​A insurreição no Iraque resistiu há 20 anos ao maior dos invasores

PorExpresso das Ilhas, Lusa,8 abr 2023 14:15

A Operação Liberdade do Iraque, liderada pelos Estados Unidos, conseguiu o objetivo, há 20 anos, de derrubar Saddam Hussein, mas a sua presença tornou-se depressa incómoda e a insurreição sangrenta foi tão rápida como antes a invasão.

Em 20 de março de 2003, uma coligação militar, liderada pelos Estados Unidos, maior potência militar do mundo, iniciou as hostilidades contra o Iraque, com o objetivo de derrubar o regime de Saddam, na segunda guerra do golfo, depois de em 1991 as forças norte-americanas terem libertado o Koweit da invasão iraquiana, mas sem a meta de chegar a Bagdade.

Mais de 20 anos depois, George W. Bush, filho do anterior líder norte-americano no período do conflito do Koweit, quis ir até ao fim, sob o argumento da alegada posse de armas proibidas, que nunca foram encontradas.

Bagdade caiu sob pouca resistência em 09 de abril, Saddam e seus próximos desapareceram e o país ficou às mãos das forças norte-americanas e dos aliados britânicos, como testemunharam então um jornalista e um fotojornalista portugueses, ao serviço da revista Visão.

"Um iraquiano é um soldado, desde criança. Tem organização, tem fé e comporta-se como um caçador", resumiu 'Pai na Noite', em entrevista aos jornalistas, na sua residência em Ramadi, no chamado Triângulo Sunita, que meses depois da invasão estava a ferro e fogo.

"Este país atravessou três guerras, recentemente, e qualquer um recebeu oito anos de preparação militar. Não fiquem, por isso, surpreendidos, quando verificarem que a resistência vai crescer cada vez mais", vaticinava 'Pai da Noite' numa residência familiar em Ramadi.

Há dois tipos de resistência aqui, prosseguiu: "Republicana e islâmica. Qualquer uma delas tem o mesmo objetivo, que é libertar o Iraque dos norte-americanos. É verdade que foram eles que nos livraram de Saddam, mas isso não lhes dá o direito de ocupar o nosso país", afirmava o homem com rosto de avô e que se deixou fotografar com o rosto escondido por um lenço, uma AK-47 numa mão e o Corão na outra.

"Havia cerca de 20 milhões de peças de armamento que estavam em posse do exército, da polícia, da Guarda Republicana, dos 'feddayin', etc... Quando tudo isso se desmembrou, o equipamento tinha de ficar com alguém, não é verdade? E está agora em boas mãos, do povo iraquiano que as utiliza contra os norte-americanos", disse ainda este homem pronto para morrer pela sua religião, e depois pelo seu país: "Rezo todos os dias para que Deus me dê essa oportunidade".

Os sinais de resistência começaram logo nos primeiros momentos da invasão. A maioria dos iraquianos, sobretudo xiitas, curdos e também sunitas, sentiam alívio pela queda do regime de Saddam, e havia um misto de liberdade - não total, dada a presença militar ocidental - e de caos que se seguiu à deposição das estruturas administrativas, sem que nada que lhes sucedesse.

Pelo contrário, Paul Bremer foi nomeado administrador interino da coligação no Iraque pelo Presidente Bush em maio de 2003, tornando-se na mais alta autoridade civil do país e tomou uma medida catastrófica, que foi demitir todos os membros do partido Baas, de Saddam, deixando desempregados dezenas ou centenas de milhares de militares, polícias, professores ou médicos.

Para Husni Mohammed, a revolta era "um ato de heroísmo contra uma força invasora", não terrorismo. Sentado à beira de um braseiro, porque eram então frias as noites de Bagdade, Mohammed contava como aplaudiu a queda do regime e viveu "dias de esperança como nunca" no seu país.

Em sete meses, veio a desilusão e o pessimismo: "Descobri que os norte-americanos não passam de 'cowboys' pouco educados e que tratam mal um povo orgulhoso da sua civilização e que deu os melhores cientistas do Médio Oriente. Deverei agradecer com flores a Bush por estar desempregado e sentir que se perdeu a segurança por completo?"

Shata Munir, 57 anos, falava, por seu lado, da geração de raparigas adolescentes que estava a preparar na escola de Hay Al-Jamaa: "Gostaria que saíssem daqui como mulheres livres, mas é duvidoso que isso venha a ser possível". Nos tempos de Saddam, para ser diretora do colégio, ela foi obrigada a aderir ao Baas. Essa militância continuava, porém, a persegui-la como uma sombra amaldiçoada, sob a nova autoridade, "mas não necessariamente uma democracia".

Hostilizada pelos novos superiores, Shata Munir recordou os discursos do anterior regime e como toda a gente os aplaudia vigorosamente "para escapar à morte". Depois das promessas que os americanos fizeram e não cumpriram, caiu-lhe o coração para o movimento de resistência, que era visto como "um direito de os iraquianos se defenderem".

À porta da escola, um grupo de defesa de bairro mostrava a sua cara mais medonha, munido de armas automáticas e bombas. Um coronel no desemprego alertava que, ao afastar de funções os oficiais iraquianos de topo, membros do Baas, a coligação deixou uma série de gente importante fora do sistema: "Os meus colegas que precisam de alimentar as famílias podem ser tentados a fazer mal aos norte-americanos", afirmava este responsável da polícia.

A seguir à ocupação, Bagdade era uma cidade sem lei, com pilhagens constantes, numa anarquia completa, em que soldados iraquianos desertavam e deixavam os seus uniformes e matrículas militares na rua, mas mantinham as armas, frequentemente negociadas com civis, prontos a usá-las, à medida que as residências dos principais membros do regime iam sendo saqueadas.

Num país sob sanções desde 1991 e potencial alvo militar, as perseguidas etnias xiita e curda ocupavam bairros antes ocupados pela elite do regime, em fuga dos invasores.

"Esta casa agora é nossa", escreveram em cada um dos portões negros. Na residência do ex-ministro da Informação, o teatral Mohammed Saeed Al-Sahhaf, celebrizado por negar a conquista de Bagdade com imagens de militares norte-americanos atrás dele, vivia agora Weledi Kaleyi, então com 32 anos, a mulher e quatro filhos. Todas as divisões foram pilhadas. O que sobrou foi queimado.

A casa foi limpa e era lar para quatro famílias: "Isto foi feito com dinheiro do petróleo do Iraque, agora é nosso". E se alguém ousasse despejá-los, Kaleyy tinha uma metralhadora para defender a sua nova propriedade.

O vizinho do lado, Samir Ahmed, na altura com 52 anos, ocupou a casa do ministro do Petróleo. Nos dois pisos da moradia residiam quatro famílias xiitas. Confrontado com a questão de um eventual despejo, não respondeu de imediato e deu uma ordem à filha, Raina. Esta saiu da vista por instantes e voltou com uma Kalashnikov.

Fora negociada por 25 dólares há três semanas com um desertor iraquiano. Ahmed foi enganado. Nessa altura, em Saddam City, bairro satélite de Bagdade, era possível comprar uma arma idêntica por dois ou três dólares. Mas nem por isso deixou de disparar uma salva, sorrindo triunfante, no centro da família posicionada para a foto e que ficou surda vários minutos.

Nos templos religiosos, os discursos eram cada vez mais radicais - "O Islão ajudará aqueles que resistem aos invasores", disse o imã sunita, Adran Alaney, em Bagdade.

No dia em que al-Queda atacou hotéis e embaixadas, quando não se conheciam operações terroristas anteriores no país e depois de um tiroteio de meia hora numa luta sectária à porta do seu templo, o xeque Abd Al-Rhman Al-Hachamin começou por dizer que preferia ser prudente em relação à ocupação estrangeira e provas de armas de destruição maciça, mas que tudo tinha um prazo. De contrário, "vai chegar o dia em que as crianças estarão a combater os norte-americanos nas ruas".

Era dia de Eid al-Fitr, fim de Ramadão, sete meses depois da invasão. Alguém informou Rene Brady, 19 anos, de que em seis meses a missão no Iraque ficaria resolvida e a 'teenager' americana criou um imaginário que a deitava todas as noites numa tenda no deserto, como num filme de aventuras.

Sugeriram-lhe ainda que esta invasão no Médio Oriente era justa e seria fácil. E parecia sê-lo, à medida que a sua brigada (a 18.ª, estacionada em Giessen, Alemanha (Batalhão 709 da Polícia Militar), subia em passo acelerado do Kuwait, protegendo comboios logísticos, longe das frentes de batalha, rumo à conquista de Bagdade.

Nenhum dos planos da militar se concretizou. Em vez de uma tenda, dormia num palácio de um alto dirigente do deposto regime iraquiano, na chamada Zona Verde no coração de Bagdade, isolada hermeticamente do frágil mundo que a rodeia -- a perigosa metrópole que se estende além das cercas de betão, do arame farpado, das luzes que encadeiam e dos 'check-points' que abrem fogo à mínima dúvida.

A guerra, essa, ainda não acabara e, pelo contrário, intensificava-se com baixas de ambos os lados e até suicídios nas forças de coligação.

Enquanto nas salas de mármore do palácio os colegas de armas preparavam o Dia de Ação de Graças, 'private' Brady subia para o lugar mais alto de um blindado ligeiro Humvee, suspensa num banco de lona, atrás da metralhadora M249 de 5,5 mm plantada no tejadilho. Um guerrilheiro iraquiano já a teve na mira da sua Kalashnikov, mas falhou: "Felizmente, não há muitos bons atiradores por aqui".

O episódio trouxe a intranquilidade, e era esta que a fazia manter o dedo indicador no gatilho em cada segundo das nove horas de patrulha, seis vezes por semana. Sabia que era o alvo mais exposto, o primeiro a abater, apesar do colete à prova de bala, do capacete de kevlar e do poder de fogo para oferecer em troca.

Ter-lhe-ão falado de banhos de multidão e chuvas de flores, aclamando os libertadores, mas, quando a militar saía para a cidade, era recebida a tiros e piropos: "Mandam-me beijos e fazem-me gestos obscenos. Isto é tudo muito estranho".

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Autoria:Expresso das Ilhas, Lusa,8 abr 2023 14:15

Editado porFretson Rocha  em  9 abr 2023 8:28

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