwananyanda.
Mwananyanda instou as autoridades zimbabueanas a comprometerem-se publicamente com a criação de "uma sociedade igualitária e inclusiva, que conceda a cidadania a qualquer pessoa nascida em solo zimbabueano, sem discriminação com base na origem nacional ou étnica".